GILFRANCISCO [*]

Ao amigo Cleomar Brandi

Barata, popular e democrática a cachaça aliviou a dor nas senzalas, serviu a libação nos cultos religiosos, animou festas profanas. Durante anos foi perseguida e proibida. Tributada, contrabandeada, desfez preconceitos. Passou a ser apreciada, hoje, é produzida em todo o País e exportada para todo o mundo.

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Segundo Luís da Câmara Cascudo o mais antigo registro do verbete “cachaça” que se conhece veio de Portugal onde era conhecida nas quintas fidalgas do Minho. O poeta Sá de Miranda (1481-1558) refere-se na sua carta a Antonio Pereira, senhor de Basto:

Ali não mordia a graça,

Eram iguais os juízes,

Não vinha nada da praça.

Ali, da vossa cachaça!

Ali, das vossas perdizes!

Já o professor Renato Mendonça (1912) em “A Influência Africana no Português do Brasil” (1933), livro clássico, obra a que se tem de recorrer necessariamente sempre que se aborde esse tema, afirma ser de origem africana. Registra ainda Cascudo que a denominação não se tornou comum em Portugal nem na Espanha, onde era feita das borras. Seria a primeira bebida destilada no Brasil do século XVI porque em 1610 o viajante francês Pyrard de Laval, na Bahia, informava: “Faz-se vinho com o suco da cana, que é barato, mas só para os escravos e filhos da terra”. Guilherme Piso e Jorge Maregrave, vivendo em Pernambuco (1638-1644), mencionam a cachaça como a espuma esfriada do caldo de cana, depois da primeira fervura na fabricação do açúcar. Era mais garapa e o teor alcoólico nenhum. O padre André João Antonil em seu livro “Cultura e Opulência do Brasil” (1711) escreve: “O caldo bota fora à primeira escuma, a que chamão cachaça”.

Origem

A indústria da cana-de-açúcar no Brasil, nos primeiros anos da colonização, tinha como objetivo a produção do açúcar, artigo muito procurado no mercado consumidor europeu. Por isso a cana-de-açúcar não é e nunca foi uma atividade exclusivamente agrícola, mas agroindustrial, uma vez que a cana tem de ser transformada em açúcar nos engenhos, também chamadas “fabricas de açúcar”.

Cachaça, cana, caminha, pinga, branquinha, parati, mata-bicho, engasga-gato, leite-de-onça, marvada, mé, limpa, fubuia… A aguardente de cana tem muitos nomes no Brasil. Se hoje a cachaça é muito popular, houve um tempo em que ela era praticamente desconhecida tanto dos portugueses quanto dos negros e dos indígenas. Sua descoberta se deve ao acaso. A bebida nasceu como subproduto dos engenhos, das impurezas retiradas durante o processo de fervura do caldo da cana, na produção do açúcar. Ao lado do tacho fervente havia outro de água fria, que servia para limpar os resíduos da escumadeira, uma espécie de colher.

Essa água com impurezas era chamada de cachaça, que, fermentada naturalmente, começou a ser consumida e apreciada pelos escravos. Só mais tarde a cachaça passou a ser destilada, recebendo então o nome de pinga, por que no processo de destilação o alambique fica pingando.

Antigamente, se usavam alambiques com destilações sucessivas, mas hoje se usam destiladores industriais que proporcionam a obtenção imediata da bebida. Do mesmo modo, antigamente, a cachaça era toda produzida em alambiques nos engenhos ou por pequenos plantadores como “subproduto” da plantação, praticando ainda a mistura de cachaças de diferentes origens. Tudo indica que já havia produção de cachaça no Brasil nos fins do século XVI, destinada aos escravos e às camadas mais pobre dos homens livres.

Até o fim do século XVIII, a Coroa portuguesa tentou, sem êxito, coibir a produção de cachaça no Brasil. Em principio, a cachaça, por ter inicialmente gosto muito alcoólico, só deveria ser comercializada após envelhecer pelo menos um ano em tonéis de madeira.

Brasil Nação

Foto reprodução Capa Cordel Os Horrores da Cachaça, de Sinézio Alves

Desde sua descoberta, a cachaça ou pinga teve vida dupla: produzida no engenho, servia para o consumo dos escravos – como mata-bicho, desjejum, remédio ou estimulante – e também como moeda, junto com rolos de fumo, na comprar de escravos na África.

Apesar de sua importância comercial, recebia o mesmo tratamento dos filhos bastados nas casas-grandes: não frequentava a mesa do senhor, que, por gosto ou hábito, preferia o vinho ou a bagaceira (aguardente feito a partir do bagaço da uva), bebidas típicas portuguesas.

À época do Brasil independente, após 1822, a cachaça passou a ser apreciada como bebida símbolo da nova nação. Hoje é largamente consumida, pura ou em batidas e licores. Pingado dos alambiques de engenhocas (pequenos engenhos) em todos os cantos do Brasil, a cachaça ganhou status de bebida nacional e hoje é industrializada, produzida por grandes empresas.

Pioneirismo

Outro grande estudioso, pioneiro sobre o assunto foi o sergipano José Calasan Brandão da Silva (1915-2001), autor do livro “Cachaça, Moça Branca” (1951) que publicou em 1943 no nº1 da Revista de Aracaju o artigo “Aspectos Folclórico da Cachaça”, onde procurou focalizar aspectos da cachaça na poesia popular de Sergipe, material coligido por ele. A cachaça tem exercido uma extraordinária influência no folclore brasileiro, mas ainda pouco estuda pelos folcloristas nacionais. Todos bebem. Ricos e pobre; brancos e negros, mas todos têm uma desculpa na ponta da língua para justificar uma bebedeira. Há quem diga que a branquinha serve para esfriar nos dias de calor, e para esquentar nos dias de frios; serve para inspirar os poetas, melhorar a voz dos cantadores:

Cachaça, fria da cana

Neta do canaviá

Quem bebe muita cachaça

Canta que nem sabiá.

***

Quando eu enjeitá cachaça

Macaco engeita banana

Vigaro perde a sumana.

Não tínhamos sobre o folclore da cachaça senão uns poucos artigos de jornais. O livro do professor Calasans preenche essa falta (há mais de cinqüenta anos), além de ser um estudo sobre a cachaça, contém algumas adivinhas, uma lista bastante longa de ditos e ditados da cachaça, por fim, um vocabulário extremamente rico.

Simpatias e Receitas

Foto reprodução da Capa do Cordel Receitas de Cachaça com Folhas do Dr. Sabitudinho (Para curar toda doença), de autoria de Maxado Nordestino (Franklin Machado)

Para deixar de beber: Misture à cachaça raspa de unha da mão esquerda. A pessoa deve beber pela manhã, em jejum, mas nunca poderá saber.

Para curar embriaguez: Ponha o bicho-da-cana na água; despeje um poço no cálice de cachaça, sem a pessoa saber. Para ressaca: chá de boldo de quintal.

Cachaça: santo remédio

· com laranja é diurético

· com café corta gripe

· com açúcar queimado, resfriado

· com sal, excelente gargarejo para amigdalite

· com pólvora, bom para dor de dente

· com arruda, para o estômago

· com chuchu, para reumatismo

· com fumo, para bicho-de-pé

· com teia de aranha, para ferida

· com sassafrás, para dor de barriga

· com ameixa, purgativo

· com folhas de eucalipto, suador

· com guiné, fecha o corpo

· com catuaba, faz velho ficar moço a ponto de procurar mulher

Oração do Cachaceiro

Santa cana que está na roça,

aguardente sem mistura,

venha a nós o vosso líquido

para ser bebido à nossa

vontade, assim no boteco

ou em qualquer lugar.

O garrafão nosso de cada dia

nos daí hoje, perdoai as vezes

em que bebemos menos,

assim como perdoamos o

mal que ela nos faz, não nos

deixes cair atordoados,

livrai-nos da radiopatrulha,

amém.

A Cachaça na MPB

Você pensa que cachaça é água

Cachaça não é água não

Cachaça vem do alambique

E água vem do rio Jordão.

***

Com a marvada pinga

É que eu me atrapaio

Eu entro na venda e já dou meo taio

Pego no copo e dali num saio (Ochelsis Laureano)

Ali mesmo eu bebo

Ali mesmo eu caio

Só pra carregar é que eu dô trabaio

Oi lá

***

Eu bebo sim e vou vivendo

Tem gente que não bebe e tá morrendo

Eu bebo sim

***

O malandro

Na dureza

Senta à mesa

Do café

Bebe um gole (Chico Buarque de Holanda)

De cachaça

Acha graça

E dá no pé.

O folclorista Americano do Brasil recolheu em 1925:

Cachaça

Sou a cachaça e no mundo

Tenho grande estimação

Já não se fala no vinho

Só eu entro em função.

No batismo ou casamento

Todos trazem o seu vidrinho

Para levar para casa

O seu gostoso pinguinho.

Já tenho pena do vinho

Disse pobre desprezado,

Mas o povo tem razão

“Ele é tão preto, coitado”.

Vinho

Sim, sou preto, isso é verdade

Porém esse é meu estado;

Assim manda a natureza

De quem sou grande enviado.

Sou vermelho e tenho um trono

Pela igreja alevantado,

Fica sabendo, cachaça,

De sangue de Deus sou formado.

Entro no cálix sagrado

Em mim se rende a Deus graça,

Sou fidalgo, não misturo

Ando sempre numa massa.

Fica sabendo, cachaça,

Sou fidalgo de boa lei

Não é qualquer que me prova

Eu sou bebida de rei.

Você é feita de pau

Eu de truta de caroço;

Você é bebida de negro,

Eu sou bebida de moço.

Cachaça, você é gente

No batuque e na folia;

Eu nas bodas, nos banquetes

Mostro minha fidalguia.

Cachaça

Sou a cachaça e tu água

És mesmo bebida à-toa

Andas no lodo do chão

Eu no amude da patroa.

Tua és uma porcaria

Que não dá nenhum prazer

Corres suja pelo chão

Pra qualquer bicho beber.

Saio branca do alambique

Batizada jeribita,

Vou direto pra cabeça

De toda mulher bonita.

Bichos não me bebem nunca

Não é isto novidade

Pois agora sou chamada

O elixir da humanidade.

Até o pobre endividado

Quando tem o seu vintém,

Fica alegre parecendo

Não dever nada a ninguém.

Água

Verdade é D. cachaça

Eu pertenço a toda gente,

Bebe a água qualquer bicho,

Como bem nosso Regente.

Mas, quando o chão fica seco

Fazem-se preces pra eu vir,

E para chover cachaça

Nunca vi ninguém pedir.

E ai de ti, D. cachaça,

Se não caio pelo chão,

Era uma vez o alambique

Que perdia a sua ação.

Também nunca ouvi dizer

Aos garantidores da ordem

Que ninguém por beber água

Fizesse alguma desordem.

E tu,senhora cachaça

Com seu cheiro nauseabundo

É a maior responsável

Pelas desgraças do mundo.

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Referências Bibliográficas

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 5ª ed. 1984.

BRASIL, A. Americano do. Cancioneiro de Trovas do Brasil Central. São Paulo, Monteiro Lobato, 1925.

LIMA, Clóvis. O Alambique. Rio de Janeiro: José Olympio Editor, 1933.

MAIOR, Mário Souto. Dicionário Folclórico da Cachaça. Recife: Ed. Massangana, 2ª ed., 1980.

SILVA, José Calasans Brandão da. Cachaça, Moça branca. Salvador, Museu da Bahia, nº13, 1951.

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[*] É jornalista, professor universitário e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com