Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

Nas últimas décadas, fiz inúmeras incursões no cenário da Guerra de Canudos, mas,  recentemente, deparei-me com uma iniciativa memorial da maior importância para se pensar as batalhas da memória, o Museu-Casa Vó Izabel. Sob o influxo da “virada testemunhal do saber histórico”, que estabeleceu “novas modalidades de construção da memória, atravessadas pelos corpos, pela experiência individual e coletiva”, despedindo-se “aos poucos da noção mais abstrata e artificial de uma unidade do ‘povo’ e da ‘nação’” (SELIGMAN-SILVA, 2022, p. 31), o museu-casa se insere na proposta de democratização da noção de patrimônio, que emergiu no cenário de redemocratização no Brasil, nos anos 1980.

Não podemos esquecer que, desde os primórdios da República, os acontecimentos de Belo Monte/Canudos no Brasil foram/são fundamentais para a formação “da consciência histórica e política de um povo”, cuja memória produz significados diferenciados, segundo as representações das classes sociais e setores culturais (MACEDO e MAESTRI, 2004, p. 150-151).

Assim, longe do memoricídio do nacionalismo fundamentalista brasileiro, fundado na tríade negacionismo-apagamento-genocídios, as políticas memoriais de resistência das classes populares são fundamentais para a constituição de um patrimônio cultural que possa estimular certos traços da memória coletiva para o fortalecimento da cidadania, ampliando os horizontes classistas de determinada memória nacional.

A criação da casa-museu, em 2012, surgiu com a experiência de Paulo Régis, neto de Izabel da Conceição, como guia do Parque Estadual de Canudos após realizar curso profissionalizante da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), com o incentivo de João Batista S. Lima, então funcionário do referido parque. Segundo ele, o registro, no Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), foi realizado em 14 de dezembro de 2015, sob o nome de Museu Memórias de Régis. Posteriormente, em agosto de 2022, é transformado em Museu-Casa Vó Izabel, no Cadastro Nacional de Museus, que o registra como museu privado. Se a categoria museu-casa representa “casas que saíram da esfera privada e entraram na esfera pública, deixaram de abrigar pessoas, mas não deixaram necessariamente de abrigar objetos, muitos dos quais foram sensibilizados pelos antigos moradores da casa” (CHAGAS, 2010, p. 6), percebemos que, nesse caso, o museu-casa dedicado à Vó Izabel continua como a casa da família de Pedro Régis (Pedro Tuté), filho da homenageada. A musealização da casa traz “uma intencionalidade que ‘não é a história ou a vida mesma, senão sua evocação, não é o passado em si mesmo senão a sua representação’”. Nesse sentido, percebemos três elementos na composição do museu-casa: “o cenário (a casa), a história (vida da personagem) e a representação e teatralização (o museu-casa, com mobiliário e/ou ambientação)”. (CAYER e SCHEINER, 2021, p. 3 e 6).

A teatralização do espaço relaciona o universo familiar e cotidiano a contextos mais amplos das práticas culturais dos sertões brasileiros, como as relativas à chamada “civilização do couro”, mas também aos acontecimentos históricos da Guerra de Canudos, com a reunião de objetos garimpados no Parque Estadual de Canudos e comunidades vizinhas.

Nascida em 30 de janeiro de 1904 e falecida em 02 de março de 1994, era descendente de conselheiristas, sendo sua trajetória fortemente relacionada com a experiência histórica de Canudos. Tempos depois de seu falecimento, seu neto buscou recuperar sua presença na memória popular da região, enfatizando a institucionalização das narrativas vinculadas à UNEB, como João de Régis, e o esquecimento de outras, como a sua avó. Um aspecto relevante é que “a casa museu encena uma dramaturgia de memória toda especial, capaz de emocionar, de quebrar certas barreiras racionais, de provocar imaginações, sonhos e encantamentos” (CHAGAS, 2010, p. 6), diferenciando-se das instituições museais estatais no teatro da memória da região.

A museografia do lugar demonstra a simplicidade do modo de vida da homenageada, servindo de inspiração a outras possibilidades de memorialização da Guerra de Canudos. A centralidade da exposição preocupa-se em apresentar uma casa “autêntica” do sertão, com objetos do cotidiano feminino, como o ferro de passar de Dona Izabel, mas, ao mesmo tempo, se propõe a uma imersão na cultura local, no sentido de um turismo comunitário, marcado por atividades como o jantar sertanejo em dia de lua cheia, com bandas de pífano, de forró e comida típica do sertão.

Essa proposta de imersão cultural do visitante também está presente no envolvimento com a figura exemplar do vaqueiro, simbolizando o sertão de Canudos. Os apetrechos do cotidiano do vaqueiro podem ser usados pelos visitantes para fotografias, associando-se ao passado da civilização do couro, em que a atividade dos vaqueiros se constituiu como referência para a construção da diferença do universo sertanejo.

Os objetos reunidos no museu-casa representam uma forma de redesenhar o passado, com a intenção de mostrar os valores da cultura sertaneja e de enriquecer, no presente, os itinerários individuais e coletivos da região. Assim, a musealização não diz respeito apenas à instituição do museu em sentido estrito, mas penetra em todas as áreas da vida cotidiana.

Paralelamente, a instalação do painel no Parque Estadual de Canudos, em 24 de maio de 2022, incluindo uma poesia de José Américo Amorim e fotografia de Antônio Olavo (1987), consolida a presença memorial de Dona Izabel da Conceição como uma referência cultural na região de Canudos, estabelecendo uma memória de luta e resistência populares.

Assim, pensamos o Museu Casa Vó Izabel a partir de uma forma metonímica, em que figura o todo pela parte, para caracterizar essas iniciativas memoriais no sertão de Canudos, como um “projeto de comunidade periférica como contínuo à concreção futura do projeto de nação brasileira, transformando o primeiro em centro do segundo”. Nesse sentido, essa figura retórica metonímica “ganha ímpeto sociopolítico e passa a nomear um processo de ‘inversão’ em que o mestiço sertanejo – de Os Sertões a Grande Sertão: Veredas – é alçado à condição de ser superior ao civilizado, assumindo a condição de ideia moral e de princípio ético para a compreensão do Brasil” (SANTIAGO, 2015, p. 17).

Como construção histórica, criada intencionalmente, essa experiência museal pode contribuir para a manutenção da memória comunitária, trazendo elementos ligados às emoções e às evocações, que são “importantes para a compreensão das sociedades que as criou, recriou ou destruiu” (CAYER e SCHEINER, 2021, p. 12).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAYER, N. A., & SCHEINER, T. C. Casas históricas e museus-casa: conceitualização e desenvolvimento. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 16(2), 2021.

CHAGAS, Mário. A poética das casas museus de heróis populares. Revista Mosaico. V. 2, n.

4, 2010, p. 4-12.

MACEDO, José Rivair & MAESTRI, Mário. Belo Monte: Uma História da Guerra de Canudos. 4ª edição. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

SANTIAGO, Silviano. Crítica de Mutirão. In: FARIA, Alexandre; PENNA, João Camilo e PATROCÍNIO, Paulo Roberto T. do (org.). Modos da margem: Figurações da marginalidade na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2015.

SELIGMAN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Editora da UNICAMP, 2022.