Silvaney Silva Santos*
*Mestre em História. Pesquisador. Autor do livro “Santo Amaro das Brotas, do histórico ao lúdico (Séc. XX), 2017. Professor do Sistema Estadual de Educação e do Sistema Municipal de Educação de Santo Amaro das Brotas
Imagem1: Imagem de Santo Amaro
O passado remoto é irrelevante para o presente e por isso deve ser esquecido? A história que deve ser contada é somente aquela que “satisfaz as nossas emoções”, as nossas vontades e interesses, as nossas crenças? O fato é que a seletividade é uma marca característica da nossa memória. Nada de “memória traumática”! Durante muito tempo se precisou institucionalizar as memórias para que estas fizessem parte da História.
Todo documento, testemunhos… representam, evidenciam e defendem os seus olhares, as suas ideologias, entre outros. Todavia, não escapam ao escrutínio da História. Neste aspecto, defendemos a “supremacia das evidências”, ou melhor, o confronto das fontes no sentido revolucionário do que chamamos de “documentos” com o advento dos Annales (1922).
Li uma afirmativa que diz muito sobre o ofício do historiador: “quando se cava um poço, a primeira água sai barrenta”. É assim na pesquisa histórica. Tais afirmativas para tentar desvendar uma história que ouço desde tenra idade e que agora, a partir da pesquisa documental e de análises comparativas, começa a ser ressignificada.
É sobre a lenda do Santo fujão; o padroeiro Santo Amaro que ia embora e voltava…e daí teria se construído a Igreja para que o “fujão” não saísse mais…
Recorrendo à história oral temos o testemunho de Maria Francisca dos Santos, conhecida popularmente como Dona Nanã: “Há muito tempo. No tempo que aqui só tinha a praça da Matriz, existiu uma grande guerra entre Maruim e Santo Amaro. Era muito comum essas disputas entre as cidades, uma queria ser melhor do que a outra. E não foi que Maruim venceu e eles não se contentaram em levar a sede administrativa para lá, eles queriam muito mais, e para demonstrar força, exigiram que a imagem do nosso padroeiro fosse para a cidade deles, esse fato causou grande tristeza em toda população. Porém, um certo dia, para espanto de todos, quando chegamos à matriz para rezarmos o terço, tomamos um tremendo susto. A imagem do Glorioso Santo Amaro, não estava lá no altar, o povo de Maruim tinha levado a imagem para adornar as suas igrejas”.
A partir da crítica das fontes percebe-se no testemunho oral de Dona Nanã o que chamamos de anacronismo, quando confundimos as temporalidades, os contextos históricos. Todavia, a evidência tem quesitos comprobatórios do acontecimento. Daí a importância de aprofundar-se mais para o clareamento das “águas barrentas”. Para tal, buscamos outras tipologias documentais, a exemplo do jornal, do testamento e da certidão de óbito do Dr. Dinitério Hercules da Silveira.
O testamento também permite que se avalie o interesse do indivíduo em exercer a caridade cristã, graças às suas últimas vontades no tocante à destinação do terço de seus bens.[…] (Barcellar, 2000, p. 36).
O presente texto começou a partir da publicação do Correio de Aracaju de 17 de setembro de 1927. p. 4. n.530. Na qual ela traz à tona algumas evidências do que teria acontecido com a referida imagem do padroeiro Santo Amaro. Daquela história que em criança ouvia falar. Segue na íntegra o texto conforme ortografia de época:
Santo Amaro
A população desta villa se acha, de algum dia a esta parte, extraordinariamente jubilosa pela graça divina que acaba de receber com a volta à matriz , do seu milagroso padroeiro – Santo Amaro – que a cerca de um século, se achava na cidade de Maroim, onde se demorou por esse largo tempo, em casa particular dos avós, paes e ultimamente do saudoso Dr. Dinitério Hercules da Silveira.
Por mais de uma vez, os responsáveis diretos da religião, juntamente de pessoas de relevo social, tentaram conseguir a volta da sagrada imagem, sem jamais alcançar o seu louvável objectivo , por isso que aquelle boníssimo cidadão cultor convicto da fé e dos dogmas religiosos tinha a santa effigie como protecior e guia dos seus actos, não consentindo assim em delle separar se enquanto vivesse.
Eis sinão quando, acomettido pelo rude golpe que em poucos dias o victimou viemos a saber que constava do seu testamento , como prova dos seus sentimentos religiosos a entrega da imagem de S. Amaro, que deu entrada na matriz desta villa, em meio do maior jubilo e do mais justificado regosijo da sua população.
No domingo último, conforme determinou o vigário local, foi a sagrada imagem colocada no altar mór da matriz, caprichosamente construído para tal fim, ha cinco anos passados, pela iniciativa incansável major Jacintho Ribeiro, santoamarense que nos honra pelo trabalho operoso, pela intelligencia fulgurante, e pelo ascendrado amor a berço natal.
É de lamentar que não tendo sido possível effectuar-se uma solemnidade mais luxuosa de conformidade com o merecimento do sagrado padroeiro, por ter aquelle nosso distincto conterrâneo ter de seguir para a Parahyba do Norte em desempenho da sua funcção miltar.
Traz-nos testemunhar sincero agradecimento à família do Dr, Deniterio Silveira pela attenção que nos despensou no tocante a entrega da imagem, motivo pelo qual todos os Santamarenses levantam fervorosas preces ao Altíssimo pela paz da alma do saudoso facultativo.
Resta-nos agora a opportunidade felicissima de receber a visita alviçareira do honrado cidadão que ora dirige o nosso Estado, afim de, vendo de perto as nossas necessidades, possa, na operosa gestão que vem executando, também despensar-nos algum melhoramento material.
O povo de Santo Amaro, pois, por certo exhultará nessa opportunidade, porque vê na visita presidencial a confiança e s. ex. tudo fará para melhorar a nossa situação material e economica (Do Correspondente).
O texto acima é revelador e confere com outras fontes, a exemplo do inventário do Dr. Dinitério Hércules da Silveira e o seu atestado de óbito. Só não conseguimos encontrar nos arquivos o seu testamento, citado no texto, no qual teria declarado, entre as suas últimas vontades, a devolução do Santo para a paróquia de Santo Amaro.
Os Silveira seriam os donos do Santo Amaro?O qual “cerca de um século, se achava na cidade de Maroim, onde se demorou por esse largo tempo, em casa particular dos avós, paes e ultimamente do saudoso Dr. Dinitério Hercules da Silveira”?
“O altar mórcaprichosamente construído para tal fim, ha cinco anos passados, pela iniciativa incansável major Jacintho Ribeiro”. A descrição diz que o altar construído por Jacintho Dias Ribeiro foi para esperar a imagem do Santo e aponta para 1922 se diminuirmos os cinco anos de 1927, quando da morte de Dinitério.
Imagem 2: Altar-mor de iniciativa de Jacintho Dias Ribeiro.
Por fim, vivia-se na República Oligárquica. O coronelismo estava em alta. Logo, era comum o abuso de poder, o clientelismo, as apropriações indébitas, inclusive da fé alheia. Estava em jogo o chamado “monopólio dos bens de salvação”. A disputa inglória do catolicismo popular frente ao catolicismo renovado. Dinitério Hércules da Silveira morreu no dia 20 de julho de 1927; aos 79 anos de idade. Teve o seu corpo encomendado pelo vigário Antídio Telles de Meneses e foi sepultado no cemitério Cruzeiro do Novo Século, em Maruim. Possivelmente teria sido irmão de Evário Hércules da Silveira, intendente em Santo Amaro das Brotas (1903/1904/1905/1925), Delegado da Liga Marítima de Sergipe, Juiz de Paz, Delegado de Polícia, Conselheiro Municipal, proprietário rural, dono do Engenho Limoeiro em Santo Amaro, de sítios em Maruim (Cana Brava, Santa Cruz) e Nossa Senhora do Socorro.
Certidão de óbito do Dr. Dinitério Hercules Silveira
Referências:
Andrade, Péricles. Sob o olhar diligente do pastor: a Igreja Católica em Sergipe. São Cristóvão: Editora UFS, 2010.
Bacellar, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2000. p.36).
Correio de Aracaju, 17 de setembro de 1927. p. 4. n.530
Dinitério Hercules da Silveira. Óbito. Disponível em:< https://www.familysearch.org/ark:/61903/3:1:3QSQ-G99T-2W1W?i=73&cc=2177298&cat=1482842>. Acesso em: 20. jul. 2023.
Santos, Gilvan de Jesus; Santos, Silvaney Silva. Santo amaro das Brotas, do histórico ao lúdico (Séc. XX). Aracaju: J. Andrade, 2017.
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