Silvaney Silva Santos (*)
“Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que para rejeitá-lo. O passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e outros padrões de sociedade humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza desse ‘sentido do passado’ na sociedade e localizar suas mudanças e transformações” (Hobsbawm, 2013, p. 25).
“A crença de que a ‘sociedade tradicional’ seja estática e imutável é um mito da ciência social vulgar. Não obstante, até um certo ponto de mudança, ela pode permanecer ‘tradicional’: o molde do passado continua a modelar o presente, ou assim se imagina” (Hobsbawm, 2013, p. 29).
“[…] o que agora legitima o presente e o explica não é o passado como conjunto de pontos de referência […] ou mesmo como duração […], mas o passado como um processo de tornar-se presente” (Hobsbawm, 2013, p. 36).
Ancorados nas reflexões do historiador Eric Hobsbawm, reafirmamos as ressignificações do passado diante do “presentismo” em que vivemos. Resquícios deste passado em nosso presente apresenta-se como um retrovisor para reconstrução das nossas identidades. Ele é e continuará sendo um “modelador deste presente”, considerando os seus “sentidos”.
Nesta perspectiva, a Ladainha de Santo Antônio, do Povoado Sapé, do Município de Santo Amaro das Brotas-SE, cantada em latim, é um patrimônio imaterial religioso que se manteve vivo de geração a geração. Esta constitui-se uma singularidade salvaguardada como parte de uma herança histórica e cultural da presença da cristandade em terras brasileiras, sergipanas e santoamarenses desde o processo de colonização da América Portuguesa.
A referida Ladainha cantada em Latim, em louvor a Santo Antônio, foi registrada através do Projeto de Lei de número 015/2022, “como patrimônio cultural e imaterial do município de Santo Amaro das Brotas, SE”. Outra ação, com o objetivo de salvaguardar a Ladainha em Latim de Santo Antônio do Povoado Sapé, do Município de Santo Amaro das Brotas, foi realizada por meio da Lei Paulo Gustavo, lei de incentivo à cultura, gestada pelo municipalidade através da Secretaria de Cultura, Juventude e Turismo. O projeto “Entre Cantos e Memórias: Documentando a Ladainha em Latim de Santo Antônio do Povoado Sapé”, foi contemplado pelo edital de chamamento público nº 01/2023 – audiovisual, com recursos da lei complementar nº 195/2022.
Ao longo de séculos a devoção a Santo Antônio ganhou sentidos diversos. Conforme o texto, “Santo Antônio, o divino capitão do mato”, Santo Antônio, hoje popularizado como o santo casamenteiro, outrora servia para capturar escravizados fugidos dos seus “donos” (Mott, 2012, p. 123). Segundo o autor, a “sua principal ladainha do século XVII resume alguns de seus carismas” e não vincula a sua imagem ao casamento: “Filho de Serafim, Gadelha de Portugal, Luz da Itália, Glória de Pádua, Resplendor da França, Admiração da Espanha, Arca do Testamento, Martelo dos Hereges, Trono de Deus, Maravilha dos Anjos, Assombro do Inferno, Sol de todo Mundo” (Mott, 2012, p. 124).
Sobre a origem de Santo Antônio, “nasceu em Lisboa” em 15 de agosto de 1195, filho dos Bulhões, do lado paterno e Taveira, do lado materno. Faleceu com apenas 36 anos de idade, em 13 de junho de 1231 e foi canonizado por Roma em menos de um ano após a sua morte (Mott, 2012, p. 125-126).
O texto de Luiz Mott, é revelador quanto ao uso da imagem de Santo Antônio para encontrar escravizados fugidos em Sergipe no século XVIII. Registrado pelo frei Antônio de Santa Maria Jaboatão em seu Novo Orbe Seráfico (1761), compilamos trechos deste para percebemos o sentido deste uso na história:
“Não deixaremos de repetir um milagre de nosso Santo Antônio também em benefício dos seus devotos. Fugiu ao coronel Domingos Dias Coelho, morador nos distritos da cidade de Sergipe del Rei, um preto, escravo seu, levando em sua companhia duas pretas, escravas também de outros senhores. […] Valeu-se o senhor do escravo, depois de outras diligências sem efeito, de Santo Antônio. […]. Veio enfim o negro, e o frade adiante dele, até a casa do homem de quem era uma das pretas, que entregou. E detendo-se ali algum tempo, foi aviso ao capitão do campo, que o prendeu e entregou ao seu senhor, como também a outra negra, a quem pertencia, fazendo Santo Antônio esse benefício ao seu devoto, e sendo também a causa de se livrarem as almas destes miseráveis escravos das contínuas culpas em que caíam” (Mott, 2012, p. 142).
Podemos afirmar que o nosso presente, a partir do processo histórico e as suas continuidades e descontinuidades, mudanças e permanências, foi sendo ressignificado. Contudo, é no passado que buscamos as referências para compreensão e leitura do mundo contemporâneo. Neste sentido, o patrimônio cultural imaterial é uma destas marcas, que mesmo com as suas transformações, os costumes e as crenças da comunidade permanecem, por ser indesejável por esta comunidade a sua total transformação. Abaixo, a Ladainha em Latim de Santo Antônio do Povoado Sapé, do município de Santo Amaro das Brotas-SE. Percebe-se algumas semelhanças com a “principal ladainha de Santo Antônio do século XVII”:
Ladainha
Kirié Eleison
Kirié Eleison
Kirié Eleison
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Kirister exaudinos
Kirister exaudinos
Pater der elis Deus
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Filho redentor mondi Deus
Espírito Santo é Deus
Santa trinitas somos Deus
Santo Antônio (orai, orai por no bis)
Santo português
Fiel nacional
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Defensor da pátria
Esplendor da Europa
Brasão da Lusitânia
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Estrela da Espanha
Luz da Itália
Antônio adorado
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Honra dos menores
Amado de Deus
Querido dos homens
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Abrigo da inocência
Varão Angélico
Varão inocente
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Varão continente
Varão penitente
Varão milagroso
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Varão Apostólico
Antônio Bendito
Coluna da igreja
Zelador da lei
Vaso de eleição
Oráculo do céu
Martiri do desejo
Zelador da gente
Antônio Sagrado
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Assombro do demônio
Terror do inferno
Fragelo dos vícios
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Martirio das virtudes
Doutor evangélico
Martelo dos ereges
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Áurea do testamento
Antônio glorioso
Retrato de todos os santos
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Agnus dei qui tolis pecata mundi
Qui tolis pecata mundi
Pacerno bis dominé
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Agnus dei qui tolis pecata mundi
Qui tolis pecata mundi
Exaudi nos dominé
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Agnus dei qui tolis pecata mundi
Qui tolis pecata mundi
Misereno bis
Concluindo, a Ladainha em Latim de Santo Antônio do Povoado Sapé, do Município de Santo Amaro das Brotas-SE, constitui-se em um patrimônio cultural imaterial identitário da comunidade. Logo, faz-se necessário, em tempos de negacionismos, se valorizar, fortalecer e manter vida a nossa memória e história, com os seus “sentidos”, “ressignificações”…
Referências:
Câmara Municipal de Santo Amaro das Brotas. Projeto de Lei de Número: 015/2022.
Os sabores de Santo Amaro das Brotas. Fundação de Cultura e Arte Aperipê. Disponível em: https://youtu.be/euXfqH64I38?si=KwHboS1srFj5M3nE. Acesso em: 10 nov. 2023.
MOTT, Luiz. Santo Antônio, o divino capitão do mato. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
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(*) É Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador. Pedagogo. Bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal de Sergipe. Autor do livro “Santo Amaro das Brotas, do histórico ao lúdico (Séc. XX), 2017. Professor do Sistema Estadual de Educação e do Sistema Municipal de Educação de Santo Amaro das Brotas.
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