Deisiane Maria (*)

O poema “Desqualificados”, datado de 3.5.2025, escrito por Jeová Santana, desperta no privilegiado leitor o desejo de ir além do título, percorrer versos, estrofes e surpreender-se com o diálogo entre a literatura e a vida, pois ilumina o passado, faz refletir sobre o presente e desperta para o futuro. Ao observarmos atentamente, após o título, notamos que sua estrutura revela uma estrada até então desconhecida, mas que se desenha a partir dos versos que seguem certa sinuosidade, como se houvesse uma quebra estrutural, uma ruptura quando comparado a poemas pertencentes ao que se convenciona chamar de tradição.

Essa sinuosidade aparente, porém, guia os olhos atentos dos leitores entre curvas, espaços, pausas e impactos causados por palavras escritas em maiúsculo (na maioria adjetivos), características individualizadas (uma em cada verso), frases curtas, falas e expressões retiradas de diferentes contextos. Esse conjunto ao ser declamado revela ritmo. movimento, continuidade.

Cada uma das palavras, frases e expressões apresenta significados distintos; cada verso, um apontamento diferente. Esse entrelaçar em torno de um tema conhecido instiga o leitor a refletir, repensar sobre realidades vistas e vividas, palavras proferidas, acontecimentos, ações e suas consequências.

É como se essa estrada repleta de curvas desvendasse, a cada movimento do leitor, o mundo real, mas que está mascarado, maquiado, encoberto aos olhos de muitos, já que a visão limitada, o pensamento alienado, as opiniões contraditórias e as práticas negativas advêm de quem se apresenta como defensor dos valores mais importantes da vida humana. Instala-se, assim, uma viseira que impede de se enxergar a amplitude do mundo, da vida e dos acontecimentos por meio da subjetividade.

Nessa perspectiva, faz-se necessário, por exemplo, refletir criticamente sobre o “8 de janeiro de 2023”, dia marcado por ataques violentos, vandalismo, invasão, ações destruidoras ao patrimônio público, incluso o acervo valioso de obras de arte ali presente. Esse melancólico evento, que ficou conhecido como “Atos golpistas”, reuniu um grupo de extremistas que se dizem patriotas e reivindicavam um golpe militar contra o governo eleito em outubro de 2022. Após os ataques, o que se pôde ver foi um cenário de depredação e destruição nas imagens registradas, documentadas, as quais apresentam uma parte expressiva do conflito entre “manifestantes” e policiais. Após centenas de prisões, as consequências dessas ações, assim como o destino de seus participantes, idealizadores e financiadores ainda estão sob processo, julgamentos e punições no ano da escrita do poema em questão.

Voltando à sua análise, podemos identificar que o evento, brevemente relatado acima, é apresentado por um novo viés. Não pela técnica objetiva de textos jornalísticos, mas pela ótica da literatura, pois o poema vai além do “8 de janeiro” ao lembrar outros acontecimentos ocorridos nos anos seguintes, com a participação de integrantes desse grupo atípico que se intitula “patriotas inconformados”. Assim, não se faz necessário citar nomes. As ações falam por si. As consequências também.

Assim, ao considerarmos esses três olhares, podemos também perceber outros elementos presentes no texto: o contraditório; o descompasso entre discurso e ações; conversão entre instâncias religiosas e políticas; referência a leis e discursos literários; desatenção aos bens inerentes ao povo; a defesa de interesses próprios etc. É como se houvesse o despertar para uma inquietação: como defensores do bem, dos valores, da “família ideal”, não deveriam esses indivíduos lutar em busca de igualdade para todos? Por que, então, tanto preconceito, discriminação e ataques? Se há o desejo de justiça, por que pedir anistia para aqueles que realizaram os referidos atos, que não pensaram no caos institucional que poderiam causar?

Para destacar como essas inquietações atravessam este “Desqualificados”, vale a pena pinçar algumas passagens. Comecemos pelos versos “Moralistas/ Sem moral”. A palavra “moralista” e a forma “sem moral” expressam contradição, antagonismo, já que os mesmos indivíduos que se dizem defensores da moral e dos valores étnicos, apresentam incongruências em suas ações. Há, portanto, uma contradição entre o discurso e a prática.

Já os versos “Para o povo/ Pouco pirão/ Para o mercado/ O anel e a mão” apresentam, de forma cirúrgica, a oposição entre os interesses relacionadas à coletividade e os individuais. Revelam a falta de preocupação com as necessidades do povo contrapostas ao discurso de setores financeiros dentro da ordem capitalista.

Os versos a seguir fazem referência à religiosidade. São três rituais realizados em três práticas religiosas: “um toré”, no âmbito indígena; “uma novena”, no catolicismo; e “um descarrego”, presente em diferentes tradições religiosas, sobretudo as de matriz africana, com o objetivo de purificação: “Um toré/ Uma novena/ Um descarrego”.

Quanto aos instrumentos relacionados a leis, às normas e à política, temos no poema a presença de três documentos vitais: a Constituição, o código penal e o código de ética. Eles apresentam regramentos e princípios necessários para a vida em sociedade ao englobar direitos, deveres, condutas e suas consequências como, por exemplo, crimes e penas correspondentes: “A Constituição/ O código penal/ O código de ética”.

Nesse sentido, esses dispositivos destacam não só a relevância da vida em sociedade, da oferta de direitos, da realização de deveres, do cumprimento das leis, mas também a necessidade do cumprimento da lei. Nesse caso, enquadram-se os que, de alguma forma, “rasgaram” esses documentos, ultrapassaram os limites, atacaram a democracia, depredaram o patrimônio público. Depois desse estrago, buscam um desvio, uma saída, para não serem punidos por esses e outros crimes.

A estrofe que finaliza o poema apresenta um apanhado valioso relacionado à Literatura: “sarau”, “recital” e “jogral”. São práticas coletivas que expressam vozes, reunião, envolvem o individual e o coletivo, como se a arte e a vida mantivessem um diálogo que vai além das palavras, pois envolve a liberdade e a vida. É como se o poeta convidasse sutilmente a Literatura para participar de seu texto e reunisse diversas vozes e forças das mais distintas camadas sociais para, assim, chamar a atenção sobre a ainda tensa realidade política do Brasil e convocar, para o bom combate, os que queremos como nossos representantes no planalto central do país: “Um sarau/ Um recital/ Um jogral”.

Finalizo dizendo que nos versos e apontamentos apresentados, bem como nas reflexões após leituras e releituras do poema, foi perceptível a riqueza por ele apresentada, a diversidade de recursos estruturais, a maneira didática e impactante com que palavras, versos e expressões foram colocadas, especialmente a presença da intertextualidade, num diálogo que envolve outras formas de expressão, nesse relacionamento tão necessário entre a literatura e a vida que aconteceu, acontece e acontecerá ao longo da nosso existir.

Diante desse poema, concluímos que as reflexões tendem a se desenrolar na mente do leitor atento; que a literatura dialoga com a vida, numa relação que gera uma visão de mundo ilimitada, capaz de abarcar o que a alienação tenta roubar. Nessa perspectiva, o poema “Desqualificados” convida-nos a uma jornada por essa estrada sinuosa, na qual, faz-se necessário leitura, pesquisa e muita atenção para que, a cada passo, haja um despertar, uma aproximação do literário com o real, um verdadeiro diálogo entre o leitor e a vida. É a literatura que se faz presente e anda de mãos dadas com a existência.

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(*) É aluna de Letras Língua Portuguesa, pela Faculdade Estácio.

Foto: Arquivo Pessoal