Antonio Carlos Valadares [ * ]
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, Constituição Federal.
Neste momento de intensa degradação moral que atinge parte da elite política brasileira, nada mais oportuno que a aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de minha autoria de adoção do chamado recall para presidente da República. O instrumento prevê a possibilidade de o eleitor destituir o governante antes do término do mandato em caso de perda de representatividade.
Nos últimos 14 anos, muitos foram os parlamentares que propuseram, sem sucesso, o debate acerca de mecanismos para propiciar ao povo, real detentor do poder, maior protagonismo no papel fiscalizatório da conduta de seus representantes. Eu mesmo já havia apresentado PEC similar em 2003, mas ela acabou sendo arquivada sem a devida apreciação. Reapresentei em 2015. Enfim, chega o momento de enfrentar o tema.
A proposta constitui, sem dúvida, uma relevante interface da necessária reforma política. Com efeito, propomos nova ferramenta de manifestação da vontade da nação, que vem se somar ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular, já previstos na nossa Carta Magna.
A revogação de mandato do presidente, tal como proposto, difere do impeachment, porque não está necessariamente relacionada à comprovação de crime de responsabilidade. No recall, a destituição está associada à frustração inequívoca dos eleitores diante de governantes que ao longo do mandato se revelam ineficientes, desonestos, irresponsáveis quanto aos compromissos de campanha.
Como se vê, reforça-se a necessidade da responsabilidade contínua da autoridade pública, depositária que é da confiança do eleitor, capaz de romper o “contrato” consagrado nas urnas. Ao tempo em que se eleva a qualidade da democracia, ao estimular o sufragista a acompanhar com maior atenção o comportamento do governante.
É como se diz: quem com voto elege, com o voto também deve poder destituir. Neste sentido, o recall é remédio legítimo, sobretudo se adotado não de forma banalizada, mas mediante regras claras, que impeçam seu desvirtuamento. Essas salvaguardas foram inseridas com maestria pelo entusiasta da matéria e relator da proposta, o senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), em seu substitutivo.
Para ser aceito, o instrumento de recall deverá passar por algumas fases. Inicialmente, para o mandato presidencial ser colocado em questionamento, será preciso que a sociedade se organize de forma a encaminhar ao Congresso proposta subscrita por eleitores em número não inferior a um décimo dos que compareceram à última eleição presidencial, eleitores esses distribuídos em pelo menos 14 estados, cada um deles com não menos de 5% dos votantes naquele pleito.
Recebida, a iniciativa será apreciada primeiro pela Câmara dos Deputados e, em seguida, pelo Senado Federal. Somente será considerada aprovada com o voto favorável da maioria absoluta nas duas Casas.
A partir daí, caberá a fundamental consulta ao povo, por meio da realização de um referendo, que é um instituto de democracia participativa prevista na Carta Magna. Esse referendo será, naturalmente, organizado e fiscalizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. Aceita a revogação do mandato presidencial pelo voto direto, opera-se, então, a vacância no cargo de presidente, o qual deverá ser sucedido pelo vice-presidente.
Esse sistema representa uma solução de equilíbrio entre a concretização do princípio da soberania popular e a responsabilidade, que evita o risco de utilização do dispositivo como mero objeto de promoção de instabilidade política ou mesmo o seu uso para o que chamamos de “terceiro turno” por parte dos inconformados com o resultado eleitoral.
Vedou-se a revogação durante o primeiro e o último ano do mandato do governo e mais de uma proposta de revogação por mandato. Ademais, caso adotado, o recall passaria a vigorar em 2019.
A formulação da proposta que passa à discussão no plenário do Senado baseou-se em métodos históricos e comparativos, com o intuito de analisar o instituto do recall, outros instrumentos consubstanciados no controle sobre mandatos eletivos existentes no mundo e a sua compatibilidade com a nossa Constituição Federal.
Nos Estados Unidos, o mecanismo de remoção de autoridades em nível estadual surgiu, pela primeira vez, em 1911, na Califórnia. Desde então, quatro governadores foram removidos por meio do recall.
Entendo ser questão de tempo e de amadurecimento da prática democrática a inclusão do instrumento em todos os níveis de governo e da representação política. A proposta acerta em, neste momento, restringir a possibilidade de recall. A PEC original era ampla, ao abranger Estados e municípios, executivo e legislativo. A CCJ optou pelo caminho mais moderado, apenas para o mandato presidencial, preocupada com a manutenção da estabilidade institucional.
Mas, desde já, incluímos a possibilidade de que Estados e Distrito Federal prevejam o recall de governadores em suas Constituições e Leis Orgânicas. A PEC ainda precisa ser aprovada pelo plenário do Senado e pela Câmara por três quintos dos membros de cada Casa.
Enfim, com a crise de representatividade e política pela qual passa o Brasil há mais de dois anos, com o distanciamento de eleitos e eleitores, com escândalos de corrupção sendo amplamente divulgados, com a crise econômica e o descrédito da sociedade, o direito de revogação do mandato busca trazer o cidadão para o centro da democracia participativa ou semidireta, aperfeiçoando o nosso Estado Democrático de Direito para o futuro próximo.
[*] É senador – PSB-SE
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