Por GILFRANCISCO
[É jornalista e funcionário do TCE/SE. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com]
O livro Bernardino José de Souza vida & obra, EDISE, 2019, 518 páginas, edição do Cinquentenário do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe (1970-2020) retrata uma das mais destacadas individualidades da Bahia, apesar de ter nascido em Vila Cristina, atual Cristinapólis (Sergipe). O livro reúne artigos, discursos, depoimentos, editoriais da revista da Faculdade de Direito da Bahia, relatórios, textos jurídicos e históricos esparsos do homenageado publicados em vários periódicos; vinte e três textos sobre a obra de Bernardino de Souza escritos por professores, juristas jornalistas, escritores e amigos.
Além do prefácio do Conselheiro do TCE-SE, Carlos Pinna de Assis, foi possível reunir na Apresentação novos depoimentos como: Aroldo Cedraz de Oliveira (Ministro do Tribunal de Contas da União); Ulices de Andrade Filho (Presidente do TCE-SE); Gildásio Penedo Filho (Conselheiro-presidente do TCE-BA); Plínio Carneiro da Silva Filho (Conselheiro-presidente do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia) e Luiz Augusto Carvalho Ribeiro (Atual Presidente do TCE-SE).
Vejamos um desses textos:
A amada Salvador de Bernardino de Souza
Plínio Carneiro da Silva Filho [*]
Uma singela, bela e velha urbe colonial era a Cidade do Salvador da Bahia de todos os santos que Bernardino José de Souza conheceu quando aqui chegou, aos 10 anos de idade, após uma longa e cansativa viagem de mais de 200 quilômetros – de carro de boi ou no lombo de cavalo – desde o engenho Murta, situado na antiga Vila Cristina, em Sergipe, na divisa então com o município de Barracão, na Bahia, onde nasceu, em 1884. E é certo que por ela se encantou. Só a deixou 40 anos depois, em 1934, quando assumiu o cargo de juiz da Câmara de Reajustamento Econômico, no Rio de Janeiro, então capital da República.
Que nos perdoem os sergipanos, mas foi aqui onde ele se instruiu, disseminou cultura e construiu sua história. Bernardino de Souza nasceu em terras sergipanas, mas foi registrado como filho da Bahia e assim se apresentava na maturidade. Era de família abastada, da aristocracia rural do Império, cujos antepassados estão entre os portugueses pioneiros no Brasil, os desbravadores, os empreendedores que fizeram fortuna com a produção de açúcar.
Por isso, ao se instalar em Salvador, passou a estudar na mais tradicional escola da cidade, o Ginásio Carneiro Ribeiro, então situado num belíssimo solar – demolido pela incúria de governantes nos anos 1970 -, na Ladeira da Soledade. Por seus bancos escolares passaram figuras como Ruy Barbosa, Euclides da Cunha, Rodrigues Lima, J.J. Seabra, enfim, toda uma geração que dominou a cultura, as letras na Bahia do final do século XIX a meados do século XX.
Bernardino de Souza homenageou o mestre Carneiro Ribeiro, tido como o “decano dos educadores da Bahia”, um ano após a sua morte, aos 81 anos de idade, com um belo artigo publicado em 1921 na revista Bahia Ilustrada. Médico, linguista e educador, Carneiro Ribeiro ficou conhecido nacionalmente pela polêmica que travou com Ruy Barbosa sobre o Projeto de Código Civil, que ele revisou e deu forma num prazo de quatro dias, a pedido de J.J. Seabra, seu aliado político que depois governou o estado.
A Salvador que Bernardino de Souza conheceu, ao chegar de Sergipe, era uma cidade ainda colonial de seus 200 mil habitantes, com ruas calmas e frescas, iluminadas pela lua e pelas estrelas, a despeito dos lampiões de gás. E cheia de casarões que seriam demolidos poucas décadas depois. Mas as mudanças já se insinuavam. A cidade já contava, na passagem de um século para outro, segundo o antropólogo Antônio Risério, com meios de transporte coletivo e individual que devem ter impressionado o jovem estudante de origem rural: bondes elétricos, ônibus, os primeiros automóveis. Por volta de 1900, a energia elétrica – que tinha chegado três anos antes para movimentar os bondes – começou a iluminar ruas, repartições públicas e casas particulares.
Foi quando Bernardino de Souza concluiu os estudos preparatórios com Carneiro Ribeiro e ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, onde se diplomou após quatro anos de estudos. Mas a paixão, a dedicação à Geografia ele revelou ainda nas salas de aula do colégio, onde passou a lecionar a disciplina e a criar uma legião de admiradores. Uma das jovens que ficavam embevecidas com a sua inteligência, Maria Olívia, filha do velho professor Carneiro Ribeiro, por ele se apaixonou, e os dois se casaram em 1905.
Naquele ano, ele fez uma primeira incursão na política e foi eleito deputado estadual em duas legislaturas, de dois anos cada. O sucesso veio com o estímulo e os votos angariados pelos amigos Severino Vieira, que exercia o cargo de governador da Bahia, e J.J. Seabra, à época político já com notoriedade nacional, que anos depois assumiu o governo e se tornou um dos maiores chefes políticos baianos. Bernardino ingressou na política sem descuidar da carreira no magistério, que se consolidou quando passou a dar aulas na Escola de Direito da Bahia sobre a História Universal, História do Brasil e em cursos sobre Direito Internacional Público.
O ápice como preceptor, no entanto, só foi alcançado quase uma década depois, quando submeteu-se a concurso e foi nomeado “professor catedrático” do Ginásio da Bahia – posição que o tornava uma celebridade na vida cultural de Salvador e merecedor de todas as deferências. Posição mais importante, à época, até mesmo do que de muitos professores de cursos superiores. Em duas oportunidades, assumiu o comando do ginásio, que dirigiu por seis anos, no total. O Ginásio da Bahia, hoje Colégio Central, até a década de 1960 foi responsável pela formação de gerações e gerações de intelectuais baianos. Nas últimas dignas de registro, estavam o cineasta Glauber Rocha, os poetas Florisvaldo Mattos, Fernando Peres, João Carlos Teixeira Gomes, artistas plásticos como Calazans Neto, entre outros. Até hoje, em uma de suas salas de aula, há uma placa nomeando-a “Sala Bernardino José de Souza”, mas poucos dos atuais alunos conhecem a trajetória intelectual do homenageado. Uns poucos sabem que foi um “antigo diretor da escola”.
No final da década de 1920, Bernardino de Souza rompeu relações com o Partido Republicano da Bahia e com os chefes políticos do estado, como J.J. Seabra, Octávio Mangabeira, Ernesto Simões Filho, entre outros, que dominavam a Bahia e se revezavam no poder. Ele passou a comungar os ideais liberais dos jovens tenentes que se uniram para derrubar a República Velha e o presidente Washington Luís no episódio que passou à História como Revolução de 30, levando ao poder o caudilho gaúcho Getúlio Vargas.
Na Bahia, o ano de 1931, primeiro da nova ordem, foi marcado pela agitação política e a queda sucessiva dos interventores estaduais nomeados por Vargas, que não resistiam à pressão política comandada por J.J. Seabra – que havia apoiado o líder gaúcho, mas foi alijado do poder. O primeiro interventor foi Leopoldo Amaral, que ficou no cargo por três meses. Nomeado em seu lugar, Artur Neiva – médico, cientista e etnógrafo de 50 anos – era um nome respeitado no meio intelectual baiano. Ele foi indicado a Getúlio Vargas para ser o governante da Bahia pelo amigo tenente João Alberto, então interventor no estado de São Paulo. Era também um grande amigo de Bernardino José de Souza.
E para compor o seu governo, Artur Neiva convidou Bernardino para ocupar a mais importante secretaria, a do Interior e Justiça da Bahia. Bernardino assumiu cheio de planos, mas evidentemente nada pode realizar, pois Neiva foi afastado do posto em quatro meses e só entrou para a história administrativa do estado porque teve a ideia de fazer o Instituto do Cacau. Ele foi sucedido por Raimundo Barbosa, que durou cinco meses, até a chegada do tenente cearense Juracy Magalhães, de 26 anos, que enfrentou e derrotou os velhos coronéis da política baiana e ficou no poder até 1937. Isto porque não se constrangeu em utilizar toda a sua força na briga com os velhos políticos: Simões Filho, dono do, à época, poderoso jornal A Tarde – que fazia campanha contra o ‘forasteiro’ Juracy -, por exemplo, levou uma surra que entrou para os anais da história.
A amizade de Bernardino José de Souza com Artur Neiva e – por seu intermédio – com o interventor paulista, tenente João Alberto, e outros ‘revolucionários’, no entanto, continuou a render frutos. E em 1934 Bernardino deixou a sua amada Salvador e se estabeleceu na capital da República, o Rio de Janeiro, nomeado por Getúlio Vargas para o cargo de juiz da Câmara de Reajustamento Econômico.
E logo foi guindado à presidência do órgão. Passou a conviver no Rio com pessoas poderosas na República e assim fez amigos personalidades influentes no Palácio do Catete. Com o advento do Estado Novo, foi então indicado ao ditador Getúlio Vargas e nomeado para o cargo de ministro do Tribunal de Contas da União.
Chegou até a assumir a presidência do TCU, mas seus olhos sempre estiveram voltados para o estudo da Geografia e para a elaboração de trabalhos científicos. Em 1938, concluiu um dos seus principais livros, O Pau Brasil na História Nacional, cuja tese apresentou em um congresso realizado em 1938. E muitos outros se seguiram, ampliando ainda mais sua vasta obra intelectual e científica, até a sua morte, em 1949.
Não é preciso aqui destacar a importância de Bernardino José de Souza no estudo da Geografia no país e sua vasta produção científica a respeito. Nem lembrar o aspecto inovador da sua iniciativa no 5º Congresso Brasileiro de Geografia, realizado em Salvador, presidido pelo cientista e engenheiro Theodoro Sampaio, de pedir aos prefeitos baianos que providenciassem monografias descritivas sobre seus municípios (23 deles atenderam) e que serviram para orientar o planejamento das ações governamentais, a partir do entendimento sobre a influência do meio ambiente no desenvolvimento econômico e social das diversas regiões do estado, e dos desafios que precisavam ser enfrentados. Autor de Ciclo do Carro de Bois no Brasil, Bernardino José de Souza, que em erudição superou mestres europeus que trabalharam em temas semelhantes, realizou um “trabalho de gigante”, no dizer do historiador Waldir de Oliveira.
Em Salvador, que o recebeu no ano de 1894, após longa viagem desde Sergipe – certamente num carro de boi, que tanto o encantou –, Bernardino José de Souza será sempre lembrado. Não pelos que veem uma placa na porta de uma sala de aula no Colégio Central da Bahia, que ele dirigiu. Mas por todos que pousam os olhos no imponente prédio, projetado pelo engenheiro Theodoro Sampaio, na Praça da Piedade, no Centro da cidade, que é sede do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Ele foi idealizado por Bernardino de Souza, que percorreu o Brasil em busca de recursos para a sua construção. Centro de estudos e pesquisas em Geografia importante até o final dos anos de 1940, o IGHB tem hoje, entre seus sócios, a nata da intelectualidade da Bahia.
[*] É conselheiro-presidente do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia
Deixar Um Comentário