“Estou chegando à conclusão que a gente está vivendo a continuidade da ditadura militar no governo Bolsonaro e Mourão”, afirma, enfática, a doutora em Ciências Sociais e professora do Departamento de Gênero e Feminismos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Sonia Jay Wright. A professora Sonia Wright é sobrinha do então deputado estadual de Santa Catarina, Paulo Stuart Wright, liderança nacional da Ação Popular, nascido no município de Joaçaba. O deputado, sociólogo formado nos Estados Unidos, irmão do pastor presbiteriano e ativista dos Direitos Humanos Jaime Wright, foi preso em 1973, aos 40 anos, em São Paulo. Foi torturado e morto 48 horas após ser detido dentro de um trem, na companhia de um amigo e companheiro departido. Nesta semana em que o mártir das liberdades democráticas, Tiradentes, é lembrado, e dias após a declaração do General Mourão, varrendo para baixo do tapete as torturas perpetradas em presos políticos na época da ditadura, a professora defende ser esta uma oportunidade para que o Brasil seja repensado. Confira a entrevista concedida por Sonia Jay Wright a jornalista Rosa Meire.
Rosa Meire – Qual é a importância de se repensar o país, em uma semana de homenagens ao mártir Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, morto e esquartejado em praça pública em 1792?
Sonia Jay Wright – A data traz o simbolismo da tentativa de o Brasil deixar de ser colônia. Hoje, entretanto, temos um outro tipo de colonialismo acontecendo em nosso país. A exploração econômica que antes era pau brasil, ouro. Hoje temos a população sendo explorada em diversas frentes, de uma forma mais diversificada. E a colonização cultural também. Como a gente consome também produtos estrangeiros, principalmente de países do Norte. Não só os culturais, mas muitos produtos, principalmente industrializados.
Rosa Meire – Qual é sua leitura sobre o Brasil pós-1964, tendo como referência o golpe?
Sonia Jay Wright – Na minha visão o Brasil continua em um viés ainda autoritário. Pode ter tido momentos mais democráticos desde 1964 até agora, mas o autoritarismo está muito enraizado, tanto nas instituições, como na própria população. No governo Bolsonaro o autoritarismo circula através de seus ministérios e no Congresso Nacional. E agora nós temos um momento de eleições que tem um fundo partidário enviesado também. Emendas e orçamento secreto que já favorecem alguns deputados e alguns setores, que podemos dizer, são os mesmos setores empresariais que deram o golpe em 1964. E os militares continuam com privilégios que a população não tem. Desde alimentação até medicação, à questão de saúde, que tornam ser militar uma casta mesmo.
Rosa Meire – Que expectativas as eleições de outubro de 2022 trazem para a democracia?
Sonia Jay Wright – Eu espero que o Brasil encontre seu caminho com a eleição, que é um instrumento democrático que a gente tem. Mas, creio mais na sociedade civil organizada indo para as ruas, do que propriamente em uma parte representativa oficial. Tivemos um belo exemplo recente nas ruas da Marcha do MST, em luta contra a violência no campo e em defesa da reforma agrária. Enquanto a sociedade civil que agora é mais forte do que em 1964, estiver em ação, eu acho que a gente tem alguma esperança.
Rosa Meire – Recentemente o Brasil passou por alguns episódios divulgados na mídia. Refiro-me aos áudios obtidos pelo historiador Carlos Fico, divulgados pela jornalista Miriam Leitão, que remetem a casos de torturas no Brasil durante a ditadura militar. As reações do general Luis Carlos Gomes Mattos, presidente do Superior Tribunal Militar (STM); tanto quanto do vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, ficaram entre a ironia e o deboche. Em outro momento o deputado federal Eduardo Bolsonaro também faz piada em um post na internet do relato sobre torturas sofridas por Míriam Leitão, durante a ditadura, ocasião em que foi presa, grávida, e ficou em uma sala sob tortura, com o uso de uma cobra e de cães, dentre outros instrumentos. Tendo um tio sequestrado, torturado e morto, e o corpo nunca encontrado, como a senhora vê essas reações de membros do governo e parlamentares brasileiros nesse momento diante de um assunto tão sério?
Sonia Jay Wright – Essa reação de militares que governam este país é coincidente com o que dissemos, de que o país dá continuidade a um regime ditatorial. Diferentemente de outros países latino-americanos, como a Argentina, no Brasil a chamada Justiça de Transição não foi feita. Os militares brasileiros não foram punidos em seus atos de tortura, assassinatos e outras formas de violência, uma vez que o projeto de lei foi reinterpretado e a Lei da Anistia atendeu, de acordo com seus interesses, que era de militares e algozes da ditadura não serem criminalizados pelas atrocidades cometidas.
Alguns países da América Latina foram às últimas consequências. Foi uma luta árdua, mas os militares, autores de crimes contra cidadãos, foram processados e condenados. E, para tanto, foram importantes os movimentos sociais, como o de mães e avós da Praça de Mayo, na Argentina, dentre outros. O que houve no Brasil não pode ser considerado justiça. Especialmente para os familiares e as pessoas que ainda estão vivas e sofreram tortura. As declarações relativas aos episódios de áudios sobre torturas e sobre a violência sofrida pela jornalista Míriam Leitão são sintomas de que o Brasil ainda não fez seu dever de casa. Esses casos já haviam sido denunciados pelo Projeto Brasil Nunca Mais, com base nos depoimentos de presos políticos na Justiça Militar e que constam de seus processos.
Rosa Meire – No caso da Justiça de Transição, quais foram as providências tomadas quanto ao seu tio, deputado Paulo Stuart Wright, além do reconhecimento formal de seu desaparecimento?
Sonia Jay Wright – Entre 1985, com o fim da ditadura militar, até o momento, houve apenas um arcabouço dessa chamada “Justiça de transição”. Em 2011 a ex-presidenta Dilma instituiu a Comissão Nacional da Verdade, que voltou a questionar a Lei da Anistia. A Justiça de Transição que as famílias esperavam, com a punição dos torturadores, não foi implementada. Houve o reconhecimento formal obtido a partir da Comissão de Direitos Humanos instituída pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990, da inclusão do nome do meu tio Paulo. Houve, também, o pagamento de indenização à família e o restabelecimento recente do mandato cassado à época de Paulo Stuart Wright.
Mas, os restos mortais de meu tio até hoje não foram revelados e nem entregues à família para que possamos enterrá-lo dignamente. “O coronel tem um segredo: Paulo Wright não está em Cuba” é o título do livro de minha irmã Delora sobre tio Paulo que remete a um segredo nunca revelado pelos militares. Os responsáveis pelas mortes não foram efetivamente punidos. Até que isso seja feito, a família não terá a paz prometida pela Justiça de Transição. A anistia ampla, geral e irrestrita defendida pelos movimentos sociais não foi conquistada. A anistia do governo do presidente João Figueiredo, que fez parte da Justiça de Transição, nega as atrocidades e enfraquece as instituições democráticas. E o segredo ao qual o livro de minha irmã se refere, sobre o local onde estariam esses corpos, permanece.
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