GILFRANCISCO [*]

– Cada qual paga a sua promessa como pode                

1. Poesia é uma forma de expressão linguística destinada a evocar sensações, impressões e emoções, por meio da união de sons, ritmos e harmonia,  utilizando uma seleção de vocábulos essencialmente metafórica. Ela diferencia-se da prosa por não se fundamentar tanto nas normas lógicas da língua, mas sim nas imposições dos ritmos, determinado pelo talento do poeta, pelo aspecto sonoro das palavras e pela associação de significados. A arte poética dessas duas poetas, Olga Savary e Stella Leonardos, está alicerada na sólida construção dos versos, pela orquestração dos temas, repletos de sutilezas musicais, imprevista na invenção e numa irrupção clandestina, pelo uso da ironia e do sarcasmo, pela mescla em seus vocabulários, de palavras cultas e coloquialismos.

Vencedora do Prêmio Nacional Arthur de Salles (1987) de Poesia da Academia de Letras da Bahia, Berço Esplêndido, da consagrada Olga Savary, Editora Palavra & Imagem, 2001, 144 páginas, uma grande celebração de amor por sua terra, o Brasil. Trata se de um livro que vem iluminar essa hora crepuscular de nossa literatura, num verdadeiro universo literário. Uma poesia que não contempla apenas a angústia do homem como ser social, mas também a sua radical solidão como ser antropocósmico.

Foto: Reprodução Livro Berço Esplêndido

Olga pertence à categoria dos poetas em incessante mutação. Grande ampliadora do nosso patrimônio verbal. Com suas secretas operações intimas, cuja inquietação movia essas mudanças de atitude estética, temos, assim, uma poesia que se nutre do espanto, centra-se no assombro do homem diante dos enigmas que o universo lhe propõe. Esta é a grande temática universalizante da sua obra poética.

Em sua grande evolução, a poeta mantém sólida unidade poética, pois, as angústias mais sufocantes do homem contemporâneo atravessam a sua poesia como espadas que trespassam corpos indefesos.

Fábio Lucas, crítico e professor de Literatura, dá claro desempenho ao seu intento analítico ao traçar lúcida síntese da evolução literária de Olga Savary: “curioso o percurso de Berço Esplêndido. Além da diversidade etnográfica, Olga Savary acrescenta ao conteúdo do livro sinais de magia e de misticismo” (…) “o livro todo presentefica uma concentração lírica obtida graças a uma vocação incontida, trabalhada por experiente consciência artesanal”.

Paraense-cearense-pernambucana: assim se define geograficamente, Olga Savary. De origem russa, nasceu em Belém do Pará, passou boa parte da infância em Fortaleza e escolheu o Rio de Janeiro para morar. Com participação em mais de 250 livros como escritora (poeta, contista, romancista, crítica, ensaísta, tradutora, jornalista e organizadora de antologias), Olga Savary ocupa lugar de destaque na literatura brasileira. Com mais de 20 livros publicados e traduzidos para vários países: China, Alemanha, Itália, Dinamarca, Japão, Estados Unidos e outros, entre eles Espelho Provisório (1970), Natureza Viva (1982), Magma (1982), Éden Hades (1994), Rudá (1994), O olhar dourado do abismo, uma dezena de prêmios literários recebidos pela coleção de seus títulos. Além de seu trabalho profissional Olga Savary tem presença ativa em várias instituições culturais.

Nesses magros tempos, marcados pela emergência das “gerações sem palavras” é salutar lermos com lúcida justeza, a poesia de Olga Savary.

 2. Segundo o poeta italiano Guiseppe Ungaretti (1888-1970), “poetar é converter a memória em sonhos e provar com alguma luz feliz a estrada do desconhecido”. Assim vamos encontrar a carioca Stella Leonardos, uma poeta nos limites do idioma, cujo clarão de criatividade foi irrompido na década de quarenta. Por várias vezes premiada e homenageada com medalhas e outras distinções a atividade literária e cultural, desenvolvida nessas sete décadas publicou: Rio Cancioneiro (1960), Cancioneiro de Natal (1964), Cantares na antemanhã (1970), Dias Pássaros (1990).

Pelo volume de sua obra (poeta, teatróloga, romancista, contista, ensaísta, tradutora, professora), sua obra – hoje com mais de cento e vinte volumes -, pelo apuro formal, temática variada e, sobretudo, diversidade de gêneros, continua a merecer a distinção da crítica.

Foto: Reprodução Capa do livro Amanhecência

Stella estreia em 1944, aos 21 anos como teatróloga, com Palmares, peça montada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que marca a primeira apresentação do Teatro Experimental do Negro. Sua trajetória, sopro de solidariedade humana, desvinculada de qualquer engajamento partidário ou de credo religioso, a poeta, porém, ao empregá-la, transforma-a em campo de infinitas possibilidades linguísticas.

Saga do Planalto, publicado pela Verano Editora e Comunicação, Prêmio Centenário João Dornas Filho, da Academia Mineira de Letras, 2002, seu mais recente livro, Stella Leonardos vem com mais vigor no escancaramento do sentido para onde se endereçam suas mensagens. Ela se rever e se renova, à procura de uma síntese, que tanto pode ser o individual como o coletivo no sentido de uma consciência artesanal do saber. Sua poesia percorre um campo de cultura e evocação no melhor sentido ceciliana, de restaurar o arcaico, renovando o instante de cada poema. Saga do Planalto, é uma homenagem ao engenheiro Bernardo Sayão e ao presidente Juscelino Kubitschek, que com grande sabedoria, Stella conta à trajetória de dois desbravadores, de dois bandeirantes do século XX ,  que para vencer todos os obstáculos na construção de Brasília, souberam, através de seus ideais, transformar o país  em grande nação. As imagens de ambos ganharam em versos as dimensões de grandeza e profundidade que dignificam as páginas recentes de nossa história.

O escritor Gilberto Mendonça Telles, num longo estudo sobre a poesia de Stella Leonardos, disse que ele “sempre se orientou por um sentido de pesquisa. Pesquisa verbal, enriquecida pelas conquistas do lirismo contemporâneo. Pesquisa nos veios mais profundos da linguagem, num retorno às origens do idioma, às fontes límpidas e sempre vivas dos cancioneiros, de envolta com outra e mais densa viagem aos meandros do próprio espírito, como quem realiza uma sorte de garimpagem ou de penetração em catas ou em reinos ocultos e obscuros somente por ele devassados.” 

Stella busca a felicidade pelo caminho da democracia e do entendimento, com uma poesia movida por três temas fundamentais: paixão, amor e liberdade. Marcada pela contenção verbal, versos essenciais na linha de uma Hilda Hilst (1930-2004). Essa busca pela poesia das coisas mínimas está presente nos versos, mesmo sem ser intencional, ela acresceu o descortino do cotidiano, manejando a dicção de tom alto, nobre e celebratório, herdada pelos mestres modernistas.

Sem dúvida, Olga Savary e Stella Leonardos são as maiores poetas contemporâneas do Brasil. Damas da literatura brasileira, fruto de um estado emotivo e de uma concepção de vida intransferível, ambas souberam preservar a sua estética, harmonizar pensamento e encantação, que se acasalam, acoplam-se. E essa cópula – poesia – transforma-se na própria linguagem encarnada em sua forma mais viva. São poetas modernas, despidas de aura, produzem uma poesia que se afirma como o oficio do imprevisto, do lugar-incomum, da insubordinação. Portanto, são poetas da lucidez estelar, que estão consteladas nas alturas celestes.

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[*] é jornalista e professor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com