Jeová Santana [*]
O tempo, essa abstração que usamos, com exclusividade, para azeitar a máquina do capital. Domenico De Massi, sociólogo italiano, com seu “ócio criativo”, é uma das poucas vozes na contramão desse ordenamento, herança nazista, segundo o qual Arbeit Match Frei (“O trabalho liberta”).
Eis que de repente, por causa da dor que corta esses dias, fomos obrigados a redefinições dentro e fora do recanto sacrossantos dos lares, inclusive estender os olhos opacos aos invisíveis, os de paredes remendadas, os de céu e estrelas como teto.
Passei a primeira parte da quarentena meia-boca em Aracaju, o restante em Maceió. Defino-a assim, pois a maior parte dos moradores de ambas, diante do número “baixo” de casos, dá uma de Superman e sai de casa por dá cá aquela palha. Não sabia que havia tantos serviços essenciais para mover o formigueiro destemido que zanza, sobretudo, nos bairros.
Encontrei na primeira parada um salutar passatempo: arrumar livros em casa de minha mãe. Altas surpresas. Entre elas, o encontro de três ainda embalados no plástico do saudoso Círculo do Livro; raridades como a edição quase centenária de As primaveras, de Casimiro de Abreu, presente do amigo Reginaldo de Jesus (de Sergipe). Além do poeta, outros “velhinhos” notáveis: A oração dos apóstolos, de Rui Barbosa, 1923; e uma edição de Yayá Garcia, de Machado de Assis, 1953. (Sim, a grafia é esta, não a atualizada Iaiá).
Duas leituras
Na remoção dos ácaros dormentes em berço esplêndido, reli Moby Dick, de Herman Melville, tradução de Adalberto Rochsteiner e Monteiro Lobato. Foi legal rever a saga do velho capitão Ahab, em seu Pequod, a caçar a baleia que lhe comeu uma das pernas. É uma narrativa que cai bem nesses tempos de luta do homem contra a natureza. Em Maceió, numa espécie de osmose, passei de Melville para outro ícone com o mesmo tema: Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo. Tradução de ninguém menos que Machado de Assis. Aqui, uma particularidade: a cópia da segunda edição, no Brasil, de 1866, foi xerocada do exemplar pertencente ao bibliófilo Plínio Doyle. Para os termos náuticos, vali-me tanto do dicionário eletrônico quanto do Dicionário de português, da Porto Editora, presente do amigo Fábio Gomes (das Alagoas). “Em certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. É o que acontece, às vezes, olhando para uma mulher”. As metáforas marinhas, tão caras ao Bruxo do Cosme Velho, tiveram em Hugo uma matriz à altura.
Dois filmes
O tema não é novo; já foi retratado em A vida é bela (1997), de Robert Benigni. Ao contrário deste, focado no adulto que cria um mundo à parte para desviar do filho o horror nazista, o diretor de Jojo Hobbit (2019), Taika Wititi, põe na criança a perspectiva do drama, com o adendo de sua identificação com o regime ao ter Hitler (vivido pelo diretor) como amigo imaginário. Extrair leite dessa pedreira tão gasta não é tarefa fácil. O humor é um viés. Assim, ambas as experiências são bem-vindas, porquanto aquelas práticas nefastas ainda encontram eco, tanto no anonimato das redes de besteiras sociais, quanto na vida nada encantadora das ruas.
Dois documentários
Na hora em que, por meio de crises, a jiripoca pia, notam-se as fissuras do sistema econômico dos Estados Unidos, calcado no estilo self-made man, pilar do tal “Sonho Americano”. Dois documentários, de lá, colocam o dedo na ferida. “A geração da riqueza” (2018), cobre vinte e cinco anos de trabalho da fotógrafa Lauren Greefield sobre pessoas que fizeram do vil metal o objetivo maior de suas vidas, sob itens como a pornografia ou o mercanciar da infância. Como alerta sobre os perigos desse modelo, que se espalhou pelo mundo, há “Minimalismo – um documentário sobre as coisas que importam” (2017). Nele, depoimentos de profissionais que resolveram abandonar esse canto de sereia e passaram a ter outro modo de vida, calcado no menos, no mínimo, no pouco.
Diz-se que o mundo não será mais o mesmo depois da pandemia. É pagar para ver.
[*] É Mestre em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP, professor da Universidade de Alagoas, escritor e autor de diversos livros – Dentro da Casca (1993), A Ossatura (2002), Inventário de Ranhuras (2006), Poemas Passageiros (2011), entre outros títulos.
Foto: Denilma Diniz Botelho
Sempre que leio um texto de Jeová Santana, independente do assunto, se trágico ou cômico, saio leve da leitura. Em consonância com a famosa máxima de Buffon: “O estilo é o homem”, assim é Jeová.