Por Manuel Rui [*]
O indulto é conhecido desde tempos imemoriais. Os carnavais, depois Carnaval, invenção urbana mais tarde apropriada pelas favelas e associações denominadas Escolas de Samba.
Para mais fácil entendimento, indulto é perdão em determinadas circunstâncias. Há registos muito antigos desta “clemência”. Na Grécia antiga Sócrates disse: “só quem entende a beleza do perdão pode julgar seus semelhantes” e também no Direito Romano já existia esse perdão.
Na religião cristã há quem descubra, logo no gênesis, o perdão. Deus perdoou Caim pelo ato que cometeu depois de tê-lo amaldiçoado pela morte do irmão Abel.
Na antiga sociedade democrática de Atenas, na guerra civil de 403 antes de Cristo, para qualquer indivíduo receber a clemência deveria apresentar um requerimento assinado por 6.000 pessoas…
Ao longo dos tempos, não faltaram registros da utilização abusiva, por nobres e monarcas, beneficiando amigos a quem pudessem pagar pelo perdão.
Hoje o instituto vem consignado nas constituições de países em todos os continentes.
O indulto é causa extintiva da punibilidade e motivo para a extinção da execução da pena. Há quem entenda como necessário o arrependimento do indultado…
No Brasil, o indulto obedece a requisitos formais e por decreto presidencial, é simbólico ter-se escolhido o 25 de dezembro e denomina-se “Indulto Natalino”.
O perdão individual de Bolsonaro é inédito desde 1945, decreto igual havia sido assinado por José Linhares, para 2 cidadãos italianos, mas “graça constitucional” não tem precedentes.
Um dia depois de o deputado federal Daniel Silveira ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal à perda de mandato, suspensão dos direitos políticos e uma pena de 8 anos e 9 meses, o presidente Bolsonaro decreta indulto a favor de Silveira.
Além da Rede, o PDT e parlamentares de partidos como PSOL, MDB, PT apresentaram projetos de decreto legislativo para anular o ato viciado, falam em “afronta aos preceitos mais basilares da Constituição Federal e que Bolsonaro quer derrubar o tabuleiro do jogo democrático republicano e resolveu portar-se como uma instância revisora das decisões judiciais, à revelia da dinâmica constitucional”.
A decisão de Bolsonaro ter-se-á baseado no mecanismo do indulto estipulado no art. 84 da Constituição que permite o presidente perdoar as penas impostas ao condenado. A possibilidade de “graça” consta do Código de Processo Penal. Trata-se de instrumento que se diferencia do indulto por visar um indivíduo. O indulto tem caráter coletivo.
No decreto assinado, o presidente descreve a medida como um “indulto individual”. E tem esta verborreia: “medida constitucional discricionária excecional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes”.
Atente-se que o perdão concedido por Bolsonaro foi assinado antes mesmo do chamado “trânsito em julgado”, ou seja, antes do fim do processo, incluso porque Silveira ainda podia recorrer. O Supremo havia decidido por dez votos contra um. O ministro juiz que votou pela absolvição do arguido foi exatamente aquele que havia sido indicado por Bolsonaro. Aqui, para além dos indícios de vocação ditatorial militarizante, há laivos de promiscuidade institucional. Ninguém pode absolver um réu acusado às escancaras por incitar a população ao ódio contra o Supremo Tribunal, mediante vídeo, ameaças inclusive de morte e muito mais. Silveira recusou-se a usar a tornozeleira (igual à pulseira eletrônica). Depois lhe foi aplicada a tornozeleira, mas ele resguardou-se dentro das instalações do Congresso.
Praticamente, a grande maioria da comunidade jurídica e política brasileira está contra esta decisão inédita e draconiana. O “estado sou eu” é também a desfilosofia política de Bolsonaro que passa por cima de uma decisão judicial antes do trânsito em julgado. Se a modo pega, qualquer dia o filho de um Bolsonarista ainda está no ventre da mãe e já tem impunidade.
Pelo mundo fora, em datas simbólicas, mediante expedientes diversos, são apresentados detidos com boa parte da pena cumprida, de bom comportamento revelado, arrependimento verificado, para a entidade competente decidir sobre os indultos, reabilitando os indultados à sociedade. No caso vertente é, infelizmente, a violação da constituição, do direito e da separação de poderes, tudo para proteger um correligionário, criminoso contumaz que já vinha com currículo criminal por atos praticados no Rio de Janeiro onde foi policia militar com 60 sanções disciplinares. Ele é defensor do AI-5 da ditadura militar.
Se repararmos no passado recente de Bolsonaro, adepto fervoroso de Trump que até quis impor o lugar de embaixador nos Estados Unidos um dos seus filhos, durante a pandemia assumiu-se negacionista, mostrou a cloroquina e não usou máscara e quis, a toda a força, copiar Trump, opondo-se ao voto eletrônico vigente no Brasil, paradoxalmente, o sistema que lhe deu a vitória que o levou ao poder.
Uma coisa não se lhe pode negar: a astúcia. Foi rápido. Reabriu o Carnaval para gáudio do povo e esquecer esse negócio de indulto.
E o Carnaval passou. Vi meu compadre Martinho da Vila e família. Foi lindo. No Carnaval, parece que a maioria da população negra, segunda no mundo a seguir à Nigéria, sai das catacumbas, pois não é locutora de televisão, não aparece em lugares políticos, mas domina o berimbau, o samba, só teve um rei momo, mas tem o rei Pelé…
Antes que Bolsonaro se indulte a si próprio… “canta, canta minha gente/ deixe a tristeza pra lá/ canta, canta minha gente/ que a vida vai melhorar…”
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[*] É escritor angolano
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