GILFRANCISCO [*]

A ausência de dados não permite reconstruir com segurança uma biografia de Aristófanes, podendo-se oferecer os anos de 450 e 380 a. C. como os limites prováveis da sua existência. Cidadão adotivo ou filho legítimo de Atenas foi testemunha de uma das mais críticas fases da cidade e do mundo grego em geral, a exemplo da Guerra do Peloponeso, que se reflete diretamente em bom número das suas comédias.

Entre as forças dissolventes ativas em Atenas no tempo de Aristófanes estão a Guerra do Peleponeso e a revisão crítica dos sofistas. Aristófanes, saudoso da época áurea de Atenas, ataca ambas, convertendo a comédia em instrumento de luta. Defende as tradições em oposição às novas ideias. Desde as reformas de Pisístrato, a força de Atenas residia no comércio internacional, sendo a guerra desastrosa para operações comerciais, Aristófanes declara-se adepto da paz.

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Comédia

Como a tragédia, a comédia se vincula ao culto de Dionísio, mas não se definiu tão nitidamente nem tão cedo – talvez porque se apresentasse menos como representação da vida que como sua manifestação natural em seu aspecto mais espontâneo e popular: o concurso de comédias, em Atenas, data somente de 460 a. C., ou seja, três quartos do século após a instituição do concurso de tragédia.

No entanto, foi na Ática, após um surgimento dórico (no Peloponeso, em Mégara), que o gênero se desenvolveu através de três períodos: a comédia antiga, sátira violenta da atualidade, ilustrada por Aristófanes; a comédia média, que tendeu a suprimir o elemento lírico, tratando de temas de costumes ou inspirando-se na mitologia (é a última maneira de Aristófanes); a comédia nova, da época helenística, que criava tipos: o filho de família, o escravo astucioso, a cortesã (Menandro).

Essa herança constitui a base do teatro cômico latino (a comédia palliata, representado por atores que usavam a vestimenta grega, o pallium), com Plauto e Terêncio. A comédia consagrada à descrição dos costumes romanos (comoedia togata, representada por toga) jamais alcançou o sucesso da farsa, a atelna, suplantada por sua vez, desde a época de Cícero, pelo mimo, cujo prestígio perdurou na época imperial, que viu o fracasso da comédia burguesa (comoedia trabeata).

Originada da parte mais alegre do ditirambo – o cântico improvisado das primitivas processões dionisíacas – a comédia encerrava os festivais atenienses mostrando aos espectadores que o teatro é uma grande brincadeira. Os gregos associavam a comédia a personagens ridículas representadas como pessoas absurdas e ofensivas. Apresentada como uma forma burlesca da tragédia que a precedera, a comédia nem por isso deixava de dirigir críticas mordazes às instituições e às pessoas notáveis. Os próprios deuses eram objetos de sua contundente jocosidade.

Quando entraram em contato com os gregos, os romanos ficaram particularmente encantados com as divertidas possibilidades que os comediógrafos ofereciam para distrair patrícios e plebeus. Mas antes de adotar o gênero, tiveram o cuidado de apagar dele qualquer traço político ou religioso, encampando o que as comédias tinham de mais secular e lúdico.

Durante todo o império de expansão política de Roma e na fase em que o Império mostrava sinais de decadência, a comédia popular manteve um público certo. E nem mesmo a adoção do Cristianismo – impondo seus valores a um mundo que se fragmentava, foi suficiente para mudar de imediato os costumes. O povo continuava vibrando com a licenciosidade do mimo e da pantomima, forma dramática sem palavra, baseada na imitação mais ou menos estilizada.

Lisístrata

Foto: Reprodução Livro A Revolução das Mulheres A Greve do Sexo (Lisístrata) Trdução de Mário da Gama Cury

Cansadas de uma guerra que já durava 20 anos, as mulheres de Atenas, de Esparta, da Beócia e de Corinto (cidades gregas mais duramente atingidas pela luta), chefiadas pela ateniense Lisístrata, decidiram pôr fim às hostilidades usando de uma tática pouco ortodoxa: uma greve do sexo, com o fim de constragerem os homens a firmarem a paz, negando-lhes os prazeres do leito. As mulheres comprometem-se sob juramento no pacto de abstinência. As atenienses refugiam-se na Acrópole, protegidas por uma barricada. Os homens ameaçam-nas, sem resultado, com fogo. Repelidos são também os que avançam armados.

Lisístrata argumenta que as mulheres cansaram de gerar filhos para perdê-los na guerra, aflitos também com a longa ausência dos maridos. Não é fácil a Lisístrata manter as mulheres na reclusão. Inventam mil pretextos para se encontrarem com os homens, continuamente assediados por eles. Os maridos não resistem à greve e concluíram um tratado de paz, depois de uma série de peripécias de grande efeito cômico apesar da ousadia dos detalhes.

A peça de Aristófanes foi uma tentativa real de acabar com uma guerra de verdade. Na época em que foi representada a peça (411 a.C.), Atenas atravessava um período dificílimo de sua história, ainda não refeita do desastre da expedição malograda a Sicilia (413 a.C.). Abandonados por seus aliados, os atenienses tinham a 24 quilômetros da cidade as tropas espartanas. Essa luta fratricida enfraquecia a Grécia toda, pondo-a a mercê dos bárbaros.

Inspirado por um profundo sentimento de patriotismo e humanidade Aristófanes se fez porta-voz de todas as esposas e mães gregas e, por intermédio de Lisístrata, lançou um veemente apelo em favor da paz, não somente aos atenienses, mas a todos os gregos. Infelizmente a mensagem de Aristófanes não foi ouvida e as guerras continuaram mutilando o mundo. Além da esfuziante comicidade, do ritmo travesso e dinâmico, do diálogo vivíssimo, da linguagem lépida e da picardia das graças, dos quiproquós, das situações imprevistas e efeitos cênicos, a peça A Greve do Sexo, de Aristófanes, documenta o clima democrático da Atenas ao tempo das Guerras do Peloponeso, ocasião em que várias de suas peças foram representadas.

Embora a Lisístrata (A Greve do Sexo) seja a mais silenciosa das comédias de Aristófanes, pela elevação dos sentimentos que animam a heroína, pela nobreza das intenções do comediógrafo e por suas próprias qualidades como teatro a peça bem merece a fama que até hoje desfruta em todas as plateias civilizadas. Vinte e quatro séculos de guerra tornam-na cada vez mais atual e não diminuiu em nada o brilho da comédia e mesmo a espiritualidade que mal se dissimula por trás da crueza do argumento.

Obra  

Foto: Reprodução do livro Teatro Grego Eurípedes – Aristófanes

São poucos os documentos que possuímos a respeito de Aristófanes e dentre eles apenas um ou outro merece inteira confiança. Tomando-se por base o texto de As nuvens, o poeta deve ter nascido em 445 a.C e morreu entre 375/372, com setenta e dois anos, mais ou menos. Era filho de Fillipos, de tribo pandião, proprietário na ilha de Egina, portanto um cidadão ateniense. Com segurança pode-se dizer que Aristófanes teve dois filhos: Araso, também poeta de Talia e que em 387 foi o vencedor de um concurso com uma peça do pai, intitulada Cócalo, e Fillipos. Um terceiro existiu, chamava-se Hicostrato, seguido Apolodoso, ou Filetero, seguido Dicearco.

Quanto às obras do poeta, a antiguidade nos fala em 44 comédias, considerando-se, desde então, quatro delas como apócrifas: A Poesia. O Naufrago; As Ilhas e Niobo. Chegaram-nos somente 11: Os Acarnenses (425), denunciou os demagogos; Os Cavaleiros (424), os sofistas; As Nuvens (423) as utopias políticas; As Vespas (425); A Paz (421) e Lisístrata (411), a mania de julgar dos atenienses As Aves (414), as ambições guerreiras; Tesmofórias (411); As Rãs (405); Pluto (388), marca a passagem do teatro “engajado” para a alegoria de caráter moralizador. As comédias mais importantes, cujos títulos ou fragmentos conhecemos: Os Convivos (427); Os Babilônios (426); Prelúdio (422); Anfiarau (414); Cócalo (387).

A Assembléia das Mulheres (392) é uma sátira às teorias de certos filósofos da época, principalmente os sofistas, que mais tarde se cristalizaram na “República” de Platão”. Lideradas pela eloquente Valentina que recorda a figura de Lisístrata por sua intrepidez às mulheres de Atenas decidem tomar conta do poder, cansadas da incapacidade dos homens do governo. Impõem sorrateiramente nova constituição, com base na comunidade do pauperismo. A comédia tem ideias coletivas de uma espécie de comunismo primitivo.

Inspiradas no princípio de que há similaridade entre a direção da coisa pública e do lar, as mulheres governarão a cidade com a mesma eficiência com que cuidam de suas casas, para satisfação de todos. Não haverá mais ricos de um lado e pobres de outro. É a partir das ideias de Platão, em sua República, que a peça zomba com muita desfaçatez. Apesar de ter praticado um teatro político, Aristófanes era homem de centro, um conservador de ideias amplas, que estimava as grandezas passadas e que “por bom senso, preferia a Atenas de sua juventude às coisas que agora ofereciam os generais e filósofos”.

Aristófanes, o maior comediógrafo grego, soube genialmente exagerá-los e provocando gargalhadas, firmou-se perante o público qual um grande em sua arte. Com esse tipo de sátira genial e exagerada, pondo em foco os defeitos dos mais importantes dos seus contemporâneos, abriu os olhos dos atenienses para os homens que os governavam.

Por temperamento e formação, combateu incansavelmente os impostos os fanfarrões, os jactanciosos e, a todos quanto se criam no direito de interferir na vida alheia. Por isso é impossível descobrir em suas comédias um sistema filosófico, moral, político ou mesmo religioso. Em seus textos salta aos olhos o que ele ataca, não precisamente o que ele defende. Não critica os sistemas, mas os abusos que certos homens introduziram nesses sistemas.

Eurípedes é o objeto do humor impiedoso de As Rãs e de As Festas de Ceres e Proserpina. Nesta última obra, revoltam-se as mulheres contra a misógina do autor trágico e a oportunidade são as festas religiosas de Ceres, por ele aproveitado para espionar as suas inimigas. Tenta primeiro, induzir o seu confrade Agatão a fazê-lo, disfarçada de mulher. Não conseguindo, é ao seu parente Mnsíloco que despacha e este cai prisioneiro das mulheres.

Em críticas e gozações, Aristófanes foi mestre: ridicularizou altas personalidades – filósofos, poetas e políticos; combateu candentemente a guerra e opôs-se ao militarismo; satirizou militares, dos oficiais emproados aos soldados parlapatões; e desmascarou demagogos, falsos defensores do povo. Sócrates e Eurípedes padeceram de suas contundentes investidas.

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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com