GILFRANCISCO [*]
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– Um ser humano de grande carisma e visão, para quem a arte representava parte essencial da vida. Sua obra estética e vida se unificaram como expressão do amor à sua gente e à sua arte –
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No início dos anos 70 (1973), o Brasil conheceu um grupo vocal diferente “Secos & Molhados”. O visual era colorido e espalhafatoso. As músicas falavam de lobisomem e de Hiroshima. O conjunto, liderado por Ney Matogrosso alcançou o sucesso com o LP de estreia lançado pela Continental e entre as faixas estava “Mulher Barriguda”, poema de Solano, musicado por um dos integrantes, João Ricardo. No dia 5 de agosto, a TV Globo exibia pela primeira vez o Fantástico, o show da vida, onde lançaram o grupo, de visual andrógino, a maquiagem agressiva, a expressão sensual do corpo e a surpreendente voz de contralto de Ney Matogrosso projetaram Os Secos & Molhados como a grande novidade pop do começo da década. No ano seguinte, LP gravado ao vivo no Maracanãzinho pela Continental, nova regravação de Mulher Barriguda. Desfeito o grupo em 1974 após lançamento do seu segundo LP em estúdio, Ney Matogrosso segue carreira solo e grava o LP Seu Tipo em 1979 e inclui outro poema de Solano Trindade “Tem Gente com Fome”, musicado por João Ricardo:
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.
//
Estação de Caxias
de novo a correr
de novo a dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.
//
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar.
//
Só nas estações
quando vai parando
começa a dizer
tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer.
Negro, pobre e democrata, homem que tinha nas entranhas uma vontade indomável de valorizar o negro brasileiro, através da autoafirmação consciente, sempre carregou na pele negra as motivações de sua luta. Expressou este sentimento em poemas do mais alto nível poético, como “Tem gente com Fome”, onde cantou os sofrimentos das populações suburbanas do Rio de Janeiro e seus irmãos negros.
Poeta, cineasta, pintor, teatrólogo e sobretudo, militante cultural Francisco Solano Trindade, nasceu em 24 de julho de 1908 no Recife, no Bairro de São José, filho de Manuel Abílio, sapateiro e da quituteira Merença (Emerenciana), fez estudos no Liceu de Artes e Ofício e depois o curso propedêutico da Academia de Comércio de Recife, foi operário e funcionário público federal, no início de sua carreira (Serviço Nacional de Recrutamento). Sua carreira como militante inicia-se, de fato, a partir de 1930, quando começa a compor poemas afro-brasileiros e, já integrado nesta corrente, participara em 1934 do I e II Congresso Afro-Brasileiro, no Recife e Salvador. Em 1936, Solano funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro, que tinha o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. Em 10 de agosto, nasce no Recife sua filha Raquel Trindade.
Sem crença religiosa até conhecer sua primeira esposa, Margarida, levou-o a Igreja Presbiteriana, chegando ao posto de diácono, mas abdicou da vida cristã ao perceber que a instituição religiosa não se preocupava com as dificuldades enfrentadas pelos negros, nem com os problemas sociais. Residindo no Rio de Janeiro em meados da década de 40, filia-se ao Partido Comunista, sendo preso por duas vezes pelos militares do Estado Novo. No final da vida, desligou-se do Partido, mas continuou socialista.
Em 1940 transfere-se para Belo Horizonte, depois chega ao Rio Grande do Sul, fixando-se por um tempo em Pelotas, onde funda com o poeta Balduino de Oliveira um grupo de arte popular. Esta foi sua primeira tentativa de criar um teatro do povo, o que não se concretizou devida à enchente de 1941, que carregou todo o material. Retornando a Recife seguindo depois para o Rio de Janeiro, passou a discutir e a conversar com jovens poetas e intelectuais, artista de teatro, políticos e jornalistas, sobre seus projetos. Em 1944 publica um pequeno volume “Poemas d uma vida simples”, onde trazia uma poesia despretensiosa, de protesto resignado e de denúncia das injustiças e dos preconceitos raciais e sociais, onde o poeta não se cansa, utiliza várias maneiras de afirmar a sua posição de negro:
Sou Negro
meus avós fora queimados
pelo Sol da África
minha alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongês, agogôs
(…)
Na minha alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação…
Um ano depois, Solano funda o Comitê Democrático Afro-Brasileiro, com o escritor sergipano Raimundo Souza Dantas, Aladir Custódio, Abdias Nascimentos e Corsino de Brito. Em 1954 encontra-se em São Paulo, criando na cidade de Embu, um pólo de cultura e tradições afro-americanas e na capital paulista funda com o escritor e jornalista baiano, Edison Carneiro o Teatro Popular Brasileiro – TPB, onde desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo, fazia uma leitura séria de danças como maracatu e bumba meu boi. Em 1955 viaja para a Europa com o TPB. Em 1958 edita mais um livro “Seis Tempos de Poesia”, um ano depois, enquanto a companhia “Grupo dos Novos” estava no exterior, Solano Trindade desligou-se por discordar da linha que estava sendo assumida pelo grupo, núcleo idealizado por ele.
Em 1961, publica “Cantares ao meu povo”, reunião de poemas anteriores. Em 1974, no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro, morria o poeta negro Solano Trindade. Um ano depois, a escritora e artista plástica Raquel Trindade, em homenagem ao seu pai, cria no Embu das Artes, o Teatro Popular Solano Trindade. Em 1965 participa do elenco do filme A Hora e a vez de Augusto Matraga, longa-metragem baseado no conto homônimo de João Guimarães Rosa, dirigido por Roberto Santos. No ano seguinte trabalha no filme O Santo Milagroso, dirigido por Carlos Coimbra.
Em 1998 a Revista da Literatura Brasileira – LB, nº.12, editada pelo saudoso poeta e contista sergipano, Aluysio Mendonça Sampaio prestou homenagem ao poeta negro e popular Solano Trindade, com um texto de Clovis Moura “Revisitando a memória de Solano Trindade”. Sua morte não teve repercussão na imprensa. Registraria aqui, o texto de Clóvis Moura publicado no Jornal Debates, de São Paulo. Repetindo as palavras de Clóvis ditas em 1974, o seu nome, a sua obra e o seu comportamento humano estão praticamente esquecidos. Solano Trindade faleceu aos 66 anos, no Rio de Janeiro, em 19 de fevereiro de 1974, para onde voltou já doente. Foi sepultado no Cemitério de Pechincha, em Jacarepaguá.
Em 2008 passou em branco o Centenário do poeta ativista Solano Trindade a grande mídia ignorou deliberadamente este fato, deixando de homenagear um combatente das elites e governos opressores. Algumas homenagens esparsas e dois livros publicados pela Editora Nova Alexandria, Poemas antológicos de Solano Trindade e Tem gente com fome, e nada mais.
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[*] É jornalista e professor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
Que linda e sofrida a história de vida do poeta ativista Solano Trindade. Parabéns Gil Francisco por dar a conhecer através das pesquisas a história biográfica deste poeta.