Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

O centenário de nascimento da professora Maria Thétis Nunes é uma oportunidade ímpar para as novas gerações conhecerem a vasta produção intelectual da principal historiadora sergipana do século XX. Nosso objetivo aqui é colocar em evidência as concepções de história e historiografia presentes na obra da historiadora, inserindo-a no contexto mais amplo de participação em congressos e associações de historiadores. Além das relações de sociabilidade estabelecidas nessas ocasiões, penso que as comunicações apresentadas em congressos e/ou publicadas em anais trazem consigo as disputas historiográficas presentes nas organizações dos historiadores em suas entidades nacionais, como a Associação Nacional de História (ANPUH) e a Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH).

De um modo geral, sua produção historiográfica tem sido analisada a partir de sua participação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ressaltando-se a influência intelectual marxista de Nelson Werneck Sodré (OLIVEIRA, 1997). Por certo, é incontornável essa presença desde a sua monografia concluída na primeira turma desta instituição, tratando do pioneirismo do trabalho intelectual de Silvio Romero e Manoel Bomfim. Mesmo sendo publicada tardiamente, esse texto já apontava para um dos traços dominantes de sua produção intelectual: a objetividade (SANTOS, 1999: p. 53).

Mesmo sendo inegável a importância dessa instituição na sua trajetória profissional, o seu “peso qualitativo somente poderá ser dimensionado quando comparado com outros fatos e acontecimentos de sua trajetória” (SANTOS, 1999: p. 57). Desse modo, talvez o mais apropriado seja incluir na análise de sua obra o lugar social da produção, revelando sua contribuição como persona acadêmica nos embates epistemológicos e institucionais, nas décadas de 1970 e 1990, na definição do ofício de historiador.

Na segunda metade dos anos 1970 e início dos anos 1980, o embate institucional e epistemológico entre os associados da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH), criada em 1961, sobre a participação ou não dos professores não-universitários nos quadros da entidade trouxe dissensões que tinham como pano de fundo a definição de qual é o papel do pesquisador, do professor e sobre o ensino de história.

Não aceitando essa incorporação de professores e estudantes à ANPUH, um grupo de historiadores formou a Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH), em 1981, entendendo que a “História Científica seria distinta da história ensinada, portanto avessa ou reacionária a sua vulgarização e socialização para um público leitor ‘ávido’ por história”. Ao mesmo tempo, e em continuidade a este significado, mantinha-se o “mito positivista de uma ciência pura e neutra, afastada das demandas sociais e políticas de seu tempo” (GEMINIANO, 2020: p. 44).

Na criação da SBPH, buscava-se “convocar os que se sentiam marginalizados pela ANPUH, desde que fossem ativos na produção científica”, entre os quais, os “pesquisadores que integravam os Institutos Históricos e Geográficos que eram associados à prática amadora da História”. Entretanto, os interessados em filiar-se como sócios-efetivos da instituição poderiam defender “diferentes correntes teórico-metodológicas”, desde que rejeitassem “manifestações de caráter político ou religioso” (MACHADO, 2016: p. 143-144). A filiação de Thétis Nunes como sócia efetiva na SBPH, nos anos 1980 e 1990, talvez tenha se dado pela amizade e afinidade intelectual com os professores José Calasans, Consuelo Pondé e Cecília Westphalen (SILVA, 2019: p. 271 e 279).

Com base no levantamento realizado em bibliotecas e arquivos, em torno dos textos publicados nos anais da SBPH, observamos que, apesar da existência de temáticas mais amplas relativas à História do Brasil e de Sergipe, como a Política Educacional de Pombal e sua repercussão no Brasil-Colônia (1983), o Poder Legislativo e a Sociedade Sergipana (1994) ou as Câmaras Municipais e sua atuação na capitania de Sergipe D’El Rey (1995), há um nítido predomínio da perspectiva biográfica de análise das contribuições de Felisbelo Freire (1996), Manoel Bomfim (1997), Nelson Werneck Sodré e Gilberto Freyre (2000), Silvio Romero (2001), entre outros, para a historiografia brasileira.

Nesse conjunto de comunicações de pesquisa, identificamos determinada ideia de história que é atravessada pelo julgamento e o exame de atores e acontecimento, com base no ideário iluminista, sobressaindo “a ideia de que o conhecimento (científico) liberta o homem da sua incivilização e é o todo-poderoso responsável pelo bem-estar espiritual e material” (FREITAS, 2007: p. 232).

Em continuidade ao conceito iluminista de progresso, a influência isebiana contribuiu para a consolidação da ideia, presente na obra de Thétis Nunes, de que a “utopia nacionalista” daria “por findo o ciclo do atraso”, convergindo para certo espírito ufanista da época. A emergência do novo e a vontade de mudança dariam o tom dos anos 1950 e início dos anos 1960, marcando, indelevelmente, a formação cultural da professora em sua crença no progresso contra o obscurantismo e a estagnação (VELLOSO, 1991: p. 122).

Vinculada à tradição historiográfica do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, herdeira da tradição republicana e das ideias de Tobias Barreto, Sílvio Romero e de João Ribeiro, Thétis Nunes “revelou-se como historiadora voltada para a construção da identidade do sergipano” (DANTAS, 2012: p. 366). Nos textos sobre esses intelectuais vemos uma preocupação com a renovação das ideias no Brasil, na busca por “uma leitura comum de passado e um projeto comum de futuro. Esse projeto de futuro era pautado na construção de uma civilização no Brasil” (SANTOS, 2014: p.114).

Ao mesmo tempo, esse fazer biográfico dialogava com a cultura intelectual do nacionalismo isebiano, como podemos verificar nos textos sobre Sílvio Romero e Nelson Werneck Sodré, no sentido de que o nacionalismo se apresentava como “libertação”, isto é, “a consciência nacionalista não seria, pois, uma falsa consciência nem poderia servir como instrumento de dominação de classe; ao contrário, consciência lúcida e clarividente, serviria à revolução brasileira” (TOLEDO, 2001: p. 50).

Mesmo se considerando uma “marxista não ortodoxa”, Thétis apropriou-se das ideias da visão dialética da história e da primazia dos fatos sociais e econômicas na sua interpretação histórica sobre Sergipe. Ao contrário do marxismo de Nelson Werneck Sodré, a historiadora sergipana utilizou-se de uma leitura acadêmica do marxismo para a construção de sua obra, renunciando a seus aspectos revolucionários e abdicando da ideia de que o historiador é um agente transformador (REZENDE, 2008: p. 189).

No necrológio de José Calasans, Cecília Westphalen (2001: p. 143) afirmara que a SBPH fora criada contra os “quadros de ferro da ideologia marxista que sufocavam as universidades brasileiras”, na década de 1980. Mesmo não compartilhando dessa posição ideológica, Thétis Nunes atuou nas reuniões da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, principalmente, nos anos 1990, preocupada com a busca de uma história científica de Sergipe, pautada na objetividade dos fatos, mas, principalmente, revelando o aporte renovador dos intelectuais sergipanos para a história e historiografia brasileiras.

Como cada geração conhece mais e melhor o passado do que a precedente e, portanto, podemos retificar versões do passado histórico, é exatamente essa historicidade do próprio conhecimento que obriga ao historiador a haver-se com toda a produção que procura superar (MALERBA, 2006: p. 15). Nesse sentido, a obra de Thétis Nunes permanece como referência incontornável para os assuntos para os quais se debruçou, especialmente por possibilitar uma abertura para novas searas, novos temas e novas abordagens sobre o passado sergipano.

BIBLIOGRAFIA

DANTAS, Ibarê. História da Casa de Sergipe (1912/2012). São Cristóvão: EDUFS, 2012.

FREITAS, Itamar. Historiografia Sergipana. São Cristóvão: Editora da UFS, 2007.

GEMINIANO, Wagner. A invenção da historiografia brasileira profissional. Vitória (ES): Editora Milfontes, 2020.

MACHADO, Daiane Vaiz. Modo de ser historiadora: Cecília Westphalen no campo historiográfico brasileiro da segunda metade do século XX. História da Historiografia. Ouro Preto, Nº 22, dezembro 2016, pp. 134-151.

MALERBA, Jurandir. Teoria e História da Historiografia. In: MALERBA, Jurandir (org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.

OLIVEIRA, Norberto Rocha de. Maria Thétis Nunes: Uma contribuição para a historiografia sergipana. São Cristóvão: Departamento de História/UFS, 1997 (monografia de graduação).

REZENDE, Antônio Paulo. História e Materialismo Histórico. In: SILVA, Marcos (org.). Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008.

SANTOS, Magno Francisco de J. A revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a invenção da historiografia sergipana. In: ALBUQUERQUE, Samuel B. de M.; SANTOS, Magno Francisco de J. e SANTOS, Ane Luíse Mecenas (orgs.). História, Memória e Comemorações na Casa de Sergipe. Aracaju: IHGSE, 2014.

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SILVA, Bruna. Associações de historiadores no Brasil: a SBPH entre lugares, normas e grupos (1961-2005). Marechal Cândido Rondon (PR): PPGH/UNIOESTE, 2019 (Tese de Doutorado).

TOLEDO, Caio Navarro de. Nacionalismo e ISEB em Nelson Werneck Sodré. In: SILVA, Marcos (org.). Nelson Werneck Sodré e a historiografia brasileira. Bauru (SP): EDUSC; São Paulo: FAPESP, 2001.

VELLOSO, Mônica Pimenta. A dupla face de Jano: romantismo e populismo. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). O Brasil de JK. Rio de Janeiro: Editora da FGV/CPDOC, 1991.

WESTPHALEN, Cecília Maria. Perda irreparável. José Calasans (1915-2001). Revista da SBPH. Curitiba, n. 20, p. 143, 2001.