GILFRANCISCO: jornalista, professor universitário, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da Associação Sergipana de Imprensa – ASI, do Grupo Plena/CNPq/UFS e do CPCIR/CNPq/UFS. Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Sergipe
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Se estivesse vivo, o poeta, letrista, ator, produtor, animador cultural e diretor Waly Salomão completaria 80 anos
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Nossos encontros
Assim que li a reportagem sobre o show Gal Fa-Tal – A Todo Vapor, realizado no Teatro Teresa Raquel, em Copacabana no Rio de Janeiro, em 12 de outubro de 1971, tratei logo de reservar um valor do meu mísero salário mínimo, que era de 144 mil cruzeiros, para aquisição do álbum duplo ao vivo, que ainda não havia sido lançado. Teresa Raquel comenta a estrela da Gal em seu teatro, que esteve em cartaz por uma semana: – Nunca vi tamanha confusão em uma estreia. Os ingressos da metade da temporada já estão esgotados e algumas pessoas ficam horas na fila. De qualquer maneira, é uma experiência muito boa estar com o controle das coisas e fazê-la correr de acordo com nossas ideias.
Produzido por Roberto Menescal e dirigido por Wally Salomão, acompanhado pelos músicos: guitarras Pepeu Gomes e Lenny Gorden, baixo Novelli, Jorginho Gomes bateria e Baixinho percussão. O álbum antológico (LP duplo), ao vivo, Philips, 1971, o mais importante da carreira de Gal Costa, vendeu em quinze dias dez mil cópias. Em Salvador o show aconteceu logo no início da turnê. Tempos difíceis politicamente no Brasil, os ingressos foram esgotados rapidamente. A época eu trabalhava na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, no Setor da Procuradoria-Geral, dirigida pelo Dr. Edivaldo Pereira Brito. Por amizade ao superintendente do DSVU – Departamento Social de Vida Universitária (Residência Universitária Feminina) Raimundo Cayres Brito, que recebia uma cota dos ingressos para distribuir com os funcionários, nunca me faltou ingressos para os shows ou peças teatrais apresentadas nos teatros Castro Alves, Vila Velha e Santo Antônio.
Na estreia do show, eu estava acompanhado com Helô Capinan. O Vila Velha estava lotado não havia mais ingressos a vendas. O público se misturava na entrada, uns para entrar, outros tentando ainda aquisição de ingressos. Show marcado para as 21 horas. Era uma quinta feira de momo. Noite da entrega da chave ao prefeito de Salvador para abertura dos festejos carnavalescos. Já passava das 22 horas e o show não tinha iniciado. Passaram-se alguns minutos e Wally sobe ao palco e anuncia o cancelamento do show, em virtude da não chegada de dois integrantes da banda, que não conseguiram romper a multidão da festa, dia da entrega da chave simbólica ao Rei Momo, marca a oficialização do inicio do Carnaval na capital baiana.
Pense numa confusão maior a troca dos ingressos para o dia seguinte. Foi assim que vi a fúria daquele homem alto, forte, de boca escancarada, olhos arregalados (estrábicos) de quem estava irritado, voz estridente, gritava, conversava alto, loucura total. Esse foi meu primeiro encontro com o poeta Wally. No dia seguinte, tudo normal. O show foi dividido em duas partes: a primeira mais intimista e acústico – com Gal ao violão – e a segunda já com a banda no palco, mais agressiva e rock’n roll.
O segundo encontro, por um período mais longo, aconteceu em novembro ou dezembro de 1978, quando do lançamento do LP de Luiz Melodia, Mico de Circo, Som Livre, direção de Guto Graça Mello e direção de estúdio do sergipano Sérgio Mello. Waly teve uma ideia genial. Encomendou um caruru de 7 mil quiabos no Mercado das Sete Portas. O cortejo saiu da sede do jornal Tribuna da Bahia, localizada na Rua Djalma Dutra, onde eu trabalhava. Contratou uma carroça toda enfeitada e colocou Luiz montado no burro que puxava a carroça. E seguimos todos com destino ao Mercado para o almoço. Veja o registro do fotografo Val Rodrigues.
É bem provável que o terceiro encontro tenha acontecido em 1992 época em que eu ensinava no Colégio e Curso Einstein, dirigido pelo letrista Jorge Portugal. Ensinava a turma do 3º ano e levei uma parte dos alunos a Fundação Casa de Jorge Amado para ouvirem e debaterem a comunicação de Waly Salomão, intitulada “Velha Cartomante Setentona”, sobre Oswald de Andrade e a Semana de Arte Moderna, ensaio publicado na Revista Exu, nº 26, deste ano. E mais uma vez, juntos na Fundação Casa de Jorge Amado, quando lançou o livro Armarinho de Miudezas, (escritos diversos de 1983 a 1992) pela coleção Casa da Palavra, 1993.
Genialidade Glauberiana
Se estivesse vivo, o poeta, letrista ator, produtor, animador cultural e diretor Waly Salomão (1943-2003) completaria 80 anos. Nascido na cidade baiana de Jequié, em 3 de setembro de 1943, Waly Salomão era filho do líbio Maximinio Hage Salomão e Samira Salomão, sertaneja nativa, casados em 26 de janeiro de 1929. Nesta cidadezinha do Centro-Sul baiano, passou a infância entre a Rua Alves Pereira, onde morava, o Ginásio de Jequié, onde estudou até a 8ª série e a Biblioteca Municipal, principal ponto de encontro com vizinhos e colegas de escola. Quando criança devorava livros como traças.
A vocação para agitador cultural se manifestou desde garoto, quando criou o Clube Filatélico, no galpão da casa dos pais. Foi uma das primeiras iniciativas de Waly para reunir os garotos da época em ambiente que pudesse discutir cultura. Esta iniciativa foi fundamental, servindo de experiência para mais tarde, participar do Centro Popular de Cultura – CPC –, em Salvador. Quando acadêmico da UFBA, Waly colaborou nos anos 60 na revista Ângulos, do Centro Acadêmico Ruy Barbosa.
Diplomado no curso de Direito em 1967 pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, detentor dos prêmios Alphonsus Guimarães (Biblioteca Nacional, 1996) e Jabuti (Câmara Brasileira do Livro,1997), entre outros livros, publicou: Me segura qu’eu vou dar um troço (um clássico do underground nacional,1972), Gigolô de bibelôs (1983), Armarinho de Miudezas (1993), Algaravias (1996), Lábia (1998), Tarifa de Embarque (2000), O Mel do Melhor (2001) e Hélio Oiticica – Qual é o parangolé e outros escritos.
O poeta Waly Salomão foi destaque no Movimento Tropicalista, ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto e José Carlos Capinan. Publicou ao lado de Torquato, poeta piauiense morto em 1972, a emblemática revista Navilouca (1974), marco da poesia alternativa (marginal) brasileira nos anos 70. Foi secretário municipal da Cultura (Fundação Gregório de Mattos), em Salvador, e secretário do Livro e Leitura do Governo de Lula por quatro meses.
Morto às 7 horas e 40 na manhã de 5 de maio de 2003 (depois de escapar de um infarto violento em 1998), na Clínica São Vicente da Gávea, no Rio de Janeiro, aos 59 anos de idade, em decorrência de câncer no intestino (como causa mortis, insuficiência múltipla de órgãos, em decorrência de tumor no intestino), descoberto em meados de março de 2003 (com metástase no fígado), após ser velado no salão principal da Biblioteca Nacional (RJ), o corpo do poeta baiano foi cremado no Cemitério do Caju.
Foi na efervescência do Colégio Estadual da Bahia (Central), quando estudava em Salvador, que solidificou conhecimentos que deram base à influência no Tropicalismo, ao longo dos anos 60. Poeta multicultural ele se destacou em várias frentes, foi uma das personalidades mais transgressoras e fascinantes da cultura nacional contemporânea. Soube fazer como poucos, a mistura de várias formas de expressão da música à filosofia, da poesia às artes plásticas.
Descobridor de talentos, Waly Salomão é autor do primeiro reggae brasileiro e coordenador do primeiro carnaval em que o Olodum pôde levar seus tambores africanos para embalar a juventude dourada da Barra. Esta foi a sua marca desde o início da carreira de autêntico produtor da miscigenação cultural brasileira.
Em 1971, Gal Costa lhe convidou para ser o diretor geral de um espetáculo, que depois se tornaria um clássico da MPB: FA-TAL, Gal a todo vapor, LP duplo Philips, arranjos Lanny e guitarra Pepeu Gomes, Este show que trouxe maturidade à cantora Gal Costa, revelou Vapor Barato (hino de toda a geração que viveu os anos 70, embala corações e mentes até hoje), letra de Waly e música de Macalé, recentemente regravada por Gal Costa, num dueto com o maranhense Zeca Baleiro e o pelo grupo carioca Rappa. A música foi tema, em 1995, do premiado filme Terra Estrangeira, de Walter Salles.
Na época Waly tinha muitos amigos no Morro de São Carlos, um forte reduto do samba. Eles ainda estavam definindo o repertório do futuro show e Waly Salomão, impressionado com um tal de Luís Carlos Santos, saiu da casa de Gal no meio de uma reunião para buscá-lo em São Carlos. O calouro de Pérola Negra cantou para Gal e dali para frente começava a carreira de Luís Melodia.
Entre 1974/1975 Waly morou em Nova York, e do muito que viu por lá, ficou absolutamente fascinado com uma apresentação de Bob Marley, no Central Park. Logo depois compôs o reggae Negra Melodia, uma homenagem ao amigo Luís Melodia, em parceria com Jards Macalé (LP Contrastes). Esta música, anos depois, também foi gravada por Itamar Assumpção e Margareth Menezes.
Com Ana Duarte, organizaram a edição póstuma de Torquato Neto, Os últimos dias de Paupéria. Organizou e editou Alegria Alegria, de Caetano Veloso, onde reuniu, artigos dispersos no Pasquim e em diferentes jornais do país e, com Lygia Pape e L. Figueiredo, Aspiro ao grande Labirinto, livro póstumo de Hélio Oiticica. Waly tem músicas com dezenas de parcerias, com Caetano, Gil, Macalé, Lulu Santo Adriana Calcanhoto, Cazusa, Itamar Assumpção, João Bosco entre outros. Mas foi com Caetano Veloso: A voz de uma pessoa vitoriosa, Mel, Talismã, Alteza, Da Gema, Olho d’água, todas entoadas por Maria Bethânia, que suas músicas ficaram imortalizadas.
Waly também é responsável juntamente como Gilberto Gil da trilha sonora do filme Quilombo (1984) dirigido por Cacá Diegues. O lançamento do CD com a trilha sonora, chegou com um atraso de quase 20 anos depois da estreia do filme, numa caixa como parte da obra do cantor, compositor e ministro, Gilberto Gil. Waly foi o protagonista do filme mais recente da cineasta Ana Carolina, Gregório, sobre o poeta satírico baiano, Gregório de Mattos e Guerra. Esta foi sua estreia como ator no cinema, ao lado de Marilia Gabriela, Ruth Escobar e Rodolfo Bottino.
O poeta Waly Salomão era um homem dionisíaco, legítimo herdeiro de Gregório de Mattos e Oswald de Andrade, tinha uma inteligência incomum. Um artista inquieto, irreverente, ágil, supreendentemente original, sem papas na língua, um viajante da contracultura. Waly sempre foi muito rápido, tinha pressa, ou como bem disse o amigo e poeta Antonio Risério: “Waly é um leão, um tyger-of-wrath. Filho de xangô, o deus que se acende na chuva, mas também o senhor das línguas e das linguagens, senhor dos códigos, Waly é o leitor de Rimbaud e Nietzsche circulando pelo morro do Estácio, da Mangueira, ou em meio aos tambores sagrados do candomblé (“atabaque”, de resto, é palavra de origem árabe).
Com seu desaparecimento prematuro, a cultura e, em especial, a literatura, perdeu uma grande figura. O poeta era casado e deixou dois filhos. [1]
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Mal Secreto
Não choro
Meu segredo é que
[1] Jornal da Cidade, Aracaju. 4 de maio de 2004. Sopa Poesia & Afins, Salvador. nº2, julho, 2005. Republicado no livro Imprensa Alternativa & Poesia Marginal – Anos 70 GILFRANCISCO, Faculdade Atlântico, 2004.
Sou rapaz esforçado
Fico parado calado quieto
Não corro, não choro, não converso
Massacro meu medo
Mascaro minha dor
Já sei sofrer
Não preciso de gente
Que me oriente
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual
Tudo legal
Mas quando você vai embora
Movo meu rosto no espelho
Minha alma chora
Vejo o Rio de Janeiro
Vejo o Rio de Janeiro
O morro não salvo não mudo
Sujo o olho vermelho
Não fico parado
Não fico calado
Não fico quieto
Corro, choro, converso
E tudo mais
Jogo num verso
Intitulado Mal Secreto
Não choro
Meu segredo é que
Sou rapaz esforçado
(Letra: Waly Salomão. Música: Jards Macalé)
Intérprete: Gal Costa
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