[*] Cid Seixas

A vida cultural dos estados da Bahia e de Sergipe, ainda hoje, está umbilicalmente ligada, como se formássemos uma só unidade da federação, que poderia ser chamada de BASE. Muitas personalidades culturais da Bahia são, na verdade, sergipanos natos, a exemplo do José Calazans, autoridade nacionalmente referenciada pelos estudos sobre a Guerra de Canudos, e Nelson Araújo, outro importante estudioso que veio de Sergipe para enriquecer a seara dos estudos da história do teatro, das manifestações populares e também do mundo clássico greco-romano.

Coincidentemente, estes dois mestres sergipanos – que se tornaram referências capitais no contexto acadêmico e intelectual da Bahia – foram responsáveis pela iniciação de um jovem estudante de Salvador que fez um percurso de retorno às terras de Sergipe Del Rey. Vejamos então a trajetória desta figura multifacetada que traz na sua bagagem a herança de dois admirados intelectuais sergipanos.

O jornalista, pesquisador e professor Gilfrancisco, ilustre cidadão sergipano nascido na Bahia, está prestes a completar 70 anos de idade. No que pesem as muitas libras e arrobas temporais de anos vividos, ele continua arguto e produtivo. José Calasans e Nelson Araújo, infelizmente, não viveram mais tempo para testemunhar como os seus trabalhos de pioneiros retornaram à sua sempre lembrada terra natal, através do discípulo baiano – que a exemplo dos dois mestres também se vê sergipano.

O jornalista e escritor, GILFRANCISCO Foto: Arquivo Pessoal

Neste ano de 2021, a Universidade Federal de Sergipe, importante instituição cultural sediada no Estado, conferiu a Gilfrancisco a sua mais expressiva e elevada distinção acadêmica, o título de Doutor Honoris Causa.

Como me referi a ele como Cidadão Sergipano, devo fazer uma ressalva, antes de prosseguir com o texto de apresentação deste livro significativamente denominado A outra voz, a voz do outro.

No que pese a sua contribuição à nova terra escolhida como sua pátria intelectual, o Doutor Gilfrancisco é, por escolha afetiva e intelectual, um Cidadão Sergipano, mas não de fato e de direito, porque o devido título não lhe foi outorgado pela Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe. Outro título de natureza acadêmica que ainda não foi atribuído ao quase cidadão é o de “imortal sergipano”, conferido àqueles eleitos pelos confrades da competente Academia de Letras destas novas terras afetivamente conquistadas por Gilfrancisco.

O livro comemorativo dos 70 anos de Gilfrancisco é uma espécie de visão panorâmica do seu trabalho de jornalismo cultural. A julgar pelo título escolhido – A outra voz, a voz do outro –, já percorremos parte do melhor caminho; ou seja, estamos diante de um bom livro. O autor soube escolher magistralmente como denominar este conjunto de 18 entrevistas feitas para jornais e revistas, mas muitas delas ultrapassam a utilidade circunstancial da imprensa e se impõem como documentos da memória cultural.

Aliás, convém se repetir: este é o mérito dos escritos e subscritos do nosso autor. O lugar de destaque merecidamente conquistado por ele se deve à natureza da investigação cultivada ao longo dos anos, desde que na Bahia teve como mestres de metodologia e de trabalho dois sergipanos ilustres, os já referidos José Calasans e Nelson Araújo.

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Abro parênteses aqui para dizer que acabo de ler alguns artigos do professor José Calasans Brandão da Silva – este é o nome completo do jovem sergipano que se tornou um respeitado patrimônio da vida cultural baiana e brasileira – reunidos no livro Cartografia de Canudos, uma das obras consideradas essenciais pelos estudiosos do tema. No momento estou empenhado em organizar um e-book com textos de Calasans sobre um dos muitos episódios da Guerra de Canudos.

Convém não confundir o educador José Calasans com o militar e deputado José Calazans, constitucionalmente eleito em 1892 primeiro Presidente da Província de Sergipe. Apesar de militar, este político sofreu forte oposição por parte dos apoiadores do primeiro golpe militar ocorrido no Brasil, apelidado de República.

Nascido no dia 14 de julho de 1915, o professor José Calasans fez sua formação básica no Liceu Sergipense, tendo em Salvador conquistado o título de bacharel em Direito, em 1937. Já formado, como bom filho volta à casa materna, passando a lecionar no Colégio Estadual de Sergipe e na Escola Normal Rui Barbosa. Nesta última tornou-se Catedrático de História do Brasil e de Sergipe, aprovado com distinção.

Devido à sua projeção intelectual, o mestre Calasans assumiu a presidência do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, no biênio compreendido entre 1945 a 1947.

Ainda em Sergipe, atuou em São Cristóvão, colaborando com Rodrigo de Melo Franco, como diretor do Iphan, promovendo a classificação de bens e imóveis da cidade.

Em 1947, José Calasans Brandão da Silva regressa a Salvador com a esposa e o filho José para lecionar na Faculdade Católica de Filosofia e na então Faculdade de Filosofia Ciência e Letras, núcleo formativo da futura Universidade Federal da Bahia.

No ano de 1951 presta concurso de Livre Docência de Historia do Brasil, defendendo a tese O Ciclo do Bom Jesus Conselheiro. Na mesma Faculdade, em 1959, conquista a Cátedra de História Moderna e Contemporânea, com o estudo intitulado Os Vintistas e a Regeneração de Portugal. Durante alguns anos foi Chefe do Departamento de História da UFBA e diretor da Faculdade, tendo sido eleito Vice-Reitor em 1980.

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Depois de falar de um dos responsáveis pela formação BASE (Bahia-Sergipe) de Gilfrancisco voltemos ao livro A outra voz, a voz do outro, ora apresentado ao público leitor. O espesso volume comemorativo dos 70 anos do autor é dividido em três partes – (1) “História, Política e Jornalismo”, com seis entrevistas; (2) “Artes Plásticas, Cinema e Música”, formada por três conversas, uma sobre cada área artística; e finalmente a parte (3) “Literatura”, a mais longa de todas as unidades temáticas do livro, com nove entrevistas.

Observe-se que, na condição de testemunha ocular e participe ativo da vida cultural das duas unidades da federação brasileira, os estados da Bahia e de Sergipe, Gilgrancisco procura destacar o papel de personalidades de ambos os espaços territoriais e suas particularidades. Cabe agora ao privilegiado leitor deste conjunto de diálogos escolhidos mergulhar de cabeça, tronco e membros nas águas correntes deste rio de palavras repesadas. O Rio de Seu Francisco Setentão.

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[*] É jornalista, escritor, Doutor pela USP e Professor Titular aposentado da Universidade Federal da Bahia. Editor do site Linguagens, hospedado no endereço abaixo: http://linguagens.ufba.br/

Foto Destaque: Arquivo Pessoal