José Vieira da Cruz

É historiador, professor da UFS e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE)

Nas semanas subsequentes às eleições, algumas pessoas têm estado em frente aos quartéis, bloqueando rodovias federais e realizando protestos contestando a computação de votos das urnas eletrônicas. Na falta de bons argumentos, os manifestantes têm clamado por “intervenção militar”, “intervenção federal” e por “salvar os valores de uma pátria conservadora”. Os atos, se assim podemos chamá-los, misturam de modo contraditório motivações, contendas e supostas justificativas para uma virada de mesa frente ao resultado da eleição para o cargo presidencial – ações controversas, antidemocráticas e sem base legal, ironicamente possíveis, em razão de o país há 33 anos está organizado constitucionalmente sob a forma de uma democracia política.

Essa contradição – reservados os ajustes, alternâncias e aprendizados próprios e previstos em uma democracia –, tem provocado polarizações, tensões e antipatias preocupantes – as quais, a nosso juízo, não devem de todo ser ignoradas. É preciso, mesmo que sob o risco de expor limites, perspectivas e desafios diferentes para o país, admitir que vivemos em uma sociedade suscetível a ilusões de lideranças político-partidárias populistas – em semelhança a superficialidade de celebridades passageiras, e associadas a mitos salvadores, redentores e imediatistas.

Muitos devem ter na lembrança ou já estudaram nos livros de História do Brasil que, não faz muito tempo, vivemos duas experiências autoritárias: a ditadura do Estado Novo (1937-1945) e a ditadura civil-militar (1964-1985). Ambas deixaram como tristes memórias: cicatrizes, traumas e reminiscências prejudiciais à construção de experiências republicanas e democráticas entre nós brasileiro(a)s, independentemente, das regiões, raças, gêneros e classes sociais. Nesse sentido, a evocação desses períodos por parte dos já referidos manifestantes – quase sempre confusas, descontextualizadas e indevidas do passado – tem potencializado grandes equívocos em relação às concepções de democracia, ditadura e de convívio social, tanto da história recente quanto do atual presente histórico que compartilhamos.

Emergem dessas apropriações distorcidas saudosismos, falsos elogios e incentivos a um ativismo “civil”, “militar” e, por vezes, “civil-militar” em favor de rupturas políticas e institucionais. É visível, portanto, toda uma tentativa de forjar a ideia de um passado mal fundamentado, desorganizado e deturpado de “salvaguarda nacional” para um presente-futuro – ainda mais, desvirtuado dos efetivos preceitos, experiências e ensinamentos democráticos, qual sejam: respeito, tolerância, justiça social, soberania nacional e solidariedade.

Não é, como todos sabem, tarefa fácil estabelecer um contraponto com os que interpretam uma realidade espelhada em máculas associadas a golpes, ditaduras e seus desdobramentos: cassações, sequestros, prisões, torturas, e marcadas por intervenções no Judiciário, executivo e parlamento – nas suas respectivas esferas federal, estaduais e municipais. Um passado de arbitrariedades, censuras e repressões a sindicatos, entidades estudantis, partidos políticos, imprensa, igrejas, entidades de classe – como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) –, entre outras.

No atual presente histórico, lembrar desses acontecimentos e de suas consequências, mas que um alerta, evidencia os riscos de todo(a)s, sem distinção se de “esquerda” ou de “direita”, estarmos enfrentando, por conta dos desdobramentos indevidos, indesejados e inconsequentes, provocados pela valorização de inflexões políticas de outrora e, de especulações, presentes e futuras.

O desrespeito às regras do jogo, seja na política, nas competições esportivas ou no fazer-se cotidiano, costuma gerar instabilidade, desorganização e aprofundamento sistêmico de crises. Não há soluções mágicas, receitas prontas e, nem tão pouco, escolhas perfeitas. As urnas expressam apenas a vontade soberana da sociedade – nos resta aprender com seus resultados e, a partir deles, estabelecer critérios de escolha ainda mais críticos, seletivos, fundamentados e balizados a cada consulta eleitoral.

Dessa forma, independentemente de ser golpe, ditadura ou movimento antidemocrático, não importa se sua natureza é “civil”, “militar” ou “civil-militar”, o resultado é sempre interrupções, retrocessos e descontinuidades do aprendizado democrático dos povos – em seu contínuo exercício pedagógico, político, civilizacional e humanístico. Os movimentos antidemocráticos, inicialmente, inspiram certezas pragmáticas, ilusões transitórias e místicas dogmáticas, mas logo se revelam incertos, confusos e temerários quanto aos seus objetivos, metas, finalidades, sustentabilidade e, sobretudo, quanto ao seu término – ocasionando consequências arriscadas, impensadas e desastrosas para os seus “(des)avisado(a)s” partícipes.

No caso do golpe civil-militar de 1964, a exemplo, as manifestações contaram com o apoio de setores conservadores – de parte de igrejas, imprensa, comércio, indústria, agropecuária, instituições classistas e partidos políticos de direita –, inclusive com mobilizações de rua e junto aos meios de comunicação mais expressivos da época: rádios, jornais e revistas. Mas, como é sabido, com o passar do tempo o processo antidemocrático foi radicalizado – inclusive contra esses mesmos atores da sociedade civil que os haviam apoiado.

O Ato Institucional n° 5, o famoso AI-5, decretado no apagar das luzes do dia 13 de dezembro de 1968, é um exemplo concreto desse enrijecimento. O mencionado Ato, no curso de seus 12 artigos, decretou: o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, legislando em seu lugar; a intervenção nos estados e municípios; a suspensão, por 10 anos, dos direitos políticos dos cidadãos que não apoiavam a nova ordem imposta; a cassação dos mandatos políticos nas esferas federais, estaduais e municipais; a restrição de inúmeros direitos públicos ou privados; a suspensão do habeas corpus em casos de crimes políticos e contra a segurança nacional, entre outros. Em outras palavras, e em bom português, nem todo(a)s aquele(a)s que iniciam e apoiam um golpe serão os mesmos que se beneficiarão dele.

A respeito disso, é interessante observar como esse assunto é abordado pelos estudiosos do tema. No caso do golpe de 1964, em razão do ativismo militar e do fático apoio dos setores conservadores, sobretudo os de postura liberal, estadunidenses e associados ao capital, esse processo tem sido caracterizado, com certa frequência e consenso, como um “golpe civil-militar” – ou seja, uma inflexão política deflagrada pelos militares e apoiada por segmentos conservadores da sociedade.

Mas, por outro lado, o seu desdobramento em uma ditadura, com um alcance de 21 anos de duração, considerando apenas o período de 1964-1985, não goza da mesma caracterização conceitual nem é consenso. Nesse sentido, ainda que não seja ponto pacífico entre (os)as expertises, a designação “ditadura militar” é largamente reconhecida, aceita e empregada. Todavia, a exclusão do termo “civil” omite que muitos grupos sociais privilegiados, inclusive parcelas da alta tecnoburocracia, empresários e alguns segmentos religiosos, tenham se beneficiado larga, explícita e publicamente, deixando o ônus da responsabilidade, como algo exclusivo, indesejado e associado, apenas aos partícipes da caserna.

Esse aprendizado mostra-se duplo e explícito, tanto para os que integram atualmente as forças armadas, quanto para os que ignoram a tradição dos setores conservadores de participar, apoiar e financiar movimentos golpistas, ditaduras e antidemocráticos. Atualmente, o fato novo talvez seja as despudoradas faces ultradireitistas de alguns participantes desses atos/protestos/movimentos; o uso massivo dos novos meios de comunicação, sobretudo, as redes sociais conectadas instantaneamente, de forma on-line e a partir de celulares e de outros dispositivos eletrônicos; e, cada vez mais, a confusa apropriação do passado e da realidade social associados a desvalorização das políticas públicas, saúde, ciência, educação, ensino e de seus profissionais. É possível perceber isso, de forma clara, quando observamos que a sociedade valoriza mais a opinião de um influenciador digital, independente da formação, do que o pensamento de um estudioso do assunto, instituição especializada ou livro de um(a) expertise.

Enfim, é um aprendizado pedagógico difícil, mas politicamente necessário. É preciso, tanto dentro como fora da vitoriosa Frente Ampla Democrática, cultivar a prudência histórica, habilidade política, bom senso no convívio social e potencializar o diálogo e as novas estratégias de comunicação para lidar com as tensões, riscos de golpes, viradas de mesa e usurpações de toda sorte.

Os alertas estão postos, a decisão depende da postura de cada um e, sobretudo, do conjunto da sociedade. Sejamos sábios(as) para tomar as decisões mais acertadas em favor da consolidação da atual experiência republicana, democrática e de soberania nacional-popular para nossa sociedade! Oxalá que assim nos guie! Enquanto isso, a sociedade, a democracia e o passado/futuro seguem em disputa no palco de nosso presente histórico.

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Foto: Arquivo Pessoal