Renata Abalém (*)

No centenário de Janete Clair, celebramos não apenas uma roteirista de novelas. Celebramos uma contadora de histórias que transformou a telenovela em linguagem de exportação e deu voz às aspirações do povo brasileiro. E fez isso de maneira acessível e profundamente estratégica: por meio do folhetim televisivo.

Foi através de suas tramas — Selva de Pedra, Pecado Capital, O Astro, Irmãos Coragem — que o Brasil passou a vender imagem e sentimento. Emissoras mexicanas, argentinas e chilenas compraram direitos das novelas de Janete, fazendo de suas histórias uma ponte entre as nações. Comercializava-se ali não apenas dramaturgia: mas um código emocional coletivo.

Suas novelas foram recebidas sem resistência, traduzidas sem perda de calor e absorvidas com naturalidade. Seu texto simples e profundo, com personagens de grande complexidade psicológica, ecoava entre culturas diversas.

Esse impacto se mede por números: em 1972, o último capítulo de Selva de Pedra atingiu inacreditáveis 100% de share, sendo considerado um dos maiores recordes da história da televisão brasileira, à frente, inclusive, de finais de Copa do Mundo. Era o povo assistindo a um desfecho ficcional como quem assiste a uma decisão nacional.

Por que o mundo compra novelas brasileiras? É simples e complexo: porque nelas se encontra a universalização da emoção. A telenovela brasileira, e especialmente a de Janete Clair, oferece a humanidade com todas as suas contradições. O mundo compra porque reconhece ali a sua própria história.

Quem faz novelas? Sociedades que entendem o valor do tempo afetivo, que reconhecem a narrativa como instrumento de formação simbólica. A novela brasileira não é apenas entretenimento: é um lugar de elaboração coletiva, um espaço de catarse e memória.

É impossível abordar a obra de Janete sem considerar o peso simbólico de personagens como Herculano Quintanilha. Em “O Astro”, ele é o tipo que transita entre o visível e o invisível, entre o sagrado e o profano. Um homem que encanta multidões e se apresenta como intérprete de mistérios — um sacerdote moderno com turbante e carisma, mistura de guru e empresário.

A figura de Herculano se torna, hoje, uma chave de leitura política: num país em que vozes místicas influenciam decisões públicas e onde o palco da fé se mistura ao da política, o personagem renasce como alegoria. Vide o poder e a forte representação dos líderes neopentecostais que utilizam a fé como instrumento de influência e capitalização de milhões. Combinam carisma, sensacionalismo e redes de apoio que manipulam a moral cotidiana. A dramaturgia de Janete, ao antecipar esse fenômeno com Herculano, revela não só sua sensibilidade, mas também sua visão profética.

Nesse universo, talvez valha eleger também Carlão, de Pecado Capital, como figura de estudo. Um homem dividido entre o crime e a honra, entre o impulso e a ética — arquétipo do brasileiro tentado pela esperteza e pelo poder fácil. Em tempos em que se discute o crime organizado e sua infiltração nas estruturas públicas, Carlão pode ser relido como o espelho da corrupção que seduz e destrói.

A força psicológica dos personagens da “Maga das oito” está na ambiguidade. Nenhum deles é plano. Todos se movem por desejos e dilemas profundos. Suas mulheres amam com fúria, suas mocinhas, longe de serem frágeis, frequentemente desafiam os destinos que lhes são impostos. Janete escreveu mulheres que decidiam. Construiu personagens femininas que, entre 1960 e 1980, enfrentavam o mundo de frente.

E não é por acaso que a própria Janete teve sua trajetória marcada por uma decisão ousada e firme. Quando foi chamada pela Globo para assumir uma novela em crise —tomou a decisão radical de eliminar praticamente todos os personagens e recomeçar a trama do zero. A aposta foi arriscada, mas o resultado foi um sucesso retumbante. Isso não apenas consagrou sua habilidade técnica como revelou sua coragem literária: Janete reescreveu o destino de uma história e, com isso, consolidou o seu próprio.

No centenário de Janete Clair, o menos importante são os cem anos, até porque Janete é imortal! Viva Janete Clair!

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(*) É advogada, ocupa a cadeira de número 18 na Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências, a mesma que foi de Janete Clair.

Foto: Arquivo Pessoal