GILFRANCISCO [*]

Nascido a 7 de março de 1879, no Cais Dourado, num solar do Distrito do Pilar, na Rua do Julião, atual Campos Sales, Cidade Baixa, em Salvador (BA), era filho de Severino Gonçalves e Eufrosina de Aragão Sales. O jovem Arthur Gonçalves de Salles fez os primeiros estudos no Colégio Carneiro Ribeiro e os dons literários já se revelavam aos 13 anos de idade, quando escreveu seus primeiros versos, sendo considerado, no seu tempo, como um dos parnasianos da mais alta expressão poética.

Assentando praça no 9º Batalhão de Artilharia, matriculou-se mais tarde em 1901, na Escola Militar de Realengo, no Rio de Janeiro, mas desiste em seguida da carreira militar, pela qual jamais tivera vocação. Retornando a Salvador, cursa dois anos depois a Escola Normal, diplomando-se em 1905 como aluno-mestre, ao invés do alferes-aluno que antes pretendera ser, torna-se até o fim da vida professor primário, profissão de onde tira o sustento para uma numerosa família.

Em 1908, é nomeado bibliotecário da Escola Agrícola da Bahia, que ficava na Vila São Francisco do Conde, e passa três anos depois a exercer o cargo de adjunto do curso primário do Aprendizado Agrícola da Bahia, que funcionava na antiga abadia beneditina de Nossa Senhora das Brotas (Patronato Marquês de Abrantes), em São Bento das Lajes. Casando-se em 1914, passou a morar na zona propriamente urbana da Vila de São Francisco do Conde. Esta nova atividade desenvolvida por Arthur de Salles era em decorrência do retorno da Escola e suas instalações, à propriedade do governo federal, através do Decreto nº 8561 de 15 de fevereiro.

Com a instalação do movimento de 30 no poder, fecham-se de modo definitivo, os Aprendizados e durante este período que se encontrava em disponibilidade não remunerada, passa o poeta a residir em Salvador, onde se torna professor secundário de um estabelecimento particular, onde lecionando Português, Francês e História. Mais tarde o poeta vai lecionar em Barracão (BA) e, em 1935, no Aprendizado de Sergipe, localizado em Quissamã, no município de São Cristóvão,  próximo a Aracaju, onde se aposenta.

Capa do livro O poeta Arthur de Salles em Sergipe, de autoria de Gilfrancisco

A chegada de Arthur de Salles em Sergipe foi registrada na imprensa local:

Arthur de Salles

Pelo trem de amanhã procedente da Bahia, conforme aviso telegráfico que nos foi mostrado chegará a esta capital Arthur de Salles, poeta de mérito invulgar, o maior no Brasil, da escola parnasiana, depois do saudoso Emilio de Menezes, na opinião unânime na critica nacional. Funcionário  do Ministério da  Agricultura, pertencente ao quadro de professores, o poeta vigoroso e esmerado vernaculista demorar-se-á por algum tempo em nosso Estado. Os artistas sergipanos, poetas e prosadores, vão gozar o convívio de uma alma encantadora, simples e de um espírito culto.

(Correio de Aracaju. Aracaju, 17 de setembro de 1935)

Arthur de Salles

Chegou, hoje da Bahia, o consagrado poeta e professor Arthur de Salles, autor de “Música dos Bilros”, inimitável poema em quatorze versos, e de outras jóias líricas e parnasianas declamadas em todos os centros intelectuais do Brasil. O Correio visita o ilustre poeta.

(Correio de Aracaju. Aracaju, 18 de setembro de 1935)

Intelectual Arthur de Salles

Sergipe, desde ontem, tem em seu seio hospitaleiro o eminente homem de letras professor Arthur de Salles, príncipe dos poetas baianos, que entre nós vem exercer  elevada missão de professor do Aprendizado Agrícola,

Muito conhecido em nosso meio lítero social, onde já conviveu em dias idos, não é um estranho no Estado.

Ao talentoso cordealíssima  dos que  mourejam no “Sergipe-Jornal”.

(Sergipe-Jornal. Aracaju, 19 de setembro de 1935)

Profº Artur de Sales

Pelo trem do horário, chegou, ontem, a esta capital, o consagrado intelectual brasileiro Artur de Sales, – o príncipe dos poetas baianos – que veio assumir as funções de professor do Aprendizado Agrícola deste estado, para as quais foi recentemente nomeado.

Artur de Sales está por intimo laços espirituais ligados a Sergipe, onde passou bom tempo de sua mocidade, compondo, na Estância, o seu primeiro verso.

Mandamos ao fulgurante homem de letras os nossos abraços de boas vindas e os nossos veros   anelos pela sua felicidade pessoal.

(O Estado de Sergipe. Aracaju, 19 de setembro de 1935)

Na edição de 26 de julho de 1936 d’O Estado de Sergipe apareceu o artigo Sangue Mau e Praieiros, assinado pelo itabaianinhense Exupero de Santana Monteiro registrando seu comentário sobre o livro recebido das mãos do poeta Arthur de Salles:  “Nascidos ambos na Bahia, ambos voltados para o estudo dessas pobres populações litorâneas que prendem a existência à crista revolta do mar, ou às restingas e mangues, não é demais que os associe – poeta e romancista – nesta despretensiosa nota, principalmente quando os irmana o mesmo sentido de poesia marinha, estudando e cantando na prosa grácil de um, e nos versos comovidos do outro.

O acre bafio das marés, o perfume das coisaneiras em flor; o nordeste áspero enfunando as velas, flabelando nas palmas dos coqueiros e zumbindo no teto dos tejupares; as calmarias mornas, como um grande hiato na convulsão dos elementos; a faine obscura e sem trégua daqueles seres bronzeados pelo sol; o amor tecendo e destecendo lôbregas existências, tudo verdadeiramente sentido e comovido, temor nos versos de Artur de Sales”.

Em 1961, no nº26 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Urbano de Oliveira Lima Neto publicou sua oração de paraninfia na colação de grau dos Engenheiros Agrônomos, turma 1961 da Escola Agronômica da Bahia, na qual relembra o amigo: “Naquelas praias onde as ondas depõem os seus “liriais crisântemos”, naquelas areias cheias de valvas irisadas pelas cambiantes do sol em “ocaso no mar”, onde Iemanjá recebe as carícias das ostras nereidas, Arthur de Salles, o mago das rimas, meu inesquecível amigo, dizia-me sempre em nossas caminhadas à hora do Ângelus, ou sob plenilúnios encantadores, tudo aquilo quanto às musas lhe segredaram durante o dia. Tudo ali encantava. Ilha das Fontes… Cajaíba, um sonho que se fez ilha, tudo era poesia; não foi, pois, sem razão que lhe deram o nome de um grande santo que foi também um grande poeta”.

Arthur de Salles faleceu na cidade natal, a 27 de junho de 1952, às 4 horas da manhã, em casa de sua irmã, situada na Boa Vista de Brotas, com 73 anos de idade, vitima de uma cirrose hepática com ascite (acúmulo de líquido seroso ou serofibroso no peritônio), sendo o mesmo sepultado no Cemitério da Venerável Ordem Terceira de São Francisco, nas Quintas dos Lázaros. Hoje reverenciado depois de muitos anos silenciado, existe uma exaustiva fortuna crítica sobre sua vida e obra, pois continua sendo um dos grandes vates da poesia baiana.

Sobre sua morte escreveram dois de seus maiores amigos sergipanos, Junot Silveira, em 4 de julho, no jornal A Tarde, de Salvador, e Zózimo Lima  no Correio de Aracaju, na edição de 22 de agosto. O primeiro, jornalista que já residia em Salvador: “É um gigante da inteligência como esse, um homem raro na história do pensamento brasileiro como foi o autor de “Ramo da Fogueira”, que morreu na pobreza. Em extrema pobreza. Na vida prática não foi além de professor de aprendizados agrícolas e de cursos ginasiais. Mas, convenhamos que sendo um coração puro, só poderia se sentir a vontade no contacto com a pureza dos corações infantis. E quantos ricos, num transbordamento de apego à vida, ansiando a imortalidade à guisa de compensação, não dariam a sua  fortuna, todas as suas propriedades, as suas coleções de fim, para, depois de mortos, durar apenas um instante do tempo que o nome Arthur de Salles permanecerá na memória do povo!…”.

O segundo, Zózimo Lima, que o conhecera  em Salvador nas rodas literárias, ao lado de Carlos Chiacchio, Henrique Câncio, Roberto Correia e outros: “Encontro-o, anos depois, em Sergipe, na função de professor do Patronato de Menores, onde teve durante vários anos, vindo, amiúde, a Aracaju, para o convívio, entre outros, do irmão de sonho, esse magnífico artista que é Garcia Rosa.

Por aqui andava ele, vestido pobremente, quase anônimo, distribuindo, entre os poucos conhecidos que lhe admiravam a força do talento, os tesouros opulentos dos seus versos.

As dificuldades da vida material juntavam-se às desventuras de ordem moral, provenientes da perda irreparável da querida esposa e do idolatrado filho que herdaria o patrimônio da cultura transformada em rimas.

Artur de Sales, um dos maiores poetas brasileiros e o máximo da Bahia depois de Castro Alves, muito sofreu a ingratidão dos homens. Para tanto, é bem verdade, concorreu a sua doentia timidez que não era menor do que o seu autismo, a sua despreocupação pelos bens materiais”.

Mário Cabral, em suas memórias “Espelho do Tempo, descreve muito bem a figura do poeta: “Hoje, olhando para o passado, relembro, com nitidez, a figura magra, simples e bondosa do meu amigo, do meu mestre, do meu companheiro de longas conversas noturnas, sentados, com outros literatos sergipanos – Luciano Lacerda, José Calasans, Damião Mendonça, Pires Wynne, Freire Ribeiro – à mesa de mármore do Café Central, a falar de poesia e de poetas, até que o gerante nos botava para fora, pois a casa fechava à meia noite em ponto, naquela longínqua, triste e sonolenta Cidade de Aracaju, lá para a década de 1930”.

Quase vinte anos depois de sua morte, o poeta Clodoaldo de Alencar publicou na revista sergipana, Síntese, julho de 1971, a tradução do poema Ocaso no Mar, segundo ele, o mais belo soneto descritivo da língua portuguesa.  Em discurso do Acadêmico José da Silva Ribeiro Filho ao Recepcionar o poeta José Santos Souza, em 31 de julho de 1971, relembra o amigo Arthur de Salles:  “Arthur de Salles, conheci-o em casa de Garcia, de quem foi hospede certo em fins de semana, quando lecionava na Escola de Iniciação Agrícola Benjamin Constant. Posteriormente, se me não engano em 1937, tive a mais inesperada das surpresas ao encontrá-lo no Rio, onde se achava há várias semanas, com o fim exclusivo de pedir ao baiano que ocupava a Pasta da Educação que lhe melhorasse os pífios vencimentos de professor, que andavam pela casa dos quatrocentos mil réis.

Arthur Sales – desenho de Presciliano Silva

O humanista que ele era, conhecedor de línguas vivas e mortas, o poeta proclamado por consagrado crítico como o maior da Bahia, depois de Castro Alves, aproximava-se da idade provecta sem eira nem beira.

No Rio, dava-lhe pousada em sua modesta casa na praia de Copacabana quem já então era tido e havido como um dos mais autênticos representantes da nossa poesia religiosa – o homem sem mácula que foi Durval de Morais”.

Hino ao Senhor do Bonfim

Arthur de Salles

Glória a ti, neste dia de glória,

Glória a ti, redentor que há cem anos

Nossos pais conduziste à vitória

Pelos mares e campos baianos

Dessa sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia

Glória a ti, nessa altura sagrada,

És o eterno farol, és o guia,

És Senhor sentinela avançada,

És a guarda imortal da Bahia.

Dessa sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Dá justiça e da concórdia.

Aos teus pés que nos deste o direito.

Aos teus pés que nos deste a verdade,

Canta e exulta num férvido preito

A alma em festa da tua cidade.

Dessa sagrada colina, Mansão da misericórdia.

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia.

À alma heróica e viril do teu povo,

Nas procelas sombrias da dor,

Como a pomba que voa de novo,

Sempre abriste o teu seio de amor.

Dessa sagrada colina,

Mansão da misericórdia,

Dá-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia.

Esse poema de Arthur de Salles, “Hino ao Senhor do Bonfim”, escrito em 5 de maio de 1923 e publicado no Rio de Janeiro, na revista A Ordem, edição de out/nov, deste ano, a pedido da Comissão Oficial do Centenário da Independência, evoca um fato consignado no poema de Ladislau Santos Titara, Paraguassu. Havendo os portugueses, durante a campanha, retirado de sua igreja a imagem do Senhor do Bonfim, julgaram os baianos que a vitória ficaria incompleta se a imagem não fosse restituída a seu templo. Por esse motivo, realizou-se um cortejo para vê-la de volta, participando da romaria o povo, as tropas vencedoras e os membros do governo.              

O Hino tornaria nacionalmente conhecido, quando musicado pelo maestro João Antonio Wanderley e incluído na faixa 6, lado 2, do LP Tropicália ou Panis et Circencis, Philips, 1968, (segunda tiragem pela Fontana, Série Econômica, 1979) cantada por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio), com arranjos e regência de Rogério Duprat. Entretanto, por motivos desconhecidos, a autoria do poema foi omitida aparecendo apenas o nome de Wanderley. Em 1993, a Philips relançaria o antigo vinil  Tropicália, em versão cd e mais uma vez a autoria do “Hino ao Senhor do Bonfim” seria omitido.

Quatro anos depois, foi lançado pelo selo Natasha, para as comemorações dos 30 anos do movimento Tropicalista o cd, em homenagem ao carnaval da Bahia, aonde vamos encontrar, na faixa 13, o Hino ao Senhor do Bonfim, na interpretação dos cantores Lazzo e Virginia Rodrigues e mais uma vez o nome de Arthur de Salles deixa de ser registrado. Devido à desatenção ou omissão dos produtores, esses equívocos foram reproduzidos em mais de duas dezenas nos livros, que trataram sobre o movimento tropicalista. Numa dessas publicações (Tropicália: Alegoria, Alegria, de Celso F. Favaretto, 1979), o autor atribui o “Hino ao Senhor do Bonfim” ao poeta baiano Péthion de Villar (Egas Moniz Barreto de Aragão, 1870-1924).  

  

[*] É jornalista, pesquisador e professor universitário.