Jeová Santana (*)
Já fiz de um tudo pra ela desistir. Não tem jeito. Diz que vai porque vai. E o que é que tem? Aproveitará pra conhecer uma das cidades mais bonitas do mundo. Também é filha de Deus. Não vai deixar as clientes na mão. Segunda-feira estará de volta. Garante que não vai virar acampada, não é tão radical quanto os que dizem ser cupim de mármore.
As passagens estão garantidas por um comerciante. Vai com duas amigas pra dar uma força ao Capitoso. Acabar de vez com a ameaça do fechamento de igreja, de obrigar o povo a comer cachorro que nem na China, dividir a casa com estranhos. A coisa queimou-ruim desde que ela entrou nos grupos. Participa de uns três. O tempo todo mexendo. Só para quando tem que cuidar dos pés (é cada cavador! diz voinha) e mãos das clientes. E olhe lá! Deixa sempre à vista pra acompanhar as informações a rodo. Especializou-se em tirar bifes sem doer e aumentou a freguesia com a depilação a laser. É vídeo que não acaba mais.
Tive que lhe explicar o que dura mais pra ela optar entre o feed, o stories e o reel nas suas postagens. Agora se sente craque. Fica toda ouriçada quando chega alguma mensagem dizendo que tudo será resolvido em poucas horas. Ando numa agonia que só vendo. E se der uma merda? O que vai ser de mim? Já não tenho pai. Dele, umas lembranças cabulosas, passeio de bicicleta, banho de mar. Nenhuma notícia. Onde mora. Se está vivo ou morto. Mainha correndo atrás por causa da pensão. Depois desistiu. Agora é essa ameaça. Fiz os gostos dela e estou me segurando na escola. Dei a dica de pegar um trampo pra lhe ajudar. Depois entraria na EJA. Ela saltou com várias pedras. Tenho que estudar pra ser gente na vida. Não passar por seus perrengues. Que EJA porra nenhuma! EJA de cu é rola! Eu disse que é isso, mainha? Ela ficou foi se abrindo. Agora está assim, dizendo palavras de baixo escalão como diz sua auxiliar. Ando até animado.
Chegou uma professora que inventou o tal momento literário. Diz que a poesia tem que sair do papel. Inventou batalha de versos. Até eu andei arriscando uns no pátio da escola com microfone e tudo. Assim, a escola pode virar um lugar legal. Vou fazer um último esforço pra tirar essa ideia de sua cabeça. Nos últimos dias, é cada pesadelo medonho. No início, tudo vai bem. Poucos policiais. Até tiram selfie no meio da galera. Clima de piquenique. Depois o caldo entorna. Um desespero do cão tentando achá-la na muvuca. Tem até graça a cena: impressão de ser ela escanchada na estátua da Justiça, toda serelepe, pichando perdeu, mané. Não, não pode ser ela. No meio do gás e das bombas, frases entrecortadas: explodiram um caminhão-tanque, despencaram ônibus no viaduto, prenderam o mangangão, forças armadas libertem a nação.
Minhas pernas estão presas. Não consigo seguir o índio que guia o grupo a cantar o povo unido jamais será vendido. Em seguida, entro em um dos prédios. Cacos de vidro pra tudo que é lado. Uma mulher, com a cara de voinha, berra que vai cagar na mesa do chefão. Um magricela mete a faca no quadro famoso reproduzido no meu livro de História. Outro arrasta um enorme relógio de parede todo desconjuntado. Um grupo esfiapa os tapetes de um salão. Um extintor de incêndio voa sobre minha cabeça e espatifa a estatuazinha de uma mulher nua. Sinto os pés molhados. Uma água preta corredor afora. Um breu da gota serena! Um calor da besta-fera! Chegam mais reforços. Começam as prisões. Todo mundo no chão! Já não ouço os gritos esganiçados: acabou, porra! Saio desembestado rampa abaixo com a garganta entalada. O carro da polícia ainda está embicado no lago. Parece que o cavalo, do qual a polícia foi derrubada, quebrou a perna. O celular toca. Um colega de escola diz que as TVs estão transmitindo ao vivo. Na internet também é possível assistir em tempo real. Mas essa não é sua mãe, cara? Claro que não, tá doido? Imagina, mainha metida num buruçu desse! Ela é uma mulher de bem, rala pra caralho pra me criar. Faz o que pode pra me dar do bom e do melhor. Qual é o problema em botar Deus acima de tudo? Vou tentando botar panos quentes, pois nem quero imaginá-la presa tão longe de mim. Fazer o quê? Pedir socorro a quem, se ela se estranhou com tanta gente, da família, inclusive, desde que começou a dar ouvidos aos xingos e chiliques do Capitoso?
Do dia pra noite, do nada, dormiu e acordou com esse papo de patriota. Não ouço as três pancadinhas que ela, antes de sair, costuma dar quando fecha o cadeado. Arrependeu-se? Deve estar dormindo. Esse labafero todo foi apenas um surto. Daqui a pouco passa. Tá de sacanagem! Imagine, se mainha vai perder um domingo de sol como esse.
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(*) É Mestre em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP, professor da Universidade de Alagoas, escritor e autor de diversos livros – Dentro da Casca (1993), A Ossatura (2002), Inventário de Ranhuras (2006), Poemas Passageiros (2011), entre outros títulos.
Foto: Arquivo Pessoal
Um destaque acertado,um espaço digno, para evidenciar a crítica de Jeová Santana.
Bom dia!
Me dá muito prazer ler este conto de Jeová Santana, em que o narrador, ao mesmo tempo em que faz um apelo à mãe (como se nota no título) nos dá uma síntese e tanto do ‘8 de janeiro’, com tudo o que esta data implica. Por meio da descrição de um único personagem – a mãe -, mostra um perfil recorrente do ‘patriota’ e desvela uma faceta da histeria coletiva em torno daquele evento.
E o faz sem mencionar explicitamente tempo, espaço, nomes ou cargos. Nem precisa. A referência ao Capitoso e as descrições que conhecemos de imagens e nos autos dos julgamentos são suficientes para o leitor.
Porém, é na ausência de referências explícitas que a literatura propriamente dita se manifesta aqui. Não se trata mais apenas da nossa realidade. O conto também pode refletir outros contextos cujas democracias vivem agora em uma corda bamba e, com uma outra diferença, também são vítimas de patriotas de ocasião.
Jeová nunca é indiferente às mazelas sociais e isso se reflete na sua literatura: prosa e poesia. Mas o mais importante é que ele o faz com precisão estética.
Parabéns pelo destaque,pela atualidade do tema,pela louvável crítica de Jeová Santana.
Um texto de Jeová Santana é sempre um feliz destaque!
Espero que, por meio desse conto, principalmente os jovens e as “mainhas” reflitam sobre o fanatismo político e a alienação que acontecem atualmente no Brasil.
Valeu, Priscila. Muito obrigado pelo comentário esperançoso nesse momento tão delicado. Acreditemos que literatura seja uma aliada contra a barbárie. Abraços.
Uma escolha certeira,nesse espaço digno,para evidenciar as críticas de Jeová Santana.
Boa noite, Raquel.
Muito obrigado pelos comentários. O leitor é a melhor parte nessa história de lidar com as palavras. Fico feliz em saber que esse relato sobre o infausto “8 de janeiro de 2023” tenha recebido tua atenção.
Abraços!
Escreveu bonito, amigo! Você é o escritor nota mil, que retrata o real magicamente e com uma eficiência que vai além do que imaginava possível. Meu espanto, meu oh!, minha alegria de beber, de mastigar, de respirar suas palavras estão aqui registrados. Salve, Jeová! Se não de Campina Grande, daqui de Sampa! Abraços!
Boa tarde, caríssima Graças.
Muito obrigado por essas palavras tão sensíveis. O leitor é a melhor parte dessa história. E se ele vem embalado pela sinceridade da amizade cultivada nas muitas camadas do tempo, esse ofício tão silencioso e solitário encontra sua razão de ser nesse “Mundo velho sem porteira”, como canta o mariliense Sérgio Ricardo.
Ainda estamos aqui, trocando memórias e afetos entre Campina Grande, Sampa, Aracaju e Maceió.
2025 abraços!
Olá, caro poeta! Certamente foi uma bela forma de despertar no privilegiado leitor a reflexão e a criticidade! Confesso que inicialmente pensei se tratar de um alguém anônimo em uma vivência cotidiana, contudo, a cada palavra consegui identificar do que se tratava realmente, foi muito mais do que imaginei. Apresentar esse “8 de Janeiro” sob esse viés, foi uma grande sacada! Foi como se durante a leitura cada imagem, cada descrição estivesse realmente acontecendo novamente. Como não se sentir impactado diante de tamanha leitura da realidade, ao sermos instigados a refletir sobre esse acontecimento que apesar de ter ocorrido há um tempo, ainda tem repercussão nas mídias, principalmente no tocante as consequências dos atos tão bem descritos no texto e de outros que marcaram esse dia. Certamente, não seremos mais os mesmos depois dessa leitura. Gratidão, caro professor! Gratidão por compartilhar tamanho texto e despertar leituras diversas, nas quais, a reflexão e a criticidade tiveram espaço. Diante desse texto, concluo minhas considerações, colocando a Literatura como extremamente necessária, principalmente em nossos dias, nas diversas realidades que nos atravessam diariamente, pois é através dela que o existir torna-se mais sensível e podemos enxergar os acontecimentos por mais simples que pareçam ser, com novos olhares, olhares profundos. Abraços!
Boa noite, caríssima Deisiane.
Passo por aqui somente para te agradecer por observações tão sensíveis tanto em relação à estrutura da narrativa quanto no que ela contempla como visão de mundo: um tema ainda tão espinhoso que brotou naquele fatídico 8 de janeiro, cujos desdobramentos tendem a ocupar, por muito tempo, espaços em nosso coração & mente. Ler que “Certamente, não seremos mais os mesmos depois dessa leitura” é muito gratificante. Deixa-nos com a sensação que vale apena continuar nesse ofício tão marcado pela solidão e pela observação atenta à complexidade desse “mundo mundo vasto mundo”. Ouvir de ti que é preciso colocar “a literatura como extremamente necessária, principalmente em nossos dias, nas diversas realidades que nos atravessa diariamente, ” é música para meus ouvidos, sobretudo por ser uma visão diferenciadora de quem integra, como aluna, o curso de Letras da Universidade Estadual de Alagoas.
2025 Abraços!
Achei incrível a forma como costurou os diálogos para capturar a essência de um momento crucial da nossa história. A nossa realidade é ficção em estado puro, lapidada por sua sensibilidade poética, de um lirismo perturbador.
Valeu, Alex. Muito obrigado pela leitura e pelas observações pertinentes.
Abraços.
8 de janeiro de 2023…
Foi registrado por câmeras, transmitido ao vivo em rede nacional e agora, mais uma vez, está sendo eternizado através das palavras do poeta, escritor e professor Jeová Santana. Gostei muito da leitura deste conto, que retrata a realidade do nosso Brasil, repleto de “mainhas” que vestem a camiseta amarela enquanto se cobrem de ideologias que não pertencem a elas. Gostaria de parabenizar pela excelente produção. Parabéns, professor Jeová. 👏🏽👏🏽👏🏽
Valeu, Jeciara.
Muito obrigado. Sua leitura, na condição de aluna de Letras, ganha um significado especial pois amplia as discussões, feitas nas sala de aula, para o espaço público.
Abraço.
Fazia tempo que eu não lia um conto! Nem de Assis, nem de Santana. Jeová sempre perspicaz, atento às questões políticas e aos dissabores que tivemos que passar no desgoverno do Capitoso. Tempos sombrios que nos ameaçaram e chegaram a quase nos retroceder aos anos do R.M.
O que mais me identifico, claro, é com essa linguagem dos tempos d’eu menino. Muvuca, o caldo entorna, serelepe, mainha, voinha, mangagão, queimou-ruim e por aí vai…
Valeu, caríssimo Aldemir.
É muito gratificante ler tuas observações com destaque para o peso da oralidade na linguagem que permeia o conflito da narrativa. Eis uma riqueza da qual a literatura não pode prescindir como nos ensina o mestre Rosa. Além de ex-aluno, tua presença em minha vida ampara-se na condição de amigo e eventual parceiro musical. É um presente e tanto nesse “Mundo velho sem porteira”, como canta Sérgio Ricardo. Saravá!
O que esperar de um mestre igual Jeová Santana??
Perfeição que se fala.
Um excelente texto, reflexivo e de um contexto que faz raciocinar sobre o fanatismo político, a alienação por uma ideologia que escancara o preconceito para com os grupos ” menos favoráveis” da sociedade brasileira. Parabéns professor Jeová, o senhor nunca decepciona.
Boa tarde, Naira.
Fico feliz com tuas palavras. Muito obrigado por essa interlocução que se estende para além da sala de aula movida pela literatura. Esta nos ajuda a atravessar esses tempos tão delicados, marcados, como bem disseste, por “fanatismo político”, “alienação” e “preconceito”. Resistir é preciso.
Abraço.
Jeová Santana, sempre muito inteligente e perspicaz naquilo que escreve, trazendo à tona temas fortes através de uma abordagem sensível.
Gostei bastante da leitura do conto, pois me fez refletir ainda mais sobre atos de vandalismo de 8 de janeiro de 2023 que ficaram marcados na mente e agora ainda mais fortalecidos com tuas palavras. É preciso que se pense e discuta mesmo o fato de que uma democracia que abraça alguns, não é democracia, visto que essa somente é efetivamente plena quando abraça todos. E não apenas a uma minoria privilegiada. Portanto, precisamos lutar por ideologias que de fato nos pertença e respeite.
Parabéns, professor Jeová!
Salve, Géssica Abel.
Muito obrigado pelas palavras tocantes. Fiquei feliz em ver que tua leitura estendeu-se para uma visão crítica muito particular sobre essa manifestação fundamental para a convivência humana chamada democracia. É sempre importante destacar a contribuição da arte em geral e da literatura em particular sobre o “inferno e maravilhas” deste Brasil brasileiro que tem, no famigerado 8 de janeiro, a oportunidade de impedir” o futuro repetir o passado”.
Abraços