GILFRANCISCO [*]
Lembro-me que nos anos 70 (1977) o jornal alternativo Versus, editado mensalmente em São Paulo, cuja linha editorial era, manter fidelidade à proposta latina americanista e popular, oferecia para cada assinante um livrinho em edição espanhola de César Vallejo. No início do ano de 1980, estive por dois meses no Peru, frequentando alguns seminários sobre literatura peruana, na Universidade Nacional Maior de San Marcos, uma das primeiras universidades fora do continente europeu, que se constituíram na América espanhola (1551), onde travei os primeiros contatos com a obra de César Vallejo, através das obras completas do conterrâneo José Carlos Mariátegui (1894-1930), disponível em vinte pequenos volumes de bolso.
Anos depois, durante o VIII Congresso Brasileiro de Teoria e Crítica Literária, V Seminário Internacional de Literatura, realizado em setembro de 1986, em Campina Grande (PB) retomei uma longa conversa com o poeta Thiago de Mello, acerca do pensamento estético de Vallejo, presente quase na totalidade de suas obras. No Brasil é praticamente inédito, tem apenas um livro, “Poesia Completa”, que foi traduzido por Thiago de Mello em 1984, publicada por Enio da Silveira, um dos maiores editores já existentes no país. O poeta Thiago de Mello enfrentou esta tradução com coragem, e acima de tudo com amor e respeito, ao longo de dois anos de trabalho e pesquisa.
É, injustificavelmente, o menos conhecido entre “nós”, apesar, de ter sido, como escreveu Mariátegui, primeiro analista do marxismo na América Latina, “a fonte, a seiva que alimentou toda uma tomada de consciência, no âmbito literário, da realidade sociocultural latino-americana” César Vallejo esse gigante que não pertence somente aos peruanos, e que é ao lado de Ezra Pound (1885-1972), E. T. Eliot (1888-1965), Lezama Lima (1910-1976), Jorge Luis Borges (1899-1986) e Octavio Paz (1914-1998), um dos maiores poetas do século XX, foi à máxima expressão disso que falamos.
Portanto, Vallejo é portador de uma obra que pulsa a lírica indo-hispana como substrato-cultural. Poeta e romancista, (1893-1938), fundiu as ambições formais das vanguardas europeias com as tendências da vanguarda política. Sua obra é marcada pela herança índia, por seu “andinismo” e pelo fatalismo profundamente pessimista em face do amor e da morte. César Vallejo é considerado o poeta mais original que a América espanhola produziu.
A América Latina parece constituir em um Continente tão amplamente inexplorado, no que diz respeito ao seu grau de problemas, que aparentemente investir-se de literatura, mostra-se bastante apropriado para traçar um quadro aproximado do que se passa à nossa volta. Porque a América Latina ainda é o lugar do “real maravilhoso”, de todas as mestiçagens, ponto de todas as utopias. É um Continente demoníaco, fonte de todas as possibilidades. Há nela dois universos contrapostos: o mundo branco europeu, cruel e voraz; e o dos índios e negros, mítico e mágico.
Mas, dentro dessa literatura coexistem figuras como as de Jorge Luís Borges, o argentino que argumentava, ironicamente, que o legado de um escritor dessas terras é a própria cultura ocidental; mais do que os europeus. Portanto, podemos ter a segurança de sermos donos dessa herança. Além de outros escritores que dizem que o fundamental é nossa capacidade de assimilação, além dos valores regionais e vernáculos. Durante muito tempo, a equação Nacionalismo/Cosmopolitismo foi uma preocupação dos escritores latino-americanos.
A literatura peruana ganhou seu verdadeiro impulso com o Romantismo surgido com os poemas de Mariano Melgar. A grande figura da época é Ricardo Palma, criador de um gênero novo, as “Tradições peruanas”. Manuel Gonzáles Prada foi o precursor do Modernismo, representado por José Santos Chocano, um dos maiores poetas da América Latina, e por José Maria Eguren. Foi no indigenismo que a literatura peruana encontrou sua maior originalidade. José Carlos Mariátegui, um dos precursores e teóricos desse movimento, ligou-se a César Vallejo, que exerceu grande influência sobre os poetas de seu país.
Indigenismo é afeição aos indígenas ou às suas coisas e pode apresentar-se como um conjunto de ideias e valores que constituem formação de atitudes favoráveis em relação ao índio e à sua cultura, orientando a execução de uma política protecionista. Este Movimento político-social literário que se desenvolveu por volta dos anos 1920 na América Latina, notadamente nos países andinos, para defender a causa das massas indígenas oprimidas pelo sistema semifeudal herdado da colônia. O problema do índio também é o centro da obra de Ciro Alegria, José Maria Argüedas, Alcides Argüedas, Jorge Icaza e Manuel Scorza, este último, introdutor do fantástico dentro da literatura de protesto social.
César Vallejo conseguiu uma estruturação definitiva em sua obra, consagrando-se como orientador da nova poesia, a qual se bifurca em dois caminhos: o purismo e o indigenismo, este proveniente de complexos fatores sociais, é uma constante na poesia peruana, enraizada a terra e ao problema humano. Vallejo aprofundou sua sensibilidade no tipicamente peruano e criou formas transcendentais com seus temas. Sua poesia é autenticamente regional, ao mesmo tempo em que universal na sua dor, aproximando-se de todos os homens.
Toda sua obra é uma autobiografia, carregada de vivências sombrias e patéticas, perpassa a paisagem que foi testemunha dos anos de infância e adolescência embebidos de sofrimentos. Nunca esqueceu Santiago de Chuço, árvores, pássaros, rochas e abismos.
Foi na universidade de Trujillo, em 1915 que Vallejo começou a se relacionar com destacados artistas e intelectuais entre os quais, Victor Raúl Haye de la Torre, José Eulogio Garrido, Alcides Spelucin, Macedônio de la Torre, entre outros, integrantes de “Norte”, grupo liderado por Antenor Orrego. Época de mudanças sociais e políticas, influenciada pela força Armada e oligarquias conservadoras, e a irrupção da filosofia marxista, fase que corresponde seus primeiros versos publicados. Em Lima faz amizade com Manuel Gonzáles Prada e Abraham Valdelomar, e integra o grupo “Colonída” e toma contato com novas correntes europeias.
Influenciado pelas ideias marxistas, Vallejo continua a escrever poemas que aparecerão em seu primeiro livro. Declama na Universidade um poema intitulado “América Latina”, e faz leitura de escritores russos, ingleses e espanhóis. Em 1917 colabora em jornais de Trujillo e de Lima, além de defender ideias progressistas sobre o pagamento de dividas dos países latino americanos. Em dezembro embarca para Lima.
Razoavelmente conhecido nos meios intelectuais em 1918, entra em contato com vários periódicos onde publica alguns poemas e passa a dirigir um colégio. Vallejo prossegue seus estudos (na Universidade Nacional Maior de San Marcos) para conseguir o doutorado de Letras e de Direito. Publica seu primeiro livro, Los Heraldos Negros, 1919. Em agosto do ano seguinte viaja para sua terra natal passando por Huamachuco, realizou uma conferência que causou escândalo. Denunciado pelas autoridades, foi acusado por praticar distúrbios políticos juntamente com outros, sendo preso em 6 de novembro e liberado em 26 de fevereiro do ano seguinte.
Em junho de 1922, Vallejo participa de um concurso literário e consagra-se vencedor. Com o dinheiro do prêmio consegue publicar seu segundo volume de poemas. Trilce, livro publicado neste ano, vamos assistir o poeta processar a grande rebelião de um artista inconformado com o passado, contra os velhos moldes. Um protesto contra um mundo de injustiça, desobedecendo aos cânones tradicionais que repercute em todos os estratos da criação poética.
Depois de abandonar as estruturas rígidas da forma poética, Vallejo procura influir no leitor vários efeitos visuais, incorporando as dimensões do espaço à poesia, seguindo os ensinamentos dos poetas franceses Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Guilherme Apollinaire (1880-1918), criadores da poesia francesa moderna. Em julho de 1923 encontra-se em Paris, onde vive com dificuldades financeiras, além de ter sobrevivido de uma hemorragia, após uma intervenção cirúrgica. Em Paris conhece o escultor José de Creft que expõe três perfis de Vallejo e o pintor Juan Gris.
Em 1925 trabalha como secretário da empresa “Os grandes periódicos ibero-americanos” e passa a colaborar com uma série de artigos para as revistas “Variedades” e “Mundial”, ambas peruanas. Como bolsista do governo Espanhol viaja em outubro para a Espanha, onde requenta os teatros, concertos, exposições e muitos cafés. Aos 35 anos de idade, César Vallejo busca algo dentro de si. Medita e se interroga. Este é o início de uma profunda crise existencial que permaneceria entre os anos de 1927/1928. Em abril, renuncia o emprego de secretário e em setembro renunciaria também a bolsa do governo espanhol.
Em outubro de 1928 encontra-se na União Soviética, onde permanece por um mês e retorna à Paris. Entre 1929/1930 estuda profundamente o marxismo, pois sua ideologia se cristaliza transcendente como um militante marxista, mas com ressalvas ao comunismo. Em outubro faz sua segunda viagem a URSS e escreve “A Arte e a revolução”, “Moscou contra Moscou” (obra teatral). Em maio de 1930, passa um mês na Espanha onde conclui a 2ª edição de “Trilce”. Em 2 de dezembro é declarado indesejável e expulso do território francês, partindo para morar na Espanha. Filiado ao Partido Marxista espanhol, ensina as primeiras noções do marxismo a estudantes camponeses simpatizantes.
Em 1932, terceira e última fase da trajetória literária de César Vallejo: “Poemas Humanos” (1932-1937), livro póstumo, publicado em 1939, nasce sob a influência se sua terceira viajem a Rússia, trás uma linguagem mais verbosa, coloquial e menos exata, talvez levado pelo desespero e pressentimento da morte próxima, exigem do poeta Cesar Vallejo uma urgência que não tem tempo para rever e polir seus últimos versos. Vallejo prossegue com o tema central de outros livros; o homem com suas esperanças e suas dores. É também dessa fase os versos agoniados do livro “Espanha, afasta de mim este cálice” (set/nov, 1937), que comove a Espanha inteira.
Em julho de 1936 inicia-se a guerra civil espanhola e diante dos acontecimentos, Vallejo colabora decididamente na criação de “Comitês de Defesa da causa republicana”, coletando fundos, escrevendo uma série de artigos denunciando a “não intervenção”, que somente favorece o fascismo franquista. Mas em virtude do desenvolvimento dos acontecimentos, aumentam sua inquietude, fazendo-o viajar para Barcelona e Madrid, onde permanece até o dia 31 de dezembro. Retornando a capital parisiense, prossegue escrevendo seus artigos contra o fascismo. Em julho de 1937 o poeta participa em Valência, como representante do Peru, do Congresso Internacional de Escritores Antifascistas e choca-se com a vaidade e o oportunismo de muitos delegados.
Num domingo, 13 de março de 1938, após o almoço, o poeta se deita para descansar uns instantes, mas na se levanta mais. É transportado para a Clínica Arago, onde os médicos não conseguem diagnosticar a doença que o consome. Somente mais tarde se saberá que Vallejo tinha adquirido malária, que reapareceu depois de 20 ou 25 anos, seria a consequência de um estado geral debilitado. No dia 29, chama Georgett, sua mulher e dita: “Qualquer que seja a causa que tenha a defender diante de Deus, mais além da morte, sei que tenho um defensor: Deus”. Após longa agonia, morre em Paris às 9,20 da manhã de 15 de abril, uma sexta feira santa de 1938, aos quarenta e seis anos de idade. É sepultado no Cemitério de Montrouge. Desde 1970 os restos mortais de César Vallejo se encontram no Cemitério de Montparnasse.
O poeta peruano produziu uma poesia desesperadamente vital, de grande riqueza expressiva e emotiva. Em nome de uma coletividade humana, converte-se em um buscador do transcendental, cujo desejo de comunicação humana vê através de uma desordem dos sentidos, pois esse tormento pessoal sente necessidade de alertar o infeliz. Vallejo honrou e dignificou seu idealismo, ao qual foi fiel até o fim de seus dias, lutando, sempre, incansavelmente, pela organização e libertação dos trabalhadores e pela construção de uma sociedade com que ele sonhava, onde a maioria do povo pudesse auferir as riquezas da terra e o produto de seu trabalho. Publicações: Os arautos negros, 1919; Trilce, 1922; Poemas Humanos (1932-1937), 1939 e Espanha Afasta de mim este cálice (1937), 1939.
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Espanha, afasta de mim este cálice
César Vallejo
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Crianças do mundo,
se a Espanha cai – digo só por dizer –
se cai
do céu abaixo seu antebraço que amarrem
pelo cabresto duas lâminas terrestres;
crianças, que idade a das frontes côncavas!
Como é cedo no sol que vos dizia!
Que veloz o ruído antigo em vosso peito!
No caderno que velho é o vosso 2!
Crianças do mundo, está
a mãe Espanha com o seu ventre às costas;
está nossa mestra com suas palmatórias,
está mãe e mestra,
cruz e madeira, porque vos deu a altura,
vertigem e divisão e soma, crianças;
ela está com ela, pais processuais!
Se cai – digo só por dizer – se cai
a Espanha, da terra para abaixo,
crianças, como cessareis de crescer!
Como o ano vai castigar o mês!
Como os dentes se reduzirão a dez,
a garatujas o ditongo, o pranto a medalha.
Como vai o cordeirinho continuar
preso pela pata ao grande tinteiro!
Como descereis as grades do alfabeto
até a letra em que a pena nasceu!
Crianças
filhos dos guerreiros, entretanto,
baixai a voz, que a Espanha está neste momento repartindo
a energia entre o reino animal,
as florezinhas, os cometas e os homens.
Baixai a voz, que está
com o seu rigor, que é grande, sem saber
o que fazer, e está em sua mão
a caveira falando e fala e fala,
a caveira, aquela que tem tranças,
a caveira da vida.
Baixai a voz, vos digo:
baixai a voz, o canto das sílabas, o pranto
da matéria e o rumor menor das pirâmides,
e ainda
o das frontes que andam com duas pedras!
Baixai a respiração, e se
o antebraço desce,
se as férulas soam, se é a noite,
se cabe o céu em dois limbos terrestres,
se há ruído no som das portas,
se eu tardo,
se não vedes ninguém, se vos assustam
os lápis sem ponta, se a mãe
Espanha cai – digo só por dizer –
crianças do mundo, andai, a procurá-la!
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[*] é jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
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