GILFRANCISCO [*]
Contando com as iniciativas da Academia dos Esquecidos (1722) e dos Renascidos (1759) com toda uma elite culta educada em Coimbra, Salvador após o decreto de abertura dos portos, sofrera ainda mais as influências culturais ocasionadas, sobretudo pela vinda de considerável número de comerciantes estrangeiros, ingleses, principalmente, que traziam novos hábitos: jornais e revistas eram introduzidos, possibilitando ainda mais o acesso às novas idéias. Com a posse no governo da Bahia em 1810, do Conde dos Arcos (1771-1828), difunde-se ainda mais a cultura, e várias escolas são criadas por toda a província (de primeiras letras, agricultura, química, música, farmácia e comércio), além do projeto de fundação da real Sociedade Bahiense de Letras, que se propunha entre outros objetivos, montar um laboratório astronômico, um laboratório químico, um jornal científico e uma biblioteca.
Desde o século XVIII a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert marcava a diferença fundamental entre gazette e journal, tendo o primeiro gênero um caráter claramente noticioso (publicação política, doutrinária), possuindo o segundo características mais literárias e científicas (relatam acontecimentos dia a dia, diário). Voltaire (1694-1778), autor do artigo sobre as gazetas, “definidas como relações dos negócios públicos”, além de fazer o histórico do seu aparecimento e desenvolvimento, desde o século XVII em Veneza até meados do XVIII. O próprio Prospecto da Gazeta da Bahia, folheto raríssimo (possuo uma cópia), talvez o único existente, pertencera ao saudoso pesquisador baiano Renato Berbert de Castro (1924-1999), ajuda a reconstruir a noção de gazeta no Brasil do início do século XIX, e o objetivo daquela folha periódica.
Neste contexto está o empreendimento de Manuel Antônio da Silva Serva (1761-1819), fundador da primeira tipografia da Bahia, a primeira empresa particular desse gênero no Brasil. Em 1809 Silva Serva encontrava-se na Europa para adquirir material tipográfico e depois de tudo acertado, dirige um requerimento a 18 de dezembro do ano seguinte ao Conde dos Arcos, pedindo autorização para abrir uma tipografia, primeiro passo para a futura publicação da gazeta. O referido requerimento fora enviado pelo governador ao Conde de Aguiar, ministro dos Negócios do Reino, que através de uma Carta régia de 5 de fevereiro de 1811, comunicava ao governador da Bahia, a autorização para o estabelecimento da tipografia. Em 13 de maio, dia do aniversário do Príncipe Regente, inaugurava a sua atividade com a publicação de Oração Gratulatória…, um Plano para o Estabelecimento de uma Biblioteca Pública…, e um Prospecto da Gazeta, sendo de consenso geral atribuir ao último a prioridade de edição. Esta gazeta denominada de Idade d’Ouro do Brasil, segundo jornal do país, circulando de 14 de maio de 1811 a 24 de junho de 1823, permaneceu como sendo a única gazeta baiana até que o movimento constitucional de 1821, dinamizou a vida política e trouxe matéria para mais de um periódico. Até a Independência, surgiram no reino americano outras tipografias como a de Ricardo Rodrigues Caetano no Recife (1815) que só funcionou dois anos mais tarde durante a revolução, em 1821 no Maranhão instalada pelo governador Bernardo da Silveira, a de Daniel Garção de Melo em Belém do Pará, 1821 e duas em Vila Rica, a Patrícia e a Provincial.
Esta gazeta constitui importante documentação para os estudiosos do período que antecede a Independência do Brasil, além da contribuição máxima para o estudo da sociedade baiana do início do século XIX, abrangendo as atividades econômicas, a vida social, a cultura e a política. Idade d’Ouro do Brasil circulava duas vezes por semana, as terça e sextas feiras, imprimiam números extraordinários (suplementos) quando a matéria era muita e de formato in quatro em quatro páginas.
Tendo como censor provisório o próprio Conde dos Arcos, até que tivesse um perfeito conhecimento da gazeta e elaborou uma série de regras que deveriam comprometer o redator, bacharel Diogo Soares da Silva de Bivar que se dedicou sempre a tarefas intelectuais e fundou a nossa mais antiga revista literária em 1812, o Almanaque para a Cidade da Bahia, primeira obra no gênero aparecida no país. E afirmava que o redator da gazeta era Gonçalves Vicente Portela, professor de Gramática Latina, já em 1816 conforme informação do cônsul inglês na província, era o padre Inácio José Mace, professor de filosofia e Pregador Régio.
Segundo orientação do Conde, ou seja, a defesa do governo português, identificando a idade de ouro brasileira com o período joanino: “As notícias políticas sempre de maneira mais singela anunciando simplesmente os fatos sem interpor quaisquer reflexões que tendessem direta ou indiretamente a de qualquer inflexão à opinião pública”
O proprietário da gazeta, lamentava-se frequentemente e por várias vezes pensou em fecha-la, pois tinha menos de duzentos assinantes, inclusive no distrito de Cachoeira que era a região mais opulenta e desenvolvida, e a subscrição podia ser feita por um ano 8$000; seis meses 4$000 e três meses 2$000. Esta quantia deveria ser paga antecipadamente, mas são constantes os avisos aos retardatários que se esqueciam de pagar. As vendas avulsas eram de $060 réis e traziam a gazeta por divisa os versos de Sá e Miranda:
Falai em tudo verdade
Aquém em tudo as deveis.
A gazeta tinha oito postos de vendas, para uma escassa centena de leitores, numa população em torno de 18 mil habitantes.
O redator tomava conhecimento das notícias que difundia, através dos periódicos estrangeiros, sua principal fonte de informação, que chegava a Bahia para a Livraria Pública, sobretudo os ingleses, porque havia desconfiança em relação aos periódicos franceses, durante todo o período napoleônico: Courie, Morning Chronicle, The Times, The Weekly Messenger, Repertory os Arts, And Manufactures, The New Annual Register, Ambigu e alguns publicados em Londres, mas redigidos em Português, como o Correio Brasiliense e o Investigador Português, apesar desses chegarem à Biblioteca Pública com quatro ou cinco meses de atraso, o que se tornava inconveniente.
Quanto às notícias locais, quer do Brasil ou da Capitania, a fonte era os papéis públicos, editais emanados da Corte referentes a todas as Capitanias ou do Senado da Câmara local, ajudando assim a divulgar medidas que a população tinha interesse em conhecer. Para as notícias locais de caráter não-oficial o redator da gazeta contava fundamentalmente com a colaboração dos leitores, ou relatava eventos que ele mesmo pudera observar na cidade.
Em fevereiro de 1815 Manuel Serva consegue finalmente um empréstimo do Cofre da Junta da Fazenda da Capitania da Bahia, para aumentar a oficina tipográfica e anunciou ao público leitor, que providências seriam tomadas para que a referida gazeta pudesse tornar-se mais interessante. Uma vez obtido o financiamento, viaja para a Europa, trazendo consigo o impressor Manuel José Porfírio, mesmo antes da chegada do novo equipamento. Silva Serva preocupado na preparação de mão de obra qualificada, coloca anúncio na gazeta, exigindo meninos entre 12 e 15 anos, que soubessem perfeitamente ler, escrever e contar, desembaraçados e espertos, para o aprendizado da arte tipográfica. Como bom comerciante, dedicou-se a publicar livros desfrutando dos interesses do momento, após sua morte o empreendimento continuou conduzido pela viúva que se associou a José Teixeira de Carvalho.
A partir de 1812, a gazeta baiana tornou-se abertamente partidária do constitucionalismo, passando a atacar o ministro do Rio de Janeiro por ainda não ter aderido às Cortes de Lisboa, passando mais tarde a ser órgão de resistência portuguesa na cidade do Salvador e constantemente acusava as autoridades constituídas pelas suas ineficácias. Sustentando valentemente a preponderância portuguesa nas lutas da Independência, a gazeta Idade d’Ouro do Brasil destacava-se, e com isto provocou em seu agente no Rio, o livreiro Paulo Martin, que indignado resolve suspender as assinaturas vendidas, restituindo as quantias já pagas, enquanto a Bahia “não fizer causa comum com as províncias coligadas do Rio de Janeiro”.
A coleção quase completa da gazeta Idade d’Ouro do Brasil (926) números, encontra-se espalhada em vários acervos: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1811-1812), Biblioteca Nacional de Lisboa (1813-1823), existindo ainda alguns exemplares na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado da Bahia e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Exceto o ano de 1820, quando foi interrompida sua circulação depois da morte do seu proprietário, ocorrido no Rio de Janeiro em agosto de 1819, para retornar em 1821 com novo formato e com nova periodicidade: de bissemanário (publicada às terças e sextas) passa a diária (excetuados os domingos) nos primeiros meses desse ano, para em seguida, voltar a sair duas vezes por semana.
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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
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