Jeová Santana [*]
Na privilegiada condição de formador de professores, há certos textos que formam espécie de cânone particular. Ou seja, são apresentados anualmente a cada nova turma. No momento, faço isso como profissional de Letras no âmbito da Universidade Estadual de Alagoas em União dos Palmares. Há alguns anos, cheguei a dividir alguns dos textos com os alunos do ensino médio. São boas as lembranças.
É claro que a recolha desse tipo de experiência está aberta a novos escritos. Dela faz parte um de Lygia Fagundes Telles que, no findo mês de abril, chegou aos longevos 95 anos. O texto intitula-se “O direito de não amar”. Integra A disciplina do amor (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980). Este exemplar está autografado e acompanhado de uma cartinha datilografada. Trata-se de narrativas breves, nas quais a autora retrata o vivido por meio de fragmentos. Estes são timbrados ora por títulos, ora por datas. Estas nos remetem à antiga forma do diário. Esse percurso pela memória, contudo, também pode ser visto como esboços de ficção.
O fragmento escolhido toca em um tema premente em nosso tempo: a violência que petrifica os amores não iniciados ou findos após algum tempo de partilha. Os noticiários estão repletos desse tipo de relato. A Gazeta de Alagoas, por exemplo, trouxe em sua edição de 13 de abril (caderno A12. Cidades), a notícia de dois casos no mesmo dia, com diferença de horas e quilômetros. De manhã, em Arapiraca, Sineide Pereira Campos, 48, agente de endemias, morta supostamente a mando do ex-marido, quando ia tomar o café da manhã com os pais. Ela namorava, segundo a matéria, um amigo do ex. À tarde, em Maceió, Faustino Vieira Filho, produtor musical, 27, morto pelo ex-marido da namorada.
O texto de Lygia Fagundes abre com a referência a uma das frases profundas do escritor Oscar Wilde (1854-1900): “Todo homem mata o Amor”. Tal pensamento resultou do turbulento caso de amor entre Wilde e o também escritor Alfred Douglas (1870-1945), fato que levou um desafeto a detonar a honra e levar à prisão o autor de O retrato de Dorian Gray. Dessa trágica experiência, Wilde cunhou outra frase antológica: “O amor que não ousa dizer seu nome.” Se hoje ainda são duras as condições para os que têm uma relação homoafetiva, imagine-se na imperialista Era Vitoriana. Felizmente, não são somente pelos escaninhos da sombra e da vergonha que os pares dessa conduta trilham seus passos.
No tocante à questão dos amores contrariados, Lygia Fagundes lembra-nos que existem três direções: a primeira é a mais trágica: “‘Nem comigo nem com ninguém!’ Deste raciocínio para o tiro, veneno ou faca, vai um fio’’’ (p. 118). Na segunda, o rejeitado nutre-se de desejos negativos: “a pior das vinganças é não matar, mas desejar o objeto amado viver” (p.118). Nessa perspectiva, torce-se para que o casamento do outro seja um fracasso, que lhe nasça “um filho debiloide”, que sofra com as variações corporais: “vai ficar gorda, tem propensão para engordar” (p. 119).
A terceira saída é a mais nobre e a mais difícil: renunciar. Nem matar, nem desejar o pior, mas “simplesmente renunciar com o coração limpo de mágoa ou rancor, tão limpo que em meio ao maior abandono (difícil, hem!) ainda tenha forças para se voltar na direção da amada como um girassol na despedida do crepúsculo. E desejar que ao menos ela seja feliz” (p.119). As palavras são poéticas e alentadoras. Para vê-las no cotidiano, no entanto, precisaríamos passar por uma revolução cultural. Aos que ficaram para lutar pela memória de quem se foi em tais circunstâncias, só resta o verso do samba “Notícia de jornal” (1961), de Luís Reis e Haroldo Barbosa: “A dor da gente não sai no jornal”.
[*] É Mestre em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP, professor da Universidade de Alagoas, escritor e autor de diversos livros – Dentro da Casca (1993), A Ossatura (2002), Inventário de Ranhuras (2006), Poemas Passageiros (2011), entre outros títulos.
Foto: Denilma Diniz Botelho
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