GILFRANCISCO: Jornalista, pesquisador e escritor, autor de quatro dezenas de livros publicados nas áreas de história, literatura, memória, biografia, cultura popular e artes plásticas. Membro do Grupo Plena/CNPq/UFS e GPCIR/CNPq/UFS. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
Marcier foi à luz diferente que iluminou meu mundo
Djanira, (1914-1979)
Somente, muito recentemente fui apresentado a obra do pintor romeno naturalizado brasileiro Emeric Marcier (1916-1990), pela professora da rede municipal de Barbacena, Minas Gerais, Luciana Andrea Araújo Murta, pesquisadora da obra do maior pintor sacro radicado no Brasil e autora da monografia “Interlocução entre Direito e Arte através da obra de Emeric Marcier”, 2021. A referida professora esteve dois anos antes na Romênia, onde proferiu a palestra “Emeric Marcier: história de uma paixão”, a convite da Universidade Babes-Bolyai, Centro Cultural Brasileiro “Casa do Brasil” de Cluj-Napoca, Romênia. Luciana Murta encontra-se recolhida em terras mineiras para finalizar um livro sobre Emeric Marcier, além da busca incessante de parceiros para a realização em 2025 da exposição comemorativa dos 35 anos da morte do pintor romeno.
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Peregrino no Velho Mundo
Emeric Racz Marcier nasceu em 21 de novembro de 1916, em Cluj, capital da Transilvânia, na Romênia. Sua peregrinação inicia-se aos vinte anos em Bucareste e viaja de uma cidade para outra, em diferentes países. Em 1936 encontra-se em Milão estudando – na Academia de Belas Artes de Brera, onde após realizar sua graduação, defendeu tese de final de curso sobre Pablo Picasso, artista de quem era admirador incondicional. Tudo isso acontecendo em plena ascensão nazista. Em 1939, encontra-se em Paris, França, onde continua os estudos artísticos, monta um atelier na Cité Falguière e cursa uma cadeira de escultura na Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris. Na capital francesa conviveu com muitos artistas, alguns romenos: Victor Brauner (1903-1966), pintor e escultor, integrante do movimento surrealista; Gellu Naum (1915-2001), poeta, dramaturgo e romancista; e Gherasim Luca (1913-1994), poeta surrealista.
Quando a França entrou na guerra, Emeric Marcier foi residir (1939/1940) em Lisboa Portugal, hospedando-se na casa dos amigos Szenes e Maria Helena Vieira da Silva, com a intenção de seguir para os EUA, destino de muitos judeus naquele momento. Aproveitando sua permanência provisória, trabalha no atelier do surrealista António Da Costa e passa a ilustrar alguns números da Revista Presença – Folha de Arte e Crítica, que foi uma das mais influentes revistas literárias portuguesa do século XX, lançada em Coimbra a 10 de março de 1927, sendo publicados 54 números até a sua extinção em 1940. Com a negativa do visto de entrada para os Estados Unidos da América, resolve partir para o Brasil.
Fuga
A escalada da guerra provoca um êxodo sem precedentes de cidadãos europeus em direção aos Estados Unidos da América e países da América Latina. Fugindo do nazismo, vários intelectuais vindos da Europa fixam residência no Brasil, muitos deles deixando aqui a marca de uma contribuição exemplar, como é o caso de, entre outros: Paulo Rónai, Otto Maria Carpeaux, Ziembinsky, Georges Besnanos, Anatol Rosenfeld, Roberto Garric, Boris Schnaiderman e Carlos F. Ott. Chegaram também artistas plásticos vindo de várias partes da Europa e do Japão: August Zamoiki, Jean Pierre Chabloz, Wilhelm Woeller, Maria Kikoler, Laszlo Meitner, Axel Leskoschek, Tikaski Fukushima, Tadashi Kaminagai, Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva.
Antecedentes
Judeu de origem, converteu-se ao catolicismo já no Brasil, por influência de seus amigos poetas Murilo Mendes (1901-1975) e Jorge de Lima (1893-1953), além do escritor Lúcio Cardoso (1912-1968), autor do livro Crônicas da Casa Assassinada (1959) romance, obra-prima de um dos principais escritores brasileiros, que foi seu padrinho de batismo. Logo nas primeiras páginas de sua autobiografia, publicada no Brasil em 2004, diz Marcier: Deportado para a vida, se declara um humanista, algo anarquista e a sua história confirma que a liberdade e a vocação artística sempre o guiaram.
Em sua chegada ao Rio de janeiro no início de 1940, trouxera cartas de apresentação para José Lins do Rego (1901-1957), Mário de Andrade (1893-1945) e Portinari (1903-1962), e logo foi introduzido na vida intelectual carioca. Ainda nesse mesmo ano surgiu a primeira exposição individual, no tradicional Salão do Palace Hotel, sede da Associação de Artistas Brasileiros.
Primeiras Exposições
Essa primeira exposição no Rio de Janeiro em outubro de 1940 no Palace Hotel, era uma coleção de quadros demasiado influenciada pelos surrealistas, e nela Marcier ainda não lograva dar a ampla medida do seu talento, com o fez em sua terceira exposição. Muito jovem e saudoso das Academias de Artes do Velho Continente, sua visão crua fortemente herdada pelos expressionistas alemães, atenua-se graças a uma sensibilidade sempre alerta. Os trabalhos que trouxera da Europa por vezes deixavam claro as pegadas de uma passagem pelo cubismo de Picasso. Alguns quadros que foram expostos: Túmulos, Massacres, A porta do inferno, Visita, Sancho Pança.
Despertou acentuado interesse a exposição de pinturas e desenhos do romeno Emeric Marcier realizada dois anos depois, em junho, no Museu Nacional de Belas Artes. A mostra composta de trabalhos que foram executados em sua viagem a cidades tradicionais de Minas Gerais ocupou três espaços do 2º andar e foi patrocinada pelo ministro da Educação, Gustavo Capanema (1900-1985). Já a terceira exposição de Marcier realizou-se no salão do Instituto dos Arquitetos do Brasil em 29 de julho de 1944, patrocinada pelo Instituto Brasil-Estados Unidos. Nessa exposição, o pintor romeno teve oportunidade de apresentar paisagens, estudos religiosos para grandes quadros, retratos e naturezas mortas, marcando dessa forma, uma evolução que foi considerada muito interessante, pois abandona a severidade material de sua fase expressionista anterior. São 25 pinturas e desenhos que a completam. Embora nas suas exposições anteriores Marcier já tinha obtido aplausos de inúmeros dos nossos artistas e escritores, como o poeta Manuel Bandeira. Tratava-se, sem sombra de dúvida, de uma autêntica revelação nas artes no Brasil.
A quarta exposição individual de Emeric Marcier só aconteceria após oito anos (1952) em São Paulo, na Galeria Ambiente, onde participa da III Bienal de São Paulo na categoria coletiva.
Encontro com Djanira
Recém-chegado da Europa em guerra, Marcier conheceu uma humilde e encabulada costureira, proprietária de uma pensão no bairro de Santa Tereza, no Rio. Marcier estava mal alojado num quarto muito pobre na pensão Mauá. Ao se deparar com o talento ainda desconhecido de Djanira, fez proposta para ministrar algumas aulas em troca de morar em seu pensionato, pois precisava de um espaço mais amplo para suas telas: cinco meses de aula em troca de casa e comida. Feito o trato, a pintora aliou algumas técnicas à grande intuição e talento. Logo depois, começou a construir sua carreira e teve estreia em 1942 no Salão de Belas Artes do Rio.
Quando viu os quadros de Djanira, Marcier ficou impressionado e disse: “A única coisa que posso ensinar a você é a cozinha do metier, é o oficio, o segredo das tintas, das telas, das têmporas, etc. O resto é trabalho pessoal seu”. Djanira confessa em entrevista, o quanto deve ao pintor Emeric Marckier, sobretudo aos livros de artes que trouxera da Europa. Portando, Emeric revelou-lhe os segredos iniciais da pintura e a sua própria vocação de pintora, que ela desconhecia. Ele foi à luz diferente que iluminou seu mundo e a pintura tomou conta da sua vida.
Viagem às Minas Gerais
A primeira vez que Emeric Marcier visitou Minas Gerais foi em 1942, para retratar aspectos das cidades históricas mineiras e ilustrar com suas telas, uma reportagem para a revista O Cruzeiro, na época o semanário mais importante do país. Era uma edição histórica, com textos de Carlos Drummond de Andrade, Aires da Matta Machado e outros. Foi uma viagem tão marcante que Marcier repetiu o trajeto Ouro Preto, Sabará, Congonhas, Mariana e Barbacena várias vezes, e acabando por construir um atelier nessa última. Os casarios, as paisagens e os profetas do Aleijadinhos passaram desde então a fazer parte de sua obra, junto com imagens recolhidas na Grécia, Itália e na França.
Quando Emeric Marcier veio para o Brasil, fugindo do caos que a guerra desencadeara na Europa, seus quadros despertaram imediatamente a atenção pela força artística com que eram realizados e pela alta inspiração que os precedia, dando um ar fantástico ao mundo transfigurado do artista romeno. Após viagem as cidades mineiras, seus quadros somam uma disciplina artística das mais apreciáveis, um comportamento de quem sabe o valor e o poder de uma cor, segundo a crítica da época. Marcier alcançou êxito consagrador na terceira exposição de quadros, realizada no Instituto dos Arquitetos do Brasil, por apresentar uma nova fase de sua poderosa personalidade e vocação, exibindo nessa exposição no Brasil bem viva a alma do país em que reside. É o Brasil, as velhas igrejas e os velhos caminhos de Ouro Preto.
As suas telas enriqueceram as nossas mais importantes coleções particulares e mais de duas dezenas de grandes murais, realizados desde 1947, podem ser vistos no Rio de Janeiro, Petrópolis, Muriaé, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Cataguazes, Barbacena, Mauá (São Paulo) e outros lugares no mundo. Desde sua chegada ao Brasil, Emeric Marcier buscou criar uma obra séria, indiferente aos sucessos imediatos. Ele é daqueles pintores que entre nós obteve as maiores confirmações de propriedade artística. O certo é que o nosso barroco, empolgou, o Brasil conquistou Marcier e este se enriqueceu com essa conquista.
Ilustrador de livros
Marcier já havia ilustrado alguns livros na Europa, mas no Brasil estreou em São Francisco de Assis, de Jorge de Lima, 1942. Cântico, publicado pela Livraria Jos Olympio, em 1949, do poeta alagoano Lêdo Ivo (1924-2012) também conta com suas ilustrações. Em bela edição, é uma nova coletânea de poemas de um jovem autor que, em poucos anos, galgou uma posição de incontestável prestígio nas letras nacionais, merecendo prêmios importantes quer como poeta e quer como romancista e impondo-se a unanimidade da crítica brasileira, quando da sua publicação. O livro Cântico foi reconhecido como uma das obras mais importantes do ano.
A paixão medida, do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, Editora Alumbramento (preciosa caixa), 1980, edição para bibliófilos, apresentação de luxo com ilustração do consagrado artista Emeric Marcier, pequena tiragem de 624 exemplares, numerados e assinados pelos autores. O livro compõe de 28 poemas inéditos e 12 desenhos de Emeric, que teve lançamento no Rio de Janeiro, em 4 de setembro, na Livraria Leonardo da Vinci. A Paixão Medida mostra um Drummond em um dos momentos altos de sua já longa trajetória poética.
Dessa tiragem, 100 exemplares foram com o presidente Figueiredo para a França, acompanhados por uma introdução e pela tradução de quatro poemas feitas por Paulo Rônai, para serem distribuídos como presentes oficiais do Governo brasileiro as autoridades daquele país. O livro teve uma edição comercial pela Livraria José Olympio, 92 páginas, 34 poemas, ilustrado por Luís Trimano, em homenagem aos 50 anos de estreia literária do poeta com “Alguma Poesia”, seu primeiro livro. Esse volume é uma obra única, de um encontro tão harmonioso e feliz da arte e do artesanato, da simplicidade e da transcendência espiritual.
Outro livro ilustrado por Emeric foi Torre de Marfim, de Thereza Magalhães Pinto, Editora Nova Fronteira, 1981. Poemas intuitivos, intimistas, mineiros, gerado como um filho em longo processo de maturação, cujo título é explicado na “contracapa” de Otto Lara Resende, lançado na pérgula do Copacabana Palace, em noite de 11 de novembro. Sobre sua estreia na literatura – diz Thereza:
Está tendo para mim o sentido de uma renovação de valores, de uma descoberta. Sempre tive dentro de mim uma paisagem bucólica, intimista, reflexiva. E esse silêncio que exponho agora publicamente.
Os desenhos que acompanham 15 poemas são todos de Marcier, amigo com quem Thereza sente certa identidade e diz: Convidei-o e ele aceitou. Marcier tem uma pintura densa, profunda.
Em 1981, Emeric Marcier entregou ao Instituto Nacional de Música – Funart, por encomenda de seu diretor José Mauro Gonçalves, dois desenhos – aquarela e guache – dos quais um seria capa do programa da Orquestra Sinfônica Brasileira.
Roubo e devolução de “Piedade”
A tela Piedade, pintada em 1952 por Emeric Marcier e avaliada pelo marchand Jean Boghici, (para efeitos de seguro), em 100 mil dólares, foi roubada no sítio do pintor em Barbacena. Em depoimento à polícia, Emeric disse que seu sítio foi roubado por várias vezes, o que o levou a retirar de lá todas as suas obras, menos Piedade, que julgou ser impossível de ser roubada devido a suas dimensões (3mx4m). Segundo Emeric, os ladrões separaram a tela da moldura cortando-a com gilete, o que implica num prejuízo de cerca de Cr$ 1 milhão só para restaurar, reentelar e reemoldurar.
Com a notícia do roubo, Emeric Marcier ficou transtornado, em estado de depressão, indignado com a boçalidade, ousadia e impertinência e falta de escrúpulos dos autores do roubo:
“Esse quadro tem um valor sentimental para mim. Eu jamais venderia. Me sinto como se tivesse roubado toda a minha história”.
Na verdade, a tela estava destinada ao futuro Museu Marcier de Barbacena. A Piedade, porém, é o expoente da sua fase religiosa, onde se destacam, ao lado dos temas sacros, as cores fortes.
A devolução da tela foi feita em 11 de julho de 1988 à polícia de Barbacena pela filha do pintor, Ana Catarina Marcier Sampaio Vale (41), que havia furtado do sítio de seu pai no final do mês de junho. Segundo a ladra Ana, ela e sua irmã Clara Verônica Marcier (36) entraram no sítio Santana que ficava afastado da cidade, a 5 quilômetros, numa área deserta. Desmontaram a tela da moldura e já se preparavam para vendê-la. A sua mãe, Júlia Vieira Rosa, no, entanto, deu por falta da pintura e entrou com queixa na delegacia de Barbacena. Na época, a obra estava avaliada em Cr$ 27 milhões.
No depoimento ambas sustentaram que já haviam vendido a tela para alguém na Europa. Pressionada pelo delegado da furtos e roubos de Barbacena, ele não teve dúvida de que se tratava de “coisa de família”. Num novo interrogatório, as filhas confessaram que a obra se encontrava em seu poder, enrolada dentro de um tubo PVC. O delegado Edson Lopes concluiu que Ana Catarina e Clara Verônica seriam indiciadas por furto, mas lembrando que o Artigo 181 de Código Penal Brasileiro isentava de pena pessoas que cometam crimes contra o patrimônio do cônjuge, pais e filhos.
Ladrões não têm amor à arte
Foi em 1960 que Ouro Preto começou a ser atacada pelos ladrões de obras de arte. Antes, apenas alguns casos isolados de assaltos haviam ocorrido, o primeiro deles em 1955, na Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, e o segundo na Matriz do Pilar, em 1957, quando o sacristão Pedro Ilídio teve a cabeça quebrada por um globo de ferro. Mas o primeiro furto importante aconteceu na Igreja de São José, onde foram roubadas várias imagens de século XVIII, sem que a polícia descobrisse a identidade dos autores do crime.
O furto de arte, que antes se limitava à área das antiguidades e da fase colonial e barroca, estende-se, agora, aos modernos. Um quadro sacro do pintor Emeric Marcier, o maior pintor sacro do Brasil, denominado Cristo de Manto, foi furtado em Belo Horizonte durante a exposição na Reitoria da Universidade de Minas Gerais, avaliado na época por 300 mil. A tela ficou por quase um mês em poder do ladrão, que, apesar das investigações da polícia, não foi identificado. Temendo ser descoberto, o autor do furto devolveu o quadro ao seu dono, depositando-o no pátio de um colégio, depois de avisar previamente as autoridades. Uma série de bilhetes deixados pelo ladrão indicou que se tratava de uma pessoa ligada aos meios artísticos.
Artista talentoso
Casado com Júlia Vieira Rosa, filha do general Vieira Rosa, o casal teve sete filhos: Carlos André, Matias Francisco, Ana Catarina, Jorge Tobias, Joana Inêz, Carla Verônica e Mônica Francisca. Emeric Marcier trouxe para o Brasil a expressão de uma vigorosa juventude e um talento plástico apreciável. Sobre a exposição de Emeric Marcier, realizada em dezembro de 1960 na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, o escritor e jornalista católico Gustavo Corção (1896-1978) diz em artigo publicado no Diário de Notícias:
“Que posso eu dizer de pinturas, de quadros? Que pode alguém dizer de alguma coisa de arte? Refugiando-me na simplicidade, que sempre é uma solução, direi que são muito bons, muito bonitos, muito bem pintados os quadros de Marcier. Fora de qualquer dúvida, trata-se de um artista de raça, de um desses valores que ficam por fora das maniazinhas que estão na moda e que seguram pelos chifres a áspera dificuldade de exprimir o que vai na alma com linhas e cores. Emeric Marcier pinta figuras, tem audácia de pintar figuras, tem a originalidade suprema de não se preocupar com o conteúdo social de sua arte, e tem a supremissima originalidade de pintar a figura de Cristo e as cenas dos evangelhos. A par desse gênero, em que é mestre, expor também, algumas paisagens admiráveis. Seu traço é essencial, a sua cor magnífica e exata”.
Em 1961, o pintor Emeric Marcier, em plena maturidade de sua arte, expõe 25 anos de desenhos (várias técnicas) na Galeria Relevo, de propriedade do “connaisseur” Jean Boghici, no Rio de Janeiro. Apresentado pelo poeta e crítico Ferreira Gullar, este analisa a evolução do pintor através das várias fases que desde 1937, estão representadas nos 40 desenhos. Em 1964 o pintor Emeric deixou por alguns dias seu refúgio em Barbacena e foi ao Rio de Janeiro exclusivamente para pintar o retrato de Brigitte Bardot. A famosa estrela do cinema francês, posou por mais de 1 horas por dia para Marcier, no seu atelier de Ipanema. A título de curiosidade vale lembrar que Brigitte já foi retratada pelo famoso pintor internacional Van Dongen.
Em outubro de 1969, a Galeria de Arte Cosme Velho (SP) inaugura mostra de quadros de Emeric Marcier, que foi representada por sua mulher Julieta, pois o mesmo encontrava-se na Europa. A mostra se encerrou no dia 8 de novembro, foi composta de 32 telas a óleo, 16 delas integrantes de uma coleção sobre a Paixão de Cristo, segundo a versão do artista. As outras são sobre temas religiosos e retratos seus preferidos, além de uma paisagem. Entre as obras que foram expostas, destacam-se: O colete Vermelho; Autorretrato; Morros de Tiradentes; Nue Pieta.
Considerado pelo crítico de arte Harry Laus como influenciado pelo misticismo e a adoração da paisagem, Emeric Marcier mostra em seus quadros a influência de uma tradição brasileira que envolveu alguns de nossos principais artistas, como Segall, Portinari e Guinard. Como eles Marcier, segundo o crítico, conseguiu expressar de forma particular, a paisagem ou a figura humana dentro de um espírito de modernidade que torna autêntico e atual seu poder de criação.
Em dezembro de 1970, a inauguração da Galeria Ipanema, Rio de Janeiro, teve três representantes da arte brasileira contemporânea, como sejam os pintores Rubem Valentim, Manabu Mabe e Emeric Marcier, artistas que, não obstante a diversidade das tendências e dos estilos, ocupam posição de relevo em face do alto nível de suas criações. Sobre Marcier, o crítico Roberto Teixeira Leite assina Catálogo da Exposição:
“Emeric Marcier não precisa de apresentação: muito menos de recomendação: todos o sabemos um dos quatro ou cinco pintores realmente importantes com que conta o Brasil, e sua obra, já passada em julgado pela crítica, enriquece numerosíssimas coleções públicas e privadas, aqui e no estrangeiro. Como pintor religioso – um dos maiores que tivemos como paisagista, em retratos e figuras ou em naturezas-mortas. Marcier é sempre o mestre seguro de seu “métier” e de linguagem nobre e expressiva a que todos nos habituamos – por isso mesmo, figura cada vez mais e mais isolada no panorama atual da arte já não diremos brasileira, mas internacional”.
Exposição /68 em Bucareste
Por iniciativa do embaixador Donatelo Griego, chefe do Departamento Cultural do Itamarati, realizou-se uma Mostra Retrospectiva da obra do pintor Emeric Marcier, em 1968 na Romênia. Trata-se de uma homenagem com muita justiça prestada a um de nossos maiores pintores, apesar de ser natural da Romênia, porém, de longa data radicou-se no Brasil. Foram apresentadas 46 composições, reunidas de colecionadores particulares, tendo catálogo apresentado pelo crítico, José Roberto Teixeira Leite. Em crônica publicada por Hugo Auler, Ministro do Tribunal Eleitoral, à época, além de dirigir o Caderno Cultural daquele prestigioso órgão dos Diários Associados, em Brasília:
“O sentido universal de sua arte, se faz sentir no modo surpreendente pelo qual sabe abranger e explorar todos os temas, principalmente os que têm por pretextos os aspectos paisagísticos das cidades históricas de Minas Gerais e os que se fundam na sabedoria bíblica, o que, aliás, o tornou no mais notável interprete plástico dos Evangelhos”.
O Ateneu Romeno, construído em 1888 e situado no centro histórico de Bucareste, tem uma boa reputação pela qualidade de sua acústica. É uma sala de concerto mítica, por onde passaram grandes nomes da música clássica, como Ravel, Strauss e outros. O edifício é imponente, cuja fachada e as colunas estão sob uma rotunda com cúpula. Foi nesse Ateneu que Emeric Marcier inaugurou sua exposição no dia 4 de novembro de 1968, apresentando uma seleção de obras sobre as paisagens mineiras, pinturas religiosas e retratos. A organização do evento deve ter ocorrido de maneira curiosa entre ambos os países, visto que a Romênia um país socialista pressionado pela União Soviética e o Brasil, vivendo uma ditadura militar desde 1964.
Observamos que o resultado dessa exposição na Romênia, não teve visibilidade em ambos os países.
A Europa em chamas: É proibido proibir
1968 foi um ano muito especial no mundo inteiro. Houve um grande movimento de contestação político-social e cultural que ocorreu na França em maio-junho de 1968, estendendo-se a outros países. A revolta estudantil explodiu a partir de março, na Universidade de Nauterre, cujo fechamento (2 de maio), ao qual se seguiu o fechamento da Sorbonne (3 de maio), provocou uma série de manifestações violentas.
O movimento se estendeu aos operários e, a 13 de maio, uma grande manifestação foi organizada em Paris pelos sindicalistas, que optaram por uma greve geral. Paralisou- se a vida econômica do país (10 milhões de grevistas a partir de 20 de maio). Todavia, divergindo do esquerdismo dos grupos de estudantes (anarquistas, maoístas e trotskistas, que desejavam uma mudança política radical, embora imprecisamente articulada).
O Partido Comunista e a CGT insistiram em suas reivindicações profissionais e salários. Após as negociações, o general De Gualler dissolveu a Assembleia, enquanto seus partidários lhe asseguravam apoio. Finalmente, o regime saiu fortalecido do episódio com as eleições de junho, que marcaram a vitória da UDR e o recuo dos partidos de esquerda.
No ano de 1968 muitos jovens em todo o mundo acreditaram ser possível realizar o sonho de um mundo novo. Pôr fim à discriminação racial, ao machismo, ao autoritarismo, à guerra – ideias e modos de vida herdados de gerações anteriores. Quiseram iniciar uma nova era de paz e amor.
Nos Estados Unidos, os hippies optaram por não participar da sociedade de consumo, fugindo à convocação para a Guerra do Vietnam e vivendo em comunidade de jovens em que todos fossem livres e solidários. Aconteceram os grandes festivais hippies de música, como Woodstock, realizado de 15 a 17 de agosto (1969), e considerado o principal acontecimento da contracultura na década – reuniu de 300 a 500 mil jovens representantes da geração hippie em torno das apresentações de ídolos do rock e da música folk: Jimi Hendrix, Joe Cocker, Joan Baez, The Who, Ravi Shankar, Jenis Joplis, Carlos Santana, entre muitos outros.
Na Tchecoslováquia, o povo protestava contra a invasão do país por tanques soviéticos. Jovens universitários de toda a Europa e do Japão proclamavam: Sexo, drogas e rock’n’roll! Na América Latina, a juventude apostava na eficácia de ações armadas contra as ditaduras que dominavam boa parte do continente. Na Romênia, em 21 de agosto de 1968, na praça do Palácio em Bucareste, diante de mais de cem mil pessoas, Nicolae Ceusesco (1918-1989) secretário-geral do Partido Comunista e presidente do Conselho de Estado da Romênia, através de discurso inflamado, denunciou corajosamente a invasão da Tchecoslováquia, tentando afirmar mais uma vez, sua independência em relação a Moscou.¹
Nos anos 60, por diversas razões, as guerras regionalizadas eclodiram na área, no Oriente Médio e na África. Além disso, a possibilidade real de uma guerra nuclear causava e apavorava boa parte da humanidade. Portanto, foi uma década agitada do ponto de vista política e social e que produziu as referências de valores e os movimentos que continuaram na década seguinte.
Brasil/ Barra 68
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¹Nicolae Ceausesco, líder do país havia um quarto de século, depois de capturado juntamente com sua esposa, foram julgados por “sabotagem econômica e genocídio”, sendo sumariamente executados por um pelotão de fuzilamento, em 25 de dezembro de 1989.
O ano de 1968 no Brasil foi caracterizado por uma mobilização que se explica em grande medida por aquilo que já vinha ocorrendo: passado o primeiro momento militar de 64, as oposições foram se reerguendo. Em abril, uma greve paralisou cerca de 15 mil operários na cidade de Contagem, Minas Gerais.
No dia 28 de março de 1968 o estudante secundarista Edson Luís de Lima foi morto pela Polícia Militar do Rio de janeiro durante uma passeata. O incidente mobilizou a opinião pública nacional. Intelectuais, padres, artistas e mães atenderam ao apelo comovido dos estudantes: “Podia ser seu filho”: gritavam nas ruas.
A passeata dos cem mil promovida por entidades estudantis no Rio de janeiro em 26 de junho de 1968, foi uma das últimas manifestações de massa no país antes do endurecimento do regime militar. Os estudantes estavam à frente dos protestos contra a ditadura e, por isso mesmo, eram os mais expostos à sua repressão. Em sua mobilização, foram acompanhadas por trabalhadores, sindicalistas, professores e líderes religiosos, que também sentiram a mão pesada do regime militar. O governo, advertido pelos líderes estudantis de que haveria forte reação em casa de repressão, manteve a polícia a distância.
Em julho, foi à vez de seis, das 11 indústrias metalúrgicas de Osasco, em São Paulo, suspenderem suas atividades. Os operários paulistas resistiram às tropas de cheque da polícia e do Exército, com o apoio de setores progressistas da igreja. Mas o saldo desses protesto foi negativo para os grevistas: centenas deles foram presos e a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco destruída.
Em 1968, o regime militar tornou-se ainda mais duro. A repressão estava na ordem do dia daquele que tinham o poder. A esquerda, dividida em vários grupos, se organizava para desencadear a luta armada, como única forma de resistir aos arbítrios perpetrados pelo regime. Dentro dessa conjuntura, o capitão Carlos Lamarca (que rompeu com o Exército) ingressou, em dezembro, na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) e a criação da Aliança de Libertação Nacional (ALN), cuja figura principal foi Carlos Marighella, morto pela repressão. A luta armada fez sua aparição realmente espetacular a partir do sequestro do embaixador americano Elbrick, no Rio de Janeiro (narrado no livro de Fernando Gabeira, O que é isso, Companheiro?
Somente em 1968 a tortura se tornou sistemática em todo o país, como instrumento político. Antes disso, ela era utilizada em algumas situações, com diferenças geográficas. Em 68 se instalou a repressão sistemática. Foram criadas organizações – como a Operação Bandeirantes, em São Paulo – que usavam todo tipo de violência para quebrar a oposição, principalmente a ligada à luta armada.
O Ato Institucional número 5 é uma verdadeira revolução dentro da revolução. Em dezembro de 1968, a edição do AI- 5 restabeleceu uma série de medidas excepcionais suspensas pela Constituição de 67. Voltaram as cassações e o fechamento político. O AI – 5 fortaleceu a ideia de que os militares não se dispunham a abandonar o poder, e ficou claro que haveria cada vez menos brechas para a oposição.
Quando o presidente Costa e Silva ficou doente, foi afastado do poder, Marinha, Aeronáutica e Exército elegeram um típico representante da linha dura, o general Emílio Garratazu Médici. O nome de Médici está associado à face mais negra da repressão, nada na história brasileira se compara a esse período, nesse sentido.
Se não mudou o mundo, 1968 pelo menos o sacudiu em todos os planos, da política e também da cultura, vista como uma expressão mais ampla. Em 1968 Caetano Veloso foi barrado na I Bienal do Samba da TV Record. O slogan do certame era
“Queremos ver os Beatles peãs costas” – clara referência à interdição da guitarra, que o baiano andava experimentando em suas músicas. Paulinho da Viola concorreu, com um samba que impressionou muito Caetano: Coisas do mundo, minha nega. Depois, Cae compôs A voz do morto, homenagem a seu companheiro do Solar da Fossa e debocha aos organizadores daquela Bienal.
A Ceia
No dia 29 de novembro de 1968, comemoração do 40º aniversário de O Cruzeiro, um quadro de Emeric Marcier “A Ceia”, doação de Flávio Guttierrez, inaugurou e passou a ser foi integrado à coleção da Galeria de Arte desta revista, tendo como paraninfo a esposa do doador, Sra. Nenem Gutierrez. Na ocasião, Emeric foi saudado pelo vice-presidente de O Cruzeiro, Sr. Theophilo de Andrade. Vejamos o discurso deste último, Uma Ceia para O Cruzeiro, publicado no Correio Brasiliense de 12, dezembro e no Diário de Notícias, de 15 de dezembro de 1968:
“Recebemos A Ceia grande tela de Emeric Marcier, doado a O Cruzeiro por Flávio Gutierrez, na festa do quadragésimo aniversário da revista “Associada” pronunciou o signatário desta coluna, mais ou menos, as palavras abaixo:
Neste momento em que O Cruzeiro completa o seu quadragésimo aniversário, vemos renovar-se um rito que é tão velho quanto a civilização. Poderia dizer mais velho que a civilização, pois o encontramos já entre os povos primitivos: a doação de um presente. É presente régio comparável aos dos cabeças coroadas e chefes de Estado, ainda hoje. Refiro-me a este quadro magnifico, de Emeric Marcier, com que – pela mão de D. Nenem Gutierrez, a graciosa madrinha – Flávio Gutierrez presta homenagem aos quarenta anos desta revista.
É O Cruzeiro uma das criações com que Assis Chateabriand enriqueceu o patrimônio artístico e cultural do Brasil. Pena que a mão da Parca inexorável haja ceifado, recentemente, a sua vida, não permitindo que ele aqui esteja, fisicamente para ver, em rica frutificação, a seara que semeou. Temos, porém, o consolo de constatar que a árvore que plantou, deitou raízes na terra, abrindo-se em flores sazonando em frutos, que hoje depositamos no altar da sua glória.
Tem sido esta revista, nestas quatro décadas em que acompanhou a evolução econômica, política e cultural do Brasil, uma força de vanguarda, desde o dia remoto em que nasceu 1928, sou a orientação literária daquele fino escritor cultor emérito da língua portuguesa, que foi Malheiros Dias.
De então até hoje, muitos espíritos de escol comunicaram-se com o povo brasileiro, através das suas páginas, de maneira permanente, como Gustavo Barroso, Pedro Calmon, Austregésilo de Athayde e o próprio Assis Chateaubriand.
Não me limito a evocar os epônimos das letras. Contribuíram para a expansão de “O Cruzeiro”, assegurando-lhe o acolhimento do povo brasileiro, as gerações de redatores, cronistas e repórteres, formados em nossa escola, e que fizeram dele um dos maiores “magazines” do mundo latino.
Mas a inteligência criadora, o guia fascinante desta obra foi Assis Chateaubriand, secundado, em todos estes anos, na administração, por esse incansável batalhador das horas boas e más, que é Leão Gondim de Oliveira.
Homem de gênio multiforme, construiu Chateaubriand, em ramos os mais diversos de atividade por que foi sobretudo, um corretor, certamente, o maior corretor com que o Brasil contou, em todos os tempos. Graças a esta qualidade mestra, tirou um império do nada. E o “fiat” realizador chamou-se amizade. Soube atrair simpatias e fazer amigos que correram, pressurosos, a ajudá-lo em seus projetos.
No vasto círculo dos seus admiradores e colaboradores deparamos, em posição privilegiada, Flávio Guttierrez. Mineiro de Pará de Minas, é, como ele, um desses “selfmade man”, que são a glória da livre-empresa, nas democracias. Grande industrial e grande banqueiro, é também lavrador, pelo requinte espiritual com que cultiva a terra, em sua fazenda “Morada Nova”, em Sete Lagoas, louvada por Chateaubriand como uma das mais luxuosas do mundo.
Neto de imigrante espanhol, estadeia a chama de conquistador de um Pizarro, e também o amor das artes de um Grande de Espanha, da velha estirpe. E desceu das Alterosas para presentear “O Cruzeiro” pela mão de sua graciosa esposa, D. Nenem Gutierrez, com esta soberba tela de Emeric Marcier, que irá presidir, daqui por diante o salão de festas deste prédio monumental, elevado sobre o risco moderno de um dos maiores arquitetos brasileiros: Oscar Niemeyer.
É uma “Ceia” de Cristo, inspirada em um motivo eterno que tem fascinado os grandes pintores, através das idades, nestes vinte séculos de civilização ocidental. Cada uma delas traz o cunho de sua época. E embora seja o motivo o mesmo, as interpretações são diversas, todas com caráter próprio, fruto da sensibilidade artística do pintor, e da época em que viveu. Tem sido assim desde antes e ainda depois que Leonardo da Vinci criou, no salão de refeitório do Convento de Santa Maria da Graça, em Milão, a sua famosa “Ceia” divulgada, em estampas, pelo mundo afora.
Conheço no Brasil, como sólidas criações de artistas brasileiros, três “Ceias” do Senhor. Uma de Cândido Portinari, que se encontra na coleção particular de minha graciosa presidenta Lili Gondim de Oliveira, e que é uma festa de cores. Outra, de Dimitri Ismailovich, de propriedade do pintor, curiosa por estar ligada ao barroco brasileiro, pois o artista pintou Cristo e os Apóstolos com as feições e as indumentárias que o Aleijadinho deu às suas esculturas. E esta, de Emeric Marcier, muito severa nas tintas, impressionante pela sua rudeza moderna, e que, daqui por diante, graças a Flávio Gutierrez, irá presidir os nossos encontros sempre que tivermos de repartir o nosso pão e o nosso vinho, com os amigos que nos são caros.
Portinari traiu, naquele quadro, a influência da viagem à Itália, pois as suas cores têm a viveza de um Veronesc. Ismailovich foi até o Aleijadinho e ao barroco das Alterosas. E Emeric Marcier, um romeno abrasileirado em terras de Minas, remontou aos primitivos, tal como são revelados, com maestria antes nunca fixada, por Bernard Berenson.
Trouxe Marcier para a tela em que pintou a instituição da Eucaristia, o diabo que se havia apossado de Judas. E o mesmo diabo que deparamos no Batistério de Florença, e o mesmíssimo diabo que encontramos nos murais, hoje em parte destruídos pela última guerra, do Campo Santo de Pisa.
Dizia-me Gustavo Barroso que, sem o diabo, não se explicaria a história. Descoberto por Zoroastro, o anjo descaído tornou-se o símbolo da velha luta entre o Bem e o Mal, dentro da qual se agita a humanidade, desde o pecado original, nos jardins do Éden. Um dia, predomina um. No dia seguinte, o outro. Tentado e repelido pelo meigo Jesus, quando levado para o alto da montanha, foi por ele vencido, em sua vida terrena, ao apossar-se Satanás de Judas, e o induzira a entrega-lo, com o beijo da traição, aos sacerdotes da lei antiga, para julgá-lo, condená-lo e crucifica-lo.
A “trouvaille” do artista montanhês tem sentido filosófico. O diabo está em toda a parte. Esteve, assim, na Ceia Sagrada. Jesus o sabia. E Marcier o viu. E está entre nós, a tentar-nos, e a fazer-nos cair em nossas fraquezas, e em nossos erros.
Este quadro de Marcier ficará, doravante, em nosso salão principal, trazido pela mão do anjo bom, que é D. Nenem Gutierrez mas com o anjo mau nele pintado como uma advertência de que a nossa vida é uma peregrinação constante, entre a luz e as trevas, entre o Bem e o Mal, à busca do bom caminho.
“O Cruzeiro” não esquecerá a maravilhosa dádiva”.²
Criação do Museu
Após a morte de Emeric Marcier em 1º de outubro de 1990 de ataque cardíaco na casa de um amigo em Paris, a partir de 1999 os meios ligados as artes plásticas do Rio de Janeiro foram solidários com o movimento liderado pelo jornalista e historiador mineiro, Marcio Bertola, no sentido de salvar as obras de Emeric Marcier, no sítio Sant’Ana em que viveu por 40 anos em Barbacena. Segundo depoimentos, alguns painéis encontravam-se sob risco iminente de perda. Era preciso encontrar com urgência um mecenas que pudesse ajudar imediatamente, até que a Prefeitura local encontrasse uma solução.
Houve um período em que a família de Marcier, registrou em fotos o descaso da Prefeitura de Barbacena, como um dos patrimônios históricos mais importantes do município: “O local estava coberto por matos, cercas destruídas, iluminação improvisada, a casa completamente abandonada”. Segundo a família fez denúncia ao Ministério Público.
A criação do Museu Casa de Marcier – Parque Emeric Marcier no sítio Sant’Ana, antiga residência do pintor Emeric Marcier, localizado na estrada que liga o bairro Monte Mário ao distrito do Faria, zona rural, em Barbacena, pela prefeitura local, através do Decreto nº 3.691, de 7 de junho de 1995 abriga desde18 de junho de 2004, um museu dedicado ao romeno naturalizado brasileiro Emeric Marcier (1916-1990). O pintor passou a maior parte de sua vida entre o Rio de Janeiro e a cidade mineira. O atelier que ele ocupava, passou por reformas, tinha como atividade principal, expor um acervo permanente reunindo seus melhores trabalhos, além de objetos pessoais e documentos. Entre as obras, estão afrescos concluídos e esboços. O artista tinha uma característica que o distinguiu de seus contemporâneos refugiados de guerra. Judeu por nascimento, converteu-se ao cristianismo, fazendo da pintura religiosa uma vertente importante de sua trajetória.
Exposições Póstumas
Foram realizadas aproximadamente 20 exposições póstumas, em vários estados da federação: Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais. Uma das exposições de grande repercussão, “Emeric Marcier (1916-1990), na
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² Correio Brasiliense de 12, dezembro e no Diário de Notícias, de 15 de dezembro de 1968:
Galeria Evandro Carneiro Arte, Rio de Janeiro (de 15 de setembro a 13 de outubro – 2018), em homenagem ao artista pintor e muralista romeno, naturalizado brasileiro, que realizou frequentes viagens à Europa, passou parte de sua vida no Rio de Janeiro e em Barbacena (MG). Essa exposição, em homenagem ao artista, consta de 28 trabalhos em tela a óleo e aquarelas como parte do acervo inédito, cedido pelo filho do artista, Mathias Marcier.
Durante os 50 anos em que viveu no Brasil, Emeric Marcier concedeu dezenas de entrevistas à imprensa local, bem como a quantidade significativa de artigos publicados sobre sua obra, por escritores brasileiros nos surpreende, alguns como: Murilo Mendes, Lêdo Ivo, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Geraldo Ferraz, Accioly Netto, Ferreira Gullar e outros.
Centenário – justa homenagem
O centenário de nascimento do pintor judeu romeno Emeric Marcier (1916- 2016), homenageado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Fundação Clovis Salgado através da exposição Marcier 100 – Emeric Marcier, de 25 de novembro de 2016 a 15 de janeiro de 2017, nas Galerias Genesco Murta e Arlinda Corrêa Lima, no Palácio das Artes, oportunidade em, que foi lançado no jardim interno, um Catálogo, apresentado por Augusto Nunes-Filho, Anne-Catharine Emmerich, Edson Brandão e Carlos Bracher.
A mostra contemplou diferentes fases de Marcier (1940-1980), sacra, as paisagens e os retratos, que retratam a cultura religiosa e a tradição do povo mineiro durante a trajetória do pintor no Brasil. Inspirado no Velho e Novo Testamento, Marcier seguiu a tendência expressionista, empenhado na divulgação da história e da realidade cristã. Marcier explica:
“Somos coroados de espinhos diariamente, resta suportar em silêncio e jamais renunciar à nossa dignidade, apesar das violências que sofremos”.
As obras surgiram do contato que o artista teve com as cidades históricas e abordam a cultura de Minas, a partir de diferentes enfoques.
“Modesta” exposição de 70 obras, oriundas de coleções de famílias, particulares e instituições, com curadoria do historiador Edson Brandão, que em entrevista no “Conexões”, diz que:
“Emeric Marcier sentiu o impacto de chegar ao Brasil e viajar para o interior, regiões que ele mal conhecia. A forte presença da religião nas cidades de Minas abriu os olhos de Marcier para a arte sacra. A partir daí o trabalho dele torna-se algo que vai além do devocional, é a visão do próprio Marcier sobre Minas, sua gente, sua cultura”.
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Dois poetas escrevem sobre Marcier
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Marcier
Manuel Bandeira
Até há poucos anos a pintura figurativista podia às vezes dar-nos sensação de cansaço e tédio. Mas depois que a mocidade (a melhor mocidade) se voltou em massa para o concreto e o neoconcreto, são estes que já começam a fatigar-nos, tão verdade e que depressa nos habituamos as formas ainda as mais insólitas. E é com deleitados olhos que contemplamos as telas de um bom pintor da velha guarda figurativista. Foi o que aconteceu com a recente exposição de Guignard e está acontecendo agora com a de Marcier.
Outro dia, em crônica intitulada Da lógica na apreciação artística, comentava Mário Pedrosa, com a sua habitual clareza, umas palavras Luminosas de Whitehead sobre a percepção artística. “Vemos”, escreveu o filósofo, “diante de nós uma forma colorida e, incontinente, concluímos logicamente que se trata de uma cadeira. Ora, para aquele que simples e imediatamente percebe, o que se viu foi, principalmente, uma forma colorida”.
Diante das pinturas de Marcier, a primeira coisa que me acudiu foram essas palavras de Whitehead. Marcier é um desses pintores que nos ensinam a chegar, diante dos seres e objetos, à percepção simples e imediata da forma colorida. Em todas as suas telas vemos em primeiro lugar a forma colorida, e só depois é que penetramos no sentido anedótico das figuras. Somam-se então as duas emoções – a emoção moral, no caso de Marcier quase sempre de fundo religioso, e a emoção puramente estética.
Falei de seu fundo religioso. Marcier nesta mostra apresenta-nos um rico acervo de pintura do gênero – uma admirável Via Sacra, uns Cristos patéticos, ele próprio em alguns autorretratos também um Cristo patético. A arte religiosa de Marcier, poderosamente mística, nos contagia de golpe.
Nas paisagens sabe ele captar o sentido fantasmal (não sei como dizer de outra maneira) dos velhos casarões e das velhas igrejas. Tenho a fortuna de possuir uma tela de Marcier onde está imortalizado um desses fantasmas, Armazém S. Joaquim, que, não sei por que milagre neste Rio arranhacelizado por toda a parte, ainda está de pé no Largo do Guimarães, em Santa Tereza. Uma das paisagens mais impressionantes desta exposição é a das duas igrejas de Mariana no mesmo Largo, a de São Francisco e a do Carmo, está dominando o casario pobre adjacente com uma presença verdadeiramente paraclética.
Bravo. Marcier! Aqui lhe deixo o meu abraço entusiástico de velho amigo e fã.³
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³ Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1960.
Desenhos de Marcier
Ferreira Gullar
A pintura de Emeric Marcier é já conhecida do público do Rio. Mas quem conhece os seus desenhos? Muito pouca gente. Marcier ilustrou um ou outro livro e publicou alguns desenhos em suplementos literários do Rio, por volta de 1945. É tudo. Mas isso nada significa diante de um homem que passa grande parte de sua vida desenhando e poderia reunir centenas de desenhos, de sua autoria, se o quisesse. A presente exposição mostra uma seleção dos desenhos de Marcier, cobrindo 25 anos de trabalho. Não é hábito no Brasil, expor desenhos a não ser de desenhistas, isto é, de artistas que se dedicam especificamente ao desenho. No entanto, belas e importantes exposições se poderiam fazer com os desenhos de pintores e escultores, particularmente daqueles que já possuem uma obra considerável. Nesse sentido, a Galeria Relevo soma um mérito novo a sua inauguração: o de possivelmente despertar entre nós o interesse por esse tipo de exposições. Tais mostras têm, para o crítico, um valor especial, pois revelam as etapas anteriores da obra que a mostrada ao público como uma aparição súbita. Através dos estudos pode-se acompanhar o pensamento formal em sua elaboração tateante, o desvendar das formas e das relações. E mesmo nos desenhos sem compromisso, nas anotações de figuras e paisagens, quando o temperamento do artista se revela na espontaneidade do traço.
Hoje, desses estudos e anotações têm um interesse maior ainda. A característica mais geral da arte contemporânea, desde o seu nascimento no impressionismo, talvez seja a busca da coincidência entre o tempo interior do artista e o da elaboração da obra: os impressionistas queriam captar o instante: Cezanne quis dar a esse instante uma estrutura; Mondrian buscou uma estrutura instantânea; Kandinsky, nas improvisações, reduziu a improvisações impressionista… E chegamos à pintura de hoje, em que o problema da instantaneidade leva ao pintar em público e muita vez à produção desenfreada… Há, em tudo isso, a desesperada procura de um suporte atemporal para a expressão: a tentativa de fugir da História – que do futuro aos olhos – para fundá-la aqui, agora, no cerne do minuto.
Mas essa preocupação ainda é histórica, e é preciso nem pensar nisso para de fato o conseguirmos. Daí o interesse pelos esboços, pelas anotações, pelas manchas, enfim, por tudo o que traz a marca do ato livre…. do gesto que não foi praticado visando a um público. Esse é precisamente o caso dos desenhos de Marcier, que ora se expõem. Muitos deles são estudos para murais, com toda a série da Crucificação e da Gênese. Através deles acompanha-a o trabalho de formulação do artista, que busca menos a forma exata a ser transposta do que instruir-se interiormente, preparar-se para o lançamento espontâneo da obra definitiva. (E quantos não fazem apenas uma miniatura, que deverá ser ampliada!). Mas há ainda os desenhos sem compromisso, aqueles em que o pintor – homem que fala menos pela boca do que pelos olhos e pelas mãos – tenta um diálogo livre com o mundo.
E aí temos as paisagens sintéticas, em que dois, três traços são suficientes para captar o objeto, ou as figuras de gente e de bichos esboçadas em algumas linhas rápidas, num ritmo que consome o detalhe. Muitos desses flagrantes foram mais tarde tema de quadros, mas eles guardam em si mesmo a qualidade própria do desenho, que os mantém como expressão acabada. Esta mostra abreviada de 25 anos de desenho, de Marcier, é também uma biografia sincera do pintor. Vemo-lo, em 1937, torturado e exprimindo a sua reação subjetiva em face da Europa ameaçada.
Daí até 1939, a sua fúria se acirra, e o desenho é menos expressão em si mesmo que instrumento de protesto. Mais tarde, em 1947, já em Minas Gerais, ele reencontra o mundo e a linha livre do desenhista já comenta um mundo estável. Daí para a frente, ela é cada vez mais livre, mais espontânea, mais objetiva, até alcançar a precisão e o ritmo claro dos seus últimos trabalhos. 4
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4 Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1961.
Ao ler o artigo sobre Marcier, muitas lembranças vieram me visitar, neste feriado do Dia do Trabalho, Trabalhador e Trabalhadora. Creio que a Arte é o mais antigo conhecimento sistematizado pela humanidade, sendo a mãe das línguas e de todos os demais registros da inteligência humana. Quando um desenho sintetiza a narrativa, o olhar e a presença humana, nos devolve o que tem de mais precioso: o conhecimento da experiência humana. Quando eu li Ledo Ivo, há mais de quarenta anos atrás, lembro-me de ficar encantada com aquelas ilustrações… sem conhecer a origem, a identidade e a vida de seu autor. Gilfrancisco me trouxe, neste feriado, uma experiência surpreendente. Isto somente é possível, pois o pesquisador documentalista, em seu fazer constante, compatilha conosco esta história de vida, este achado, este cidadão que veio do leste europeu para nos encantar com a sua arte.