Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

No início de março de 2023, em viagem às nascentes do rio São Francisco, partindo de Aracaju, após estadia em Mucugê, na Chapada Diamantina, rumei para Caetité e, depois, Carinhanha (BA), conversando com intelectuais locais, que se debruçaram sobre a história e a cultura daqueles municípios, como Luiz Benevides e Honorato Ribeiro dos Santos, respectivamente. Deste último, comentarei duas publicações a mim ofertadas por ele: História de Carinhanha (2006) e Carinhanha de Ontem e de Hoje (s/d).

O encontro fora intermediado por Vavá Cunha, músico de nomeada sobre as coisas do sertão do São Francisco, como se pode ser verificada na música Saudade do Vapor, interpretada por Geraldo Azevedo, no disco Salve São Francisco (2011). Como registrado por Wille Bolle e Eckhard E. Kupfer, ao refazerem a viagem de Spix e Martius (1818), Honorato Ribeiro dos Santos pode ser considerado o principal historiador de Carinhanha, tendo publicado, além dos livros História de Carinhanha e Carinhanha de Ontem e de Hoje, o poema-livro A Morte do Velho Chico (BOLLE e KUPFER, 2019: p. 39).

Segundo estes pesquisadores,

O arraial de Carinhanha e, do outro lado do rio, o de Malhada eram, no início de século XVIII, os postos de fronteira entre as províncias de Pernambuco e de Minas Gerais, tendo como principais riquezas a pecuária e o sal, que animavam o comércio local. Hoje ambas as cidades fazem parte do estado da Bahia (BOLLE e KUPFER, 2019: p. 38).

Nascido em 1934, ele é mais conhecido na cidade como Zé de Patrício, tendo sua trajetória vinculada às letras e à música, seja participando de academias de Letras, como a Academia de Letras de Uruguaiana e Associação Uruguaiense de Escritores e Editores, entre outras, seja compondo o Hino de Carinhanha, que me foi ofertado em visita à sua casa, gravado em Compact Disc e orquestrado pelo Maestro de Campinas (SP), João Bosco Stecca (SANTOS, s/d., p. 89-90).

Nesses dois livros, com que fui agraciado, foram registrados fatos importantes da história local e da cultura popular, mesclando fatos políticos e fait divers, sob a forma de crônica. Esse saber com sabor foi construído “romanceando o passado imortal e o presente do amanhã será o futuro”. Desse modo, o autor mescla as disputas políticas da região com fatos do cotidiano sertanejo, com a picardia que lhe é particular, como registrado em Carinhanha, Ontem e Hoje. Ao mesmo tempo, ele almeja o reconhecimento desses trabalhos, já que “vivemos na esperança do porvir; talvez o amanhã nos traga o nosso ascender para fazermos parte dos que se encontram no elenco dos famosos artistas do nosso Brasil” (SANTOS, S/d.: p. 3 e 4).

Cônscio da hercúlea tarefa de escrever a história da cidade, o autor afirma que somente, coletivamente, ela será concretizada. Entretanto, seus livros são, por ele, considerados como um “patrimônio histórico, nas mãos dos caros leitores, falando do passado, do futuro e do presente: a nossa cultura folclórica, suas crenças e seus costumes e sua tradição e cultura” (SANTOS, s/d., p. 3).

Do ponto de vista histórico, seu relato sobre o coronelismo na Primeira República é revelador da violência política e da impunidade em torno dos desmandos do coronel João Correia Duque no domínio da cidade de Carinhanha, no médio São Francisco baiano. Em 1915, Antônio Prophírio Dias Andrade Filho, coletor estadual do município, foi assassinado por ter vencido as eleições de 1914, apoiado pelo médico Josefino Moreira de Castro, que atuara como médico na Guerra de Canudos, derrotando o coronel Francisco Luiz da Cunha, conhecido como Chico Timóteo. No período de 1914 a 1916, o município foi governado por Antônio da Silva Prado, nomeado pelo governador José Joaquim Seabra, sendo, posteriormente, substituído pelo citado médico, que, em 1919, foi escorraçado pelo coronel João Duque, que entrou, em agosto deste, com oitenta homens armados e tomou o poder político a bala. De 1922 a 1928, este coronel governou a cidade e, apesar de o autor relevar o desarmamento efetuado pela Revolução de 1930, retornou no período de 1931 a 1937, demonstrando que se, ao nível nacional, as oligarquias rurais tinham sido forçadas a abdicar de seu poder político, no âmbito municipal, permaneceram intactas as bases sociais e econômicas de sua dominação (SANTOS, 2006: p. 29 e 36; SOLA, 1975).

Para Affonso Romano de Sant’Ana, “a história de um povo é também a história de seus bandidos” (1987: p. 140), pois nenhum bandido surge aleatoriamente, mas é produto do meio social. Desse modo, as biografias de jagunços da região, lembradas pelo autor, explicitam o conluio do banditismo rural com as práticas políticas oligárquicas, como, entre outros, Quincas de Mariana, “um dos tantos jagunços sanguinários nos tempos do barulho do Cel. João Duque” (SANTOS, s/d., p. 25).

Nesse relato do “barulho” que marcou a política local, vemos uma clara defesa da cultura política democrática, que se manifesta também na crítica ferrenha ao patriarcalismo e ao machismo, ainda presente no início do século XXI. Assim, ele defende a libertação da mulher e a igualdade entre os sexos (SANTOS, s/d.: p. 80).

Para o escritor, “Sem educação participativa e democrática ficará difícil acabar com as ideias errôneas do coronelismo, que ainda é muito forte em nosso meio”, sugerindo, como alternativa, a valorização da cultura local, do que a terra já teve, como cinemas, clubes culturais e ternos de Reis (SANTOS, s/d.: p. 30).

Há uma nítida preocupação com o resgate da cultura tradicional folclórica como “ciência do povo”, seguindo a proposta de Luís da Câmara Cascudo, no sentido de “testemunhar o observado, de perenizar pela escrita o efêmero, de preservar o vivido do esquecimento e da ação corrosiva do tempo”. Como acentuou Margarida de Sousa Neves, a crônica é uma das formas particulares da escrita do tempo, para que Cronos não nos devore, evitando-se o desaparecimento de hábitos, crenças e gestos vivenciados no cotidiano sertanejo por conta do avanço da modernidade no Brasil (NEVES, 2005: p. 237 e 240).

Nesse sentido, o autor elencou uma série de manifestações folclóricas da região, destacando a “dança dos caboclos”, alusivas à origem indígena do município, que foi habitado pelos Caiapós. As Festas do Divino e dos Reis são registradas como importantes no cenário municipal pela confluência entre as três raças que colonizaram a cidade. Outras festas são registradas como a Contradança, os Reis de Mulinha, Os Reis de Caixa, os Ternos, o Carnaval, a Malhação de Judas e as Festas do Rosário e de Santa Efigênia.

Por outro lado, o folclore são-franciscano está registrado com o Compadre D’Água, em que são relatados causos de pessoas que juram ter contato com o personagem lendário do rio São Francisco. Sua descrença com os relatos não o impede de registrar o folclore como ciência do povo (SANTOS, 2006: p. 59).

Essas breves notas sobre o trabalho de Honorato Ribeiro dos Santos dão-nos uma pálida alusão da riqueza de outras possibilidades de leitura da região do médio São Francisco. Nosso objetivo aqui foi realçar a importância da historiografia local nos estudos dos sertões brasileiros, tão obliterada pela historiografia universitária. Desse modo, ao priorizar as especificidades da cultura e da política da região do sertão do São Francisco, o autor demonstrou a mais que necessária vinculação da Universidade com os localismos e a cultura popular, pois, ao registrar “fatos miúdos” do cotidiano de comunidades, seus trabalhos destacam aspectos que, em geral, não são considerados. Portanto, a possibilidade de se escrever uma “outra” história torna-se plausível, na medida que os cidadãos comuns podem ser convencidos da importância de seus relatos na construção de uma história mais democrática.

REFERÊNCIAS

BOLLE, Willi; KUPFER, Eckhard E. Travessia do Sertão: refazendo a viagem de Spix e Martius de 1818. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 72, p. 19-46, abr. 2019. Endereço eletrônico:  https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/157025.

NEVES, Margarida de Souza. Viajando o sertão: Luís da Câmara Cascudo e o solo da tradição. In; CHALHOUB, Sidney, NEVES, M. de S. e PEREIRA, Leonardo A. de M. (org.). História em cousas miúdas. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2005.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Política e Paixão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

SANTOS, Honorato Ribeiro dos. Carinhanha de ontem e hoje. Vol. 5. Carinhanha (BA): Edição do autor, s/d.

SANTOS, Honorato Ribeiro dos. História da Carinhanha. Volume 4. Carinhanha (BA): Edição do autor, 2006.

SOLA, Lourdes. O Golpe de 37 e o Estado Novo. MOTA, Carlos G. (org.). Brasil em Perspectiva. São Paulo, Difel, 1975.