GILFRANCISCO [*]

No final da Barroquinha ficava um dos muitos barracões dos Bondes, onde eram recolhidos depois de terminados os horários. Eram barracões espaçosos, locais onde os veículos eram revistos, asseados e lubrificados. Caso fosse constatada alguma unidade defeituosa, seguia para os locais apropriados para serem reparados. Eu adorava perambular por entre os bondes estacionados, ficava treinando – pongava e despongava.

Ao retornar da escola da professora Maria Augusta, localizada na Rua do Gravatá, passava parte da tarde mexendo nos instrumentos e alegorias ou conversando com Nelson Maleiro criador do bloco Carnavalesco Cavalheiros de Bagdá na década de 50, cinco anos depois houve um racha e os dissidentes formaram o clube Mercadores de Bagdá. Participei de vários ensaios carnavalescos, mas meu pai nunca permitiu que eu saísse no bloco, cujas fantasias e temas eram relacionados com o Oriente Médio. Além de Nelson Maleiro, eram diretores do bloco Cavalheiros de Bagdá Eduardo Calçola, Vavá Madeira, Armando Sá (autor da macha Colombina, hino oficial do Carnaval da Bahia).

Nelson Maleiro, criador do bloco carnavalesco Cavalheiros de Bagdá Foto: Reprodução

Vizinho à residência de Nelson, ficava na parte térrea ao lado da Bomboniere Garoto e no primeiro andar a Escola Urânia de Datilografia, propriedade do professor Waldir que era muito respeitado, educador e compreensível com os alunos, talvez por isso acumulasse um número alto de inadimplentes. Foi nessa escola que comecei a aprender a datilografar, apesar de não estar matriculado, continuei as aulas anos depois na Associação dos Comerciários da Bahia, levado pela contadora Regina Munir, irmã de Nego D’água, Zezinho. Quando ingressei na UFBA conclui o Curso-Datilografia e Máquinas de Escritório, na Escola de Administração – Instituto do Serviço Público – ISP, setor de Extensão, dirigida por Jorge Haje, hoje corregedor federal.

Bloco Carnavalesco Cavalheiros de Bagdá Os Mercadores de Bagdá (1959), passando em frente do Casarão 77 Foto: Pierre Verger / Fundação Pierre Verger

Aos sete anos já estava estudando na Escola Severino Vieira (unidade pública do curso primário), localizada na Rua Felipe Camarão, num velho casarão de dois pisos no Bairro da Saúde, próximo ao Bairro de Nazaré, núcleo de imigrantes anarquistas. Foi ai que nasceu Carlos Marighella. Sempre fui sozinho para a escola. Seguia pela Fonte do Gravatá até alcançar a igreja de Santana, depois pegava um atalho pelos fundos do Convento do Desterro até chagar a Rua Felipe Camarão onde estava localizada a escola, em frente à Padaria Primor (fábrica de macarrão), na época dirigida pela professora Maria de Lourdes Dias Fontoura, juracyzista (1959-1963). O Capitão Juracy Montenegro Magalhães havia sido um dos interventores Federais da Revolução de 1930, na época tenente (1931-1935) e Governador Constituinte de 1935.

Lembro-me da boa administração do prefeito Hélio Ferreira Machado (1916-1975), estive em casa dele com meu pai, casa grande situada no Largo de Nazaré, ao lado da casa de Dona Canô, mãe de Caetano, Bethânia, Mabel, Nicinha, Irene, Clara, Roberto e Rodrigo. Mas foi na gestão do santamarense Heitor Dias Pereira (1912-2000) que anunciou o fim dos bondes e iniciada as obras asfáltica em todo o trecho da Barroquinha, tiveram que tirar todos os dormentes e trilhos. Foi uma maravilha. Ficamos muitos meses com a via interditada e a garotada desbravadora a brincar de carrinho de rolimã, patinetes, bicicleta, jogo de bola de meia e esconde-esconde pelos becos que ligavam a Rua do Tesouro. Tudo isso sem ser incomodado por carros, ônibus ou bondes. Às vezes passava um carroceiro. Era a morte dos bondes.

Mesmo após nos mudarmos para o Bairro da Caixa D’Água, eu continuava indo sozinho para a escola. Tomava a locação ou o ônibus no Largo do Tamarindeiro, mais conhecido como Pau Miúdo, tendo como referência O Hospital Santa Terezinha, especialista na cura da tuberculose. Na época os lotações e ônibus eram dirigidos pelos próprios donos, não tinham catraca e sim um contador manual que registrava as subidas dos passageiros, criança não pagava. Houve um período em que os estudantes pagavam meia passagem a partir de certa idade. Somente tempos depois chegaram às empresas Ivani, Jeovanza e Transportes Urbanos e teve início a guerra pela concorrência das linhas. Eu saltava no ponto da Ladeira Ramos de Queiroz, andava por mais 30 metros até a casa da família Pitombo (um dos sócios do Cine Teatro Jandaia) para seguir com os colegas Eli e Eliana. O sobrado era de esquina, com acesso à Rua das Flores que levava até o primeiro trecho do caminho (ladeira) Ramos de Queiroz. A residência tomava todo o 1º andar e tinha entrada lateral.

Garagem dos Bondes (SMTS), localizada no final da Barroquinha, em Salvador Foto: Reprodução

Esse ilustre baiano anda meio esquecido. João Ramos de Queiroz (1848-1892), formado pela Escola Central, era professor da Escola Politécnica da Bahia. Engenheiro de grande visão, concebeu e idealizou os seus bondes conhecidos também como “Charriot” (Plano Inclinado Gonçalves), localizado no Centro Histórico de Salvador, inaugurado em 1889, sendo reformado em agosto de 1931, quando a rampa que era de 32° 45, foi aumentada para 35° 45: a fim de permitir a suspensão das escadarias de acesso aos pavimentos superior e inferior. Temos outros PI: Plano Inclinado do Pilar, localizado no Bairro do Pilar, ligando a Cidade Baixa, ao Bairro de Santo Antônio Além do Carmo, na Cidade Alta. Construído em 1897, onde já existia o Guindaste dos Carmelitas. O terceiro, Plano Inclinado Liberdade/Calçada, inaugurado em 13 de março de 1931, no local onde antes havia uma ladeira chamada “Ladeira do Inferno”.

Mas voltando à época de estudante do curso primário, eu chegava cedo a residência de Elias, antes das 7 horas, acompanhava-os no reforçado café matinal, muito diferente do que eu havia tomado em casa. Depois subíamos a Ladeira do Alvo lentamente, porque Eli usava aparelho ortopédico em uma das pernas para correção de uma paralisia infantil e se apoiava em mim. Enquanto subíamos pela lateral do Cine Teatro Jandaia, passávamos na porta da casa de Vadinho, primeiro marido de D. Flor, personagem de Jorge Amado e na entrada da casa do Pai de Santo Catão, casado com dona Helena. Anos depois fiz amizade com seu filho na época estudante de Medicina, Dr. Carlos Augusto Catão. Vadinho era muito escroto, moleque, brincalhão, divertido e sensual, apreciador de mulheres, bebidas e jogatina, que nos carnavais sempre se fantasiava de “baiana” e quando avistava um grupo de moças da sociedade, suspendia a saia, aparecendo uma grande raiz de aipim, levantada por elástico. Durante as filmagens de Dona Flor e seus dois maridos, dirigido por Bruno Barreto, assisti as tomadas que foram realizadas no Largo da Palma, em frente a Faculdade de Letras da Universidade Católica do Salvador – Ucsal.

Enquanto subíamos a ladeira do Alvo os funcionários varriam o interior do cinema, higienizava as poltronas, limpava as vidraças da porta de emergência. Aproveitando as portas laterais abertas eu entrava para verificar entre as poltronas a possibilidade de encontrar alguns objetos esquecido por alguém no dia anterior. Achei algumas alianças de baleiro, algumas moedas, nada mais.

Às vezes quando saía da escola, às 12 horas, e tinha algum trocado, passava no Armazém Novo Continental de propriedade do espanhol José Ogando, no Largo da Saúde para um lanche rápido ou descia a Ladeira da Saúde para pegar o ônibus, mas sempre era tentado a entrar na Pastelaria Unior, ao lado da ladeira do Ferrão, subida do Maciel, para saborear um pastel quentinho. Houve um período em que o casarão da Escola Severino Vieira ficou avariado com as constantes chuvas que desabaram em Salvador na época. Por esse motivo a Secretaria de Educação resolveu transferir os alunos provisoriamente para a Escola Nossa Senhora da Saúde que funcionava anexo à igreja, mantinha o curso infantil. A escolha dessa escola foi inadequada, os responsáveis não tiveram sequer o cuidado de verificar o espaço físico das novas instalações, bastaria uma simples observação para notar que as carteiras não estavam de acordo com o tamanho dos alunos do curso primário. Depois de providenciarem as carteiras corretamente, permanecemos por alguns meses.

Como as reformas levariam muito tempo, parte do alunado foi transferida para o Colégio Salesiano, localizado na Praça Almeida Couto, Nazaré. Adorei a mudança. Uma escola moderna, instituição privada frequentada por uma classe privilegiada, salas amplas e arejadas, carteiras individuais com tampa para guardar a pasta e escapar dos ratos de merendas, campo de futebol, quadras com cobertura, um mini zoológico e um cinema aberto ao público. Para ter direito a receber o ingresso que dava acesso as exibições era exigida pelos padres a frequência dos alunos as missas aos domingos. Nunca gostei de igreja nem santos, detesto essa gente, sempre arranjava um jeito de driblar os padres para não assistir as missas. Apresentava-me, circulava entre os alunos para ser visto por todos, em seguida saía mansamente para brincar na praça. Quando percebia que os fiéis estavam saindo da igreja, eu retornava e entrava na fila para receber o ingresso.

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[*] É jornalista e escritor.  E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com