Para beninenses, ansiedade cresce com o anúncio do fechamento da Embaixada do Benin no Brasil

Por Rosa Meire Carvalho

Estudantes-convênio do PEC-G, o mais antigo programa de acesso de jovens estrangeiros a cursos de graduação em universidades brasileiras, estão enfrentando uma série de dificuldades nesses tempos de pandemia. Medo, angústia, solidão e incerteza sobre o calendário escolar e problemas para se manter, como pagar por moradia e comida fazem parte da rotina diária. Para os estudantes beninenses, a ansiedade aumenta com a notícia do  fechamento da Embaixada do país no Brasil.

Criado em 1965, o Programa Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G), de cooperação técnica educacional,  está presente em cerca de 120 universidades brasileiras e recebeu na última década mais de 9 mil estudantes da África, Ásia, América-Latina e Caribe, sendo que 76% deles oriundos do continente africano. O programa envolve 59 países e é coordenado pelos Ministério das Relações Exteriores e Ministério da Educação. Para o ano letivo de 2020 foi aprovado o acesso de 515 candidatos, que tiveram dentre as etapas, o exame de proficiência na língua portuguesa, precedido de período de formação no Brasil para aqueles candidatos cujo país de origem não possui posto aplicador do Celpe-Bras.

Campi vazios

Desde final do mês de fevereiro o estudante PEC-G beninense, Samuel Azonyetin, 26 anos, passou a morar na cidade de São João Del Rey, após ser aprovado no exame Celpe-Bras realizado na Universidade Federal da Bahia. A chegada à cidade coincidiu com o anúncio oficial da primeira morte por Covid-19 no Brasil, ocorrida em Minas Gerais. De onde o estudante vem assistindo ao crescimento exponencial dos casos da doença no país.  “Eu nunca me imaginei em uma situação como essa. No meu país, tivemos até agora 36 mortes e cerca de 1,8 mil casos. Estou muito ansioso com toda essa situação. Cada um tá tendo que se virar”, diz o estudante que é aluno do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFSJ.

Samuel Azonyetin Fotos: Arquivo Pessoal

Azonyetin lembra que o fechamento de sistemas de remessa internacional impediu em março, no início da pandemia, o envio de dinheiro pelas famílias, afetando a vida prática dos estudantes. “Aqui em Minas Gerais conversei com meu coordenador e consegui apoio da universidade, primeiro com uma vaga na Residência Universitária e depois, substituída por ajuda em forma de auxílio financeiro para aluguel e alimentação. E passei a morar em uma república com outros dois colegas brasileiros”. Para o estudante, o apoio recebido tem sido fundamental. “Essa preocupação de nosso coordenador do PEC-G em nos ajudar e de manter contato quase todos os dias pra saber como estamos. Isso tudo alivia a pressão psicológica”.

Conforme o estudante beninense, a situação ainda é problemática por causa das aulas na universidade que estão suspensas e da notícia do fechamento da embaixada do Benin. “Eu sinto muita ansiedade porque passo muito tempo só, e não sabemos quando tudo isso vai acabar. Nós soubemos que a embaixada de nosso país estará fechada a partir de agora. Essa decisão nos preocupa porque só aumenta nossos problemas. A embaixada é a primeira representação do Benin aqui. Se essa representação está fechando as portas, como os imigrantes vão se virar? Tudo pode acontecer conosco e não teremos uma representação oficial no Brasil para nos ajudar. A gente não sabe como vai ser o dia seguinte após esse fechamento. Não sabemos porque o governo decidiu isso. Mas não é bom, não”, disse.

As dificuldades que afetam o estudante Samuel Azonyetin não são pontuais. Estudantes-convênio PEC-G de diferentes universidades brasileiras possuem relatos bem próximos. Este é o caso de Octave Vincent Gbemenou, beninense de 23 anos, como Azonyetin, também ex-aluno do curso de proficiência Celpe-Bras na Universidade Federal da Bahia. Há um ano ingressou no curso de Agronomia da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, cheio de sonhos, que agora, segundo diz,  “estão sendo deixados para trás”. Ele revela que, com a pandemia e as aulas presenciais suspensas, o campus universitário ficou praticamente vazio. “Eu me sinto muito sozinho aqui. Passo o dia sem ter com quem conversar. Três dos meus colegas de residência retornaram para a casa de suas famílias. Eu não tenho para onde ir porque se tivesse, iria”, disse.

Octave Vincent Gbemeno Foto: Arquivo Pessoal

Octave informou ter tido problemas financeiros para se manter desde que chegou na universidade. Foi inicialmente  apoiado por uma amiga, também estudante-convênio, que o acolheu em casa. “Agora é que consegui uma vaga na residência estudantil. E uma bolsa de pesquisa no programa Pet Agronomia”, disse. Mas, para Octave, os problemas emocionais persistem na pandemia: “Tenho tomado remédio para dormir, que um amigo indicou. E tem sido muito difícil acompanhar as aulas online, até porque não tenho computador em casa. A convivência aqui também tem sido difícil e tudo o que eu quero agora é mudar de curso”, disse. Desde março a UFSM implantou disciplinas em modo remoto, por meio do Regime de Exercícios Domiciliares Especiais (REDE).

Nëvyl Faniol Ndouniama Foto: Arquivo Pessoal

Por outro lado, a Reitoria da Universidade Federal de Santa Maria, por meio da Secretaria de Apoio Internacional (SAI), ponderou estar atenta ao momento e às dificuldades dos estudantes PEC-G, em relação à atual condição material e emocional. Afirmou ter disponibilizado serviço de apoio psicológico online a toda a comunidade universitária. Disse que, dentre as ações, tem estabelecido “diálogo constante” e buscado fornecer informações e atender as demandas dos estudantes visando à redução da condição de vulnerabilidade. Lembrou que sete bolsas de auxílio emergencial Promisaes foram destinadas a estudantes do programa habilitados. O objetivo conforme Érico Flores, assessor da SAI é buscar o “bem-estar” da comunidade, com a redução dos impactos da pandemia.

Também oriundo do programa de formação Celpe-Bras da Universidade Federal da Bahia, o estudante de direito congolês Nëvyl Faniol Ndouniama, 22 anos, aguarda em casa o reinício das aulas na Universidade do Estado da Bahia, campus da cidade de Camaçari, suspensas desde o mês de março por decreto do governo estadual. Filho mais velho de uma família de seis irmãos, residentes em Brazzaville, capital política da República Democrática do Congo,  o estudante disse ter tido também problemas iniciais com a remessa de dinheiro por parte da família, mas que agora a situação normalizou.

“Não estou com problemas financeiros. Meu pai, que mora na França, conseguiu no período de bloqueio das agências internacionais de remessa,  me enviar dinheiro. Tive apoio de um amigo no Brasil que disponibilizou sua conta bancária”, revela. Faniol reside sozinho em um imóvel alugado. E diz que o maior problema é a solidão, uma vez que a pandemia o alcançou quando sequer tinha realizado a matrícula na universidade. “Eu acordo, durmo, olhando pras paredes. Fico muito preocupado. Nunca imaginei que o Brasil fosse um dos países com mais mortes no mundo. Mas não tem o que fazer. Tem que esperar isso passar”, diz.

A exemplo dos estudantes beninenses, o aluno também lamentou a notícia do fechamento da Embaixada da República Democrática do Congo no Brasil. Faniol, como os colegas beninenses ouvidos, diz não ter contato com a representação do país em Brasília. “Eles não se importam, não estão nem aí para os estudantes que precisam de ajuda. Desde que cheguei ao Brasil a embaixada não mantém contato, não acompanha, nada”, disse. A nossa reportagem entrou em contato com as Embaixadas do Congo e Benin no Brasil, mas não obteve retorno às questões colocadas.

Vaquinha  

Abdou Razak Chabi Foto: Arquivo Pessoal

Abdou Razak Chabi, presidente da Associação dos Estudantes PEC-G na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde realiza o curso de Administração de Empresas, tem acompanhado de perto os diferentes problemas enfrentados pelos estudantes-convênio. Também presidente da Associação Diáspora Beninense no Brasil (ADBB), que reúne cerca de 400 membros, incluindo estudantes, os problemas para ele, parecem longe de acabar. “Nós da Associação fizemos até vaquinha em dinheiro e arrecadamos alimentos para ajudar alguns dos estudantes beninenses que estavam em situação crítica e que nos procuraram”, disse.

O representante da ADBB criticou o papel desempenhado pela Embaixada do Benin no suporte financeiro aos cidadãos beninenses durante a pandemia. E a falta de instruções e de comunicação quanto aos protocolos de prevenção da doença entre a comunidade. “Em dezembro nós da Diáspora participamos em Brasília de uma reunião agendada pela associação com o embaixador Boniface Vignon. Sequer fomos informados na oportunidade sobre o fechamento da Embaixada, agora nesse mês de julho”, disse.

De acordo com o presidente da Associação Diáspora Beninense no Brasil, foram realizados procedimentos para esse fechamento. “Após notícias desencontradas eu entrei em contato com a Embaixada em Brasília que confirmou a decisão do fechamento. Assim como serão fechadas outras embaixadas pelo mundo, ficando apenas duas em cada continente”, disse Chabi. E acrescentou: “Na prática a embaixada não iria fazer falta para os estudantes porque o governo brasileiro, através dos diferentes programas e diferentes instituições já ajuda os estudantes-convênio PEC-G”.

Este, para os beninenses, é o principal problema, quando comparada a atuação dos governos de outros países africanos e as políticas públicas de financiamento que se destinam aos estudantes PEC-G. “Cito o exemplo de países como o Gabão, Angola e Cabo Verde que apóiam financeiramente a presença de seus estudantes no Brasil”, diz Chabi. Para advertir os estudantes PEC-G e suas famílias durante a pandemia, o presidente da ADBB revela ter tomado medidas que considera “duras” face aos problemas apresentados pelos estudantes. Um comunicado foi emitido aos associados visando orientar quanto aos pedidos de ajuda à associação por parte dos beninenses.

 “Somos contrários que os pais desses estudantes enviem seus filhos sem apoio financeiro suficiente para as despesas mínimas, contrariando as regras do programa. Nós temos recebido pedido de ajuda de estudantes que estão no Brasil a menos de seis meses”, disse Razak Chabi. A associação defende a responsabilidade por parte dos pais nos primeiros dois anos, no mínimo. Levando-se em conta o tempo em que o estudante chega ao país e estará habilitado para recebimento de algum tipo de bolsa, seja do governo, seja das instituições parceiras. “Não queremos que os beninenses formem a imagem de coitadinhos ou que passem as dificuldades que estão enfrentando, como agora”, diz Chabi. De acordo com as regras do Programa Estudante-Convênio de Graduação, os pais são responsáveis pelo envio equivalente a $400 (quatrocentos dólares) mensais ao estudante PEC-G.

O presidente da Diáspora Beninense defende que a responsabilidade dos pais deva ser compartilhada com o Programa-convênio no momento da escolha dos candidatos, mesmo sabendo da existência de alguns tipos de auxílios estudantis oferecidos pelas universidades e bolsas, como a Promisaes, do Programa-Convênio oferecida pelo Ministério das Relações Exteriores. Razak também se diz preocupado com a qualidade do aprendizado dos candidatos aos testes Celpe-Bras de proficiência na língua portuguesa, que tem acompanhado em vários estados brasileiros. “Está  bem aquém do que deveria, quando comparado ao mesmo período em outros anos de ensino presencial”, disse.

Ano atípico

Coordenador na Universidade Federal da Bahia de um dos centros brasileiros de formação para o teste Celpe-Bras, o professor Ricardo Gualda reconhece que os estudantes do Programa PEC-G têm enfrentado dificuldades em 2020. Para Gualda, este tem sido “um ano atípico” para os  estudantes que já estão matriculados nas universidades e também para os candidatos ao teste Celpe-Bras. No caso da Universidade Federal da Bahia informou que ações tomadas conseguiram minimizar os problemas enfrentados durante a pandemia da Covid-19 pelos candidatos ao teste.

O coordenador revelou que o curso de formação foi prejudicado pela redução de verbas da UFBA que atingiu em 80% a quantidade de bolsas a alunos monitores de Português como Língua Estrangeira (PLE). E, consequentemente, ao número de alunos estrangeiros atendidos. “Se antes atendíamos turmas de 50 alunos, hoje atendemos apenas 10. Até a minha bolsa de coordenação foi cortada e estamos hoje com apenas quatro monitores voluntários e um bolsista”, disse. No entanto, revelou ter tomado providências preliminares que ajudaram a minorar os efeitos da pandemia.”Antecipamos a chegada dos estudantes estrangeiros para o mês de janeiro e felizmente conseguimos minimizar os problemas com documentação e estadia dos nossos candidatos ao teste de proficiência que fazem preparação aqui na UFBA”,  diz Gualda. Para o coordenador, a expectativa é de que a sua experiência de oito anos na preparação dos alunos ao teste possa superar potenciais impactos negativos nos resultados do Celpe-Bras causados pela pandemia.

Conforme o professor, a preocupação quanto à eficácia do ensino online para os candidatos PEC-G ao Celpe-Bras,manifestada pelo presidente da Associação Diáspora Beninense, não encontra resposta suficiente em relação à modalidade de formação. “Não há diferença intrínseca no aprendizado entre a atual modalidade online e os cursos presenciais”. Mas, segundo Gualda, tudo depende das condições de preparação, que reconhece serem “bem díspares e varia de universidade para universidade”. Para o professor, essa análise no momento seria precipitada, uma vez que só é possível comparar quando os resultados saírem. “No caso dos alunos da UFBA eu não espero resultado inferior aos anos anteriores, entre 70 e 90%. Em 2019 tivemos taxa de aprovação recorde de 89%”. disse.

Desenho do Programa  

Stela Meneghel Foto: Arquivo Pessoal

Stela Meneghel, professora da Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB) e pesquisadora da área de Políticas Públicas Educacionais, considera que os problemas vivenciados pelos estudantes do PEC-G não são novos. E disse acreditar que a condição de vulnerabilidade apresentada por alunos do programa já é  conhecida desde antes da pandemia. Para a pesquisadora, os problemas agora visibilizados ressaltam a falta de clareza do PEC-G como programa de cooperação, conforme foi originalmente desenhado.

“O fato é que não temos clara a diferença entre o que é um programa de cooperação acadêmica e de assistência, quando não se leva em conta o perfil do candidato admitido, a maioria oriunda de países pobres. E os estudantes terminam à mercê das circunstâncias, quando chegam ao Brasil para vivenciar um programa de gestão compartilhada na qual está dito que todo mundo é dono, mas ao final ninguém é dono”,  diz. Conforme Meneghel, quando um programa de cooperação transforma-se em uma “aventura” para os estudantes, “a efetividade dele está perdida”, argumenta.

A pesquisadora ressaltou que o programa completou 50 anos em 2014, e desde então as instituições parceiras vêm discutindo a urgência de se investir em melhorias e de tornar o PEC-G produtivo. “O projeto tal como foi desenhado, na perspectiva da cooperação técnica entre governos e não de assistencialismo, permite que os estudantes façam as críticas que eles fazem”. Significando, conforme a pesquisadora,  que o estudante que passa por dificuldade em geral, “fica muito mal assistido”.

Stela Meneghel lembrou de condições básicas inerentes aos programas de formação, a exemplo das necessidades citadas pelo beninense Octave Vincent, da Universidade Federal de Santa Maria: “Que estudante pode ficar sem um laptop? Vai fazer todos os trabalhos acadêmicos no celular? Se por acaso alguém roubar o equipamento do estudante ou se quebrar e ele não tiver dinheiro para consertar, o que acontece com o semestre dele? O aluno não pode estudar só com caneta, lápis e caderno”, questiona.

Para Stela Meneghel, “o desenho do programa está equivocado e para além da pandemia” quando joga sobre o próprio estudante a responsabilidade da decisão de vir ao Brasil para estudar em uma universidade. “Termina que a responsabilidade sobre o estudante PEC-G aqui não é de ninguém, já que é um programa de cooperação, não de assistência. E muitas vezes pela escassez de recursos, o aluno não consegue êxito, ou até mesmo por não saber falar a língua, fica sem acesso a direitos elementares, podendo comprometer até um semestre inteiro se tiver alguma dificuldade”, diz.

O professor Ricardo Gualda que compôs como membro a Comissão de Avaliação de candidatos junto ao Ministério das Relações Exteriores, em 2019, reforçou o papel da comissão na análise do perfil econômico dos candidatos. “Se a gente vir que a família do aluno não tem condições de enviar 400 dólares/mês, esse aluno não é aprovado porque o programa não prevê assistência nesse tipo de caso. E a gente tem sido mais rigoroso na documentação que aprova renda”, disse.

O avaliador revelou ter sido esta uma experiência “difícil”. “Para mim foi massacrante fazer parte dessa comissão porque claramente  tinha alguns casos que eu analisei em que o aluno não tinha condições econômicas, mas era a chance de ele vir para o Brasil e mudar de vida. Mas eu sei, estando nessa aponta aqui, que o aluno enfrenta muitas dificuldades. Aluno que passou fome, fica doente e está aqui sozinho, não tem dinheiro pra pagar aluguel. A gente na ponta não tem mecanismos para ajudar esses alunos, mas faz o melhor que pode”, diz.