Jeová Santana [*]
Antonio Candido observou em um dos seus textos luminosos que, no Brasil, sempre que o livro tentou entrar em cena, apareceu um suporte mais sedutor para silenciá-lo: o rádio, o cinema, a televisão. Parece que o celular pretende ser o golpe de misericórdia. Reporto-me apenas a duas imagens: pessoas “lendo” o celular no que restou de livrarias ou a desfilar, com ele a tiracolo, nas famigeradas bienais, nas quais o livro é o convidado, mas tem de disputar espaço com toda sorte de “atrativos”.
Os suportes até podem facilitar o trânsito da leitura, mas não devem substituir o livro no formato que conhecemos. Lembro-me de uma observação de Umberto Eco sobre essa questão: com o laptop, seus ombros não precisavam mais suportar o peso de tantos livros em suas palestras mundo afora. Convido o leitor a ver o homem da semiologia no documentário “Sobre memória” (2015), a passear entre os trinta mil volumes de sua biblioteca, onde funcionara um pequeno hotel (há outra, com mais vinte mil, numa casa no interior da Itália), e assim ter a dimensão da importância do livro para o criador de O nome da rosa.
Ainda estou longe deste número assombroso, mas confesso que avancei muito desde que, numa tarde de sol, contrariei a tronchura manual, peguei serrote, madeira e pregos para improvisar uma estante. Deu para o gasto anos a fio. De lá para cá, muitas páginas embaixo da ponte do tempo. Curto a materialidade dos livros, pois nos proporciona diversas formas de satisfação. Uma delas é arrumá-los. Essa ação traz prazer mental e nos tira do sedentarismo quando os músculos movem os sete volumes de Em busca do tempo perdido, os dois d’ A divina comédia, Dom Quixote e Guerra e paz, sem contar o estirão das obras completas. Desse jeito, livramo-nos das academias infestadas de Narcisos e regidas por músicas da moda.
A arrumação traz o reencontro com antigas leituras e deixa o olho ávido para as que estão pendentes. Traz à cena registros petrificados entre as páginas, tais como folhas de árvore, insetos, anotações, recibos, recados, fotos, relatos paralelos etc. Uma vez, em São Paulo, o funcionário de um sebo, na Sé, disse-me que o tom das dedicatórias revelava os altos e baixos na relação amorosa de um casal. Bingo! Também passei por uma aventura, só que menos romântica: em Campinas, na era mestrado, uma estante desabou e passou tirando tinta dos meus cabelos ainda não fugitivos. Fiquei imaginando as manchetes!
Para demarcar o que expus acima, dois exemplos: no território do espiritual, acolho estas palavras de Walter Benjamin: “Estou desempacotando minha biblioteca. Sim, estou. Os livros, portanto, ainda não estão nas estantes; o suave tédio da ordem ainda não os envolve. Tampouco posso passar ao longo de suas fileiras para, na presença de ouvintes amigos, revisitá-los” (1987, p. 227); quanto ao físico, não há como contestar as sensações do narrador-personagem d’ O irmão alemão, de Chico Buarque: “Há algo de erótico em separar dois livros apertados, com o anular e o indicador (…) Também gostava de esfregar as bochechas nas lombadas de couro de uma edição que, mais tarde, quando já me batiam no peito, identifiquei como os sermões do padre Antônio Vieira. (…) Mas chegava uma hora em que eu ficava impaciente para rever a minha biblioteca, até nas baratas pensava com nostalgia. Elas surgiam de trás dos livros, percorriam as lombadas de um lado a outro das prateleiras, e vai saber se sentiam na barriga aquele meu prazer na espinha” (2014, pp.10, 16, 17).
“Remédios da alma”. Esta é considerada a mais longínqua referência a uma biblioteca e a mais antiga declaração de amor aos livros. Foi posta pelo faraó Ramsés II sobre o pórtico de sua biblioteca em Tebas. Assim, vida longa ao objeto que Jorge Luis Borges considerou “uma espécie de santidade que devemos cuidar para que não se perca” (1978). Saravá! Amém!
[*] É Mestre em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP, professor da Universidade de Alagoas, escritor e autor de diversos livros – Dentro da Casca (1993), A Ossatura (2002), Inventário de Ranhuras (2006), Poemas Passageiros (2011), entre outros títulos.
Foto: Denilma Diniz Botelho
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