GILFRANCISCO [*]

A Dalila Machado (1947-2021)

Conheci o poeta Erthos Albino de Souza nos anos 70 na Livraria Literarte, que ficava na Av. Sete de Setembro, 750, Galeria do edifício Santo Amaro, loja 11 de propriedade de Getúlio Santana, experiente vendedor de livros, havia trabalhado em todas as livrarias da capital baiana, ex-juiz classista e hoje proprietário do restaurante Extudo. A livraria era um celeiro de intelectuais jovens e da velha guarda, em frente estava a Graúna de Eduardo Sarno, o melhor Sebo na cidade. A Literarte chegou a publicar algumas plaquetas como Perfil e Sobrenome, Edilene Matos, col. Hipocampo, 1978 e Me Segura qu’eu vou dar um traço, Nildão, edição Literarte/Global, 1980. A Literarte era ponto obrigatório da intelectualidade soteropolitana, todos visitavam diariamente, não para comprar livros, mas para papear, saber das novidades, para ouvir as piadas indecentes do poeta da cavalaria, Carlos Sampaio (1942-1993) ou com sorte encontrar o contista do coelho azul de Jaboatão, Altamirando Borges Camacam e ouvir Rimbaud num bom francês.

Tudo começou por causas das pesquisas que desenvolvíamos paralelamente sobre o poeta simbolista baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), eu havia conseguido a certidão de óbito em que confirmava ter ele nascido em Salvador e outros documentos. Foi um grande achado, porque em seguida o cartório que ficava na Ladeira da Poeira foi incendiado. Todo o material por mim localizado na época sobre Kilkerry para a 2ª edição (1985), não pode ser incluído em virtude da edição da Brasiliense encontrar-se em sua fase final de impressão, mas todo esse material de pesquisa anterior a 1985 e outros posteriormente localizados durante a continuação das pesquisas, foram remetidos a Augusto de Campos, para inclusão numa próxima edição. ¹

Fizemos uma boa amizade e passei a frequentar suas duas moradias, tinha o cuidado de telefonar antes para saber em quais dos dois apartamentos se encontrava e se podia me receber. Um apartamento ficava no bairro da Barra, no Edifício Marques de Pombal, Alameda Antunes, 17/402 e sua outra residência no bairro da Pituba, próximo ao Supermercado Paes Mendonça. Em ambos, os apartamentos estavam abarrotados de livros, revistas, discos, pastas cheias de recortes de periódicos e filmes. Em nossos encontros discutíamos sobre música, literatura, mostrava as novidades adquiridas além das dissertações e teses recebidas de vários professores universitários as quais havia colaborado com alguma informação ou no fornecimento de material. Ele me dava muitas dicas para as pesquisas, inclusive na ajuda sobre Sosígenes Costa, livro que publiquei em 2001, pela Fundação Cidade de Ilhéus, na gestão de Hélio Pólvora.

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¹ Todos esses documentos localizados por mim, durantes anos de pesquisas estão no livro, Pedro Kilkerry: maldito entre malditos, GILFRANCISCO. Edições GFS, coleção BASE nº13, Aracaju, 2022.

Homem afável e acolhedor, Erthos estava sempre atendendo as solicitações dos acadêmicos, era um colecionador, tinha recursos financeiros para adquirir qualquer livro raro que se encontrasse em catálogo ou não. Tinha todas as edições dos Sertões, todas as edições dos livros de Guimarães Rosa, todas as edições de Sousândrade, além dos livros dos irmãos Campos. As revistas Modernistas tinham todas: Novíssima; A Revista; Estética; Klaxon; Festa; Verde; Leite Crioulo, Antropofágica; sem falar nas baianas, Samba; Arco-Flexa; Seiva; Cadernos da Bahia. Não se negava a fornecer material, sempre tirava cópia xerox do que fosse solicitado. Algumas dessas revistas hoje em meu poder foram doadas por sua irmã.

Revista Código – Fotos: Reprodução

Dessa amizade que se fortalecia com o passar dos anos, os constantes encontros em eventos: lançamentos, shows e telefonemas em que discutíamos sobre literatura: Kilkerry, Sosígenes Costa, Sousândrade, Maiakóvski, Augusto e Haroldo de Campos, Boris Schnaiderman e outros. Erthos tinha muitos amigos no Sul do país e hospedava-os quando em visita à Salvador. Em sua residência, conheci vários dos seus amigos, entre eles Arnaldo Antunes, Paulo Leminski e Carlos Àvila.

Erthos vivia entre os milhares de livros que lhe põem em contato com o mundo, com a morte, com a vida. Estava sempre cercado por gatos angorás e siameses, confinados à área do apartamento. O cheiro forte de urina dos animais não me permite demorar por muito tempo no ambiente. Eu tinha medo dos gatos, eram grandes, peludos, caudas longas, olhos azulados outros esverdeados, houve época em que tinha mais de quatro e ficavam inquietos no sofá ou entre as pernas dos inocentes visitantes. Eu tremia em ver aquela língua áspera me lambendo, mordendo os cadarços dos tênis, aquelas unhas retráteis, aquela habilidade em saltar, trepar, espreitar sua presa. Ele retirava os animais, mas retornavam sempre, determinados a me assustar. Não sei por que os poetas têm tanta adoração por felinos: Ezra Pound, Haroldo de Campos, Guimarães Rosa, Nelson Ascher, Antônio Carlos Viana e tantos outros. Jantamos algumas vezes juntos, mas eu morria de medo, com os felinos subindo à mesa desfilando entre pratos, copos e xícaras. Meu coração andava a mil.. de A/Z.

Apesar de ser uma pessoa reservada, educada, atenciosa e de pouca fala, Erthos sempre atendeu a todos os que procuravam, fornecendo inclusive suas primeiras edições raríssimas para publicação de edição fac-similar e cópias de textos raros para professores ou pesquisadores de todo o país. Quando a professora da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica do Salvador Ìvia Iracema Duarte Alves preparava a sua tese de doutorado sobre Eugênio Gomes, publicada em 2007 com o título de Visões de Espelhos – o percurso da crítica de Eugênio Gomes, pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia/Academia de Letras da Bahia, fui eu quem a levou à casa de Erthos Albino, recebendo dele alguns exemplares em duplicatas de livros de Eugênio Gomes. Em dedicatória ela registra: ”Gil. Este livro também você/ participou. Se não tivesse você e Erthos provavelmente/ não seria tão alentado/com um abraço”.

Sua redescoberta do poeta Pedro Kilkerry, contributo maior para a história da literatura baiana, in Revisão de Kilkerry (1970), Augusto de Campos, Fundo Estadual de Cultura – São Paulo, reeditado (1985), 2ª edição revista e aumentada pela Editora Brasiliense, com uma bibliografia sobre Kilkerry, organizada por ele, permitindo que novos estudos sobre o poeta simbolista fossem realizados. O pioneirismo na computação gráfica do engenheiro Erthos Albino de Souza, presente na edição Mallarmé, Augusto, Haroldo de Campos e Decio Pignatari, 1974, Editora Perspectiva, com as variações gráficas que integram seu poema Le tombeau de Mallarmé. Foi ele que financiou a edição Re/Visão de Sousandrade, Textos críticos, Antologia, Glossário, Biobibliografia, com a colaboração especial de Luiz Costa Lima e Erthos Albino, São Paulo, Ed. Invenção, 1964. Erthos foi quem mais colaborou para a reabilitação do poeta Sousândrade fornecendo aos irmãos Campos as edições originais editadas em Londres, além da crescente fortuna crítica de Sousândrade organizada por ele e incluída no livro Revisão de Sousândrade a partir da 2ª edição, de 1982, Editora Nova Fronteira. Erthos.

Também participa do levantamento bibliográfico/pesquisa de textos do livro Pagu:vida-obra (Patrícia Galvão), Augusto de Campos, Editora Brasiliense, 1982, figura lendária mas ainda escassamente conhecida. Foi ainda o responsável pela manutenção da Revista Código, publicação independente surgida nos anos 70, totalizando 12 números, 1974/1990. Também publicou pela Editora Código 20 Poemas de Cummings (1990), traduzidos por Carlos Loria e Casa Clara (1991), livro de poesia do mesmo tradutor.

Quando Erthos Albino de Souza ficou doente eu já estava residindo em Aracaju, mas fiz duas ou três visitas em 1997/1998, época em que cursava o mestrado na Universidade Federal da Bahia. Logo que soube que ele havia sido diagnosticado com o Mal de Alzheime, fui visitá-lo. A doença é terrível (demência pré-senil que se manifesta por volta dos 50 anos e se caracteriza por uma deterioração intelectual profunda), mas sua empregada que trabalhava com ele há muitos anos, não comunicou a família, aos parentes que moravam em Minas Gerais nem à sua irmã que vivia nos Estados Unidos da América do Norte. A doença é degenerativa, mas no início pode ser controlada, mas segundo sua irmã só tomou conhecimento tempos depois, quando já estava num estágio avançado.

Quando estive com ele pela última vez, não falava nem ouvia, ficava estático com um olhar profundo, perdido na sua imensa escuridão, fixo que ninguém consegue esquecer, como que buscasse o segredo dos azuis. Sentado no sofá da sala, tentava falar, mas nada… o que saia era um som inaudível. O corpo tremia, agitava-se. Sua irmã e uma enfermeira acompanhante tentavam colocar em sua boca um medicamento, que conseguiram depois de sucessivas investidas. Devido a sua vida discreta a irmã não sabia nada da sua vida privada, nem mesmo que ele era homossexual. Nunca desconfiaram dos reais motivos que o levaram a vir para Salvador. Durante a conversa que mantivemos por alguns dias, ela perguntou pelos amigos que haviam sumido, deixaram de telefonar. Disse-lhe que eram poucos. Ela estava completamente atônita, tinha que resolver os problemas e tencionava levá-lo para Minas Gerais, a fim de ficar próximo aos familiares, em seguida retornar para os Estados Unidos.

Combinamos um novo encontro para no dia seguinte irmos até o apartamento da Barra, porque ela continuava à procura de documentos dos imóveis. Ao chegarmos, disse-me que o professor Fernando da Rocha Peres havia estado com ela juntamente com José Mindlin (1914-2010), ambos, amigos de Erthos, pois Mindlin estava interessado na compra da Biblioteca, ofereceu um valor, segundo ela irrisório pela quantidade de volumes, além dos títulos raros. Ela me revelou o valor, realmente era muito baixo, muito abaixo do mercado livreiro. Não discuti os pormenores. Nesta visita Fernando Peres levou um livro que pelo formato e data de publicação segundo ela, era coisa rara e que certamente teria um bom preço no mercado. Este volume tinha relação com a igreja. Quando ela me falou perguntando o que achava, disse-lhe que telefonasse e pedisse a devolução do volume levado. Soube depois tratar-se de uma raridade do século XV.

Ficamos arrumando as raridades. Separei alguns livros e revistas modernistas que tinha interesse e pedi autorização para levá-las. De repente ela remexendo num dos guarda-roupas de um dos três quartos do apartamento, localizou dezenas de revistas gay (publicação estrangeira), quase desmaiou ao manuseá-las. Voltou-se para mim e perguntou o que faço? Por que isso está aqui? Toco fogo? Retornou ao quarto e disse-me: eu não sabia que meu irmão era gay. Sentou-se e por alguns minutos ficou em silêncio.

Posso assegurar que sua irmã já desconfiasse, pois quando perguntou a empregada pelas amigas dele e ela, nada lhe respondeu.

A princípio não quis aceitar a condição sexual do irmão e me interpelou, queria saber com quem ele vivia, se eu conhecia a pessoa, essas coisas de família…. Sem alternativa passei a relatar o que realmente sabia e alguns amigos mais próximos também sabiam da opção sexual, como Luciano Diniz (1948-2004), poeta e sociólogo, André Luys Sãntos (1960-1982) programador visual e poeta místico, pop, punk, como bem disse Antônio Risério, mas eram poucos. Disse-lhe que Erthos tinha um velho romance com um motorista de táxi que era casado, tinha filhos, mas era muito discreto, poucas vezes encontrei em seu apartamento e quando chegava alguma visita ele estava sempre de saída.

Eu sabia que Erthou o ajudava financeiramente, encontrei ambos algumas vezes nos Mares, no setor de discos do Supermercado Paes Mendonça, bem próximo do local em que trabalhava cuja sede da Petrobras ficava na Avenida Jiquitaia, em frente à antiga fábrica da Coca Cola. Ela queria saber mais detalhes que eu desconhecia, como por exemplo: onde ele morava. Passei uns quatro dias com ela, entre os apartamentos da Barra e Pituba. Ela havia colocado à venda ambos os apartamentos, porque pretendia interná-lo numa Casa de Saúde apropriada em Minas. Num desses dias em que nos estávamos procurando documentos dos imóveis, talões de cheques, aplicações, cadernetas de poupança, localizamos uma procuração emitida por Erthos para o seu companheiro receber o salário da Petrobras e movimentar a conta bancária. Na verdade, ele vinha já algum tempo recebendo seus vencimentos.

Eu estava ajudando porque ela não tinha uma pessoa para acompanhá-la nessas tarefas, era uma senhora de quase sessenta anos. Eu querendo sair da história, mas não conseguia. Testemunhei várias discussões entre ela e o ex- companheiro de Erthos. Não me recordo no momento seu nome, mas tinha cara de mocinho, ingênuo, mas era bandido, ousado, atrevido ao ponto de já estar providenciando a venda dos imóveis. Na nossa presença ele adentrou o apartamento levando consigo um provável comprador, se dizendo proprietário. Após discutirem ela pediu para que ele se retirasse e alertou o interessado pela aquisição do imóvel. A irmã de Erthos, afirmou que ele não era o proprietário.

Estes incidentes ocorreram bem próximos da sua morte. Ela chegou a propor a ele um valor bastante significativo na época, mas ele queria um dos apartamentos justificando merecedor por cuidar de Erthos por todos aqueles anos, o que não era verdade. Não sei o fim da história, nem se Mindlin adquiriu a Biblioteca. Retornei à Aracaju e até hoje não tenho nenhuma notícia sobre sua irmã. Em 2004, estive com o poeta Arnaldo Antunes em Aracaju, durante uma coletiva, e aproveitamos esse reencontro para falarmos sobre o poeta Erthos estudioso da literatura, o homem prestativo, generoso, amigo, um bom camarada.

Bibliófilo, poeta e artista gráfico, Erthos utilizou a física e a matemática em sua criação poética, é um dos primeiros autores brasileiros a utilizar o computador na elaboração dos seus poemas. Sua participação no Concretismo na Bahia é tida como o maior representante, basta ver o poema geométrio Crisálida Risal (1967) e suas colaborações nas revistas: Atlas; Artéria; Polém; Qorpo Estranho; Revista da Bahia; Exu; Muda; Invenção; Código. Erthos Albino de Souza nasceu em Ubá (Minas Gerais em 1932) e faleceu em julho (Juiz de Fora em 2000). Após sua morte, sob curadoria de Augusto de Campos e André Vallias reuniram sua Poesia Visual, numa exposição: Erthos Albino de Souza – Poesia: do dáctilo ao digito, Instituto Moreira Salles – IMS – RJ. Na mostra estão reunidos trabalhos desde os primeiros poemas gráficos feitos com máquina de escrever (década de 60), até as impressões em computador (cartões perfurados), anos 70.

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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com