Prof. Dr. Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História

Universidade Federal de Sergipe

O encontro com Raimundo Eliete Cavalcante nos anos 1980, na cidade de Poço Redondo (SE), instigou-me, como um jovem estudante de história de Brasília, a conversar com velhos moradores dos sertões sergipanos sobre variados temas regionais. Nascido em Jucás (CE), em 20 de agosto de 1943, sua atuação é muito próxima daquilo que o revolucionário Antônio Gramsci chamou de “intelectual orgânico”. Ao longo de sua vida, não tergiversou, nem transigiu na organicidade de sua militância pela transformação social no Brasil, empregando o “ottimismo della volontá” com o “pessimismo dell’intelligenza” no sentido de que “o conhecimento motiva a ação” (BOSI, 1988: p. 244).

Após concluir o curso de geografia, Raimundo Cavalcante deixou a vida universitária e urbana de Fortaleza para atuar na Diocese de Crateús (CE), com Dom Antônio Batista Fragoso, no início dos anos 1970. Após essa experiência, ele, em 1975, integrou-se, em Porto da Folha (SE), a um grupo de missionários e leigos, que, sob a liderança espiritual corajosa de Dom José Brandão de Castro, Bispo de Propriá, desenvolveu intensa mobilização social, articulando as Comunidades Eclesiais de Base e do Movimento Popular com as atividades paroquiais e diocesanas. Como registrou Frei Roberto Eufrásio de Oliveira, em “Fortaleza ele estava mais à vista do Serviço Nacional de Informação da ditadura militar. (…) Sua colaboração foi, sobretudo, na organização dos trabalhadores, na assessoria sindical” (2007: p. 51)

O cultivo da memória na ação evangelizadora dos dominados marcou o compromisso social e político desse grupo, com os trabalhadores rurais, índios e quilombolas da região. Segundo o citado Frei Roberto, “Desde o início de nossa missão no sertão de Sergipe, nos interessamos pelo conhecimento da história da região e de cada localidade, de cada cidade e povoado na região do Baixo São Francisco” (OLIVEIRA, 2007: p. 33). Representativas desse processo foram as lutas pela conquista da terra dos índios Xocó na Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha (1978), e a ocupação da Fazenda Barra da Onça, em Poço Redondo (1985), que Raimundo Cavalcante participou ativamente.

A militância nos movimentos sociais do campo, como a participação no Congresso de fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra e a ocupação da Fazenda Barra da Onça (1985), fez com que o geógrafo cearense se afastasse da atuação no campo da Pastoral da Diocese de Propriá para dedicar-se a organização do MST e do Polo Sindical do Baixo São Francisco.

Nos anos 1980, o compromisso com a história local o levou à produção de mapas temáticos e cartilhas voltadas para a temática do sertão, em especial a história do cangaço. Essa preocupação reverberaria nas suas palestras pelas escolas do município, que, depois, se desdobraram na criação do Centro de Cultura Regional Zé de Julião, que produziu peças de teatro e xaxado para crianças e jovens.

No ano do cinquentenário de morte de Lampião, em 1988, organizou I Simpósio Regional sobre o Cangaço, nos dias 26, 27 e 28 de julho, no mercado municipal de Poço Redondo (SE), com palestra de Eliano Sérgio Azevedo Lopes, da Universidade Federal de Sergipe, e mesa redonda com Alcino Alves Costa, Manoel Dionísio da Cruz e Raimundo Eliete Cavalcante. Além disso, foram projetados filmes, ao lado da apresentação de peças de teatro e grupos folclóricos, bem como um “almoço típico à moda cangaceiresca”. O ponto alto foi a inauguração da Praça Virgulino Ferreira da Silva, no dia 28 de julho, após mobilização que resultou no abaixo-assinado encaminhado à Câmara de Vereadores, com 300 assinaturas. Esse lugar de memória local marcou o cinquentenário de morte de Lampião, que ocorrera na Grota do Angico, às margens do rio São Francisco.

Na ocasião, a Carta do Angico, publicada em 27 de julho de 1988, reivindicou o tombamento da Grota de Angico e a proclamação de Poço Redondo como a “capital nacional do cangaço”. Segundo a carta, “A verdadeira História do nosso Povo está a exigir um tratamento condigno à altura da importância de diversos Heróis nacionais, como Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, de Canudos, e Virgualino Ferreira da Silva, o Lampião”.

A memória do cangaço foi aqui mobilizada para conformar a identidade local, mas também para lutar pela reforma agrária, resgatando a rebeldia cangaceira contra o coronelismo do início do século XX, ao lado de outros movimentos como o do quilombo na Serra da Guia e a passagem de Antônio Conselheiro pelo povoado de Curralinho, na tentativa de criar uma “tradição revolucionária” na região.

Essa leitura motivou a participação de Raimundo Cavalcante na Comissão de Símbolos da Romaria do Centenário de 1993, após trabalho desenvolvido nas comunidades indígenas do Ceará, como Tremenbé e Tapeba, durante o V Centenário da Conquista da América, em 1992. Da revisão histórica propugnada no evento, surgiu a ideia de estender este debate para o caso de Canudos, contatando João Arruda, então chefe do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará, e os padres Tiago Santiago Milan e Wilson de Andrade, da Diocese de Paulo Afonso.

Durante o centenário da fundação de Belo Monte, a conexão entre as comunidades de Quixeramobim e Canudos foi estabelecida pela Comissão Pastoral da Terra, que, simbolicamente, concretizou a vinda do tijolo de adobe da casa onde nasceu Antônio Conselheiro à Canudos. Ao mesmo tempo, para recuperar a memória da luta conselheirista, foi criado um boneco de Antônio Conselheiro, confeccionado por Raimundo Cavalcante, e as esculturas de Mestre Tonho e de Lelo, cuja mística voltava-se à natureza do semiárido, com o objetivo de fortalecer a identidade, por meio da valorização da flora e fauna da região de Canudos (CAVALCANTE, 2004).

Como desdobramento da Romaria do Centenário, o Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC) foi criado em uma reunião na cidade de Senhor do Bonfim/BA, em 17 de setembro de 1993, como modo de alimentar “os sonhos de dignidade, igualdade e irmandade, e inspirando a luta do povo sertanejo hoje” (NASCIMENTO, ZORZO e SANTOS, 1993). Nesse ano, o IPMC cria a Coleção Centenário. Raimundo Cavalcante contribuiu, dentro do coletivo, no primeiro volume, Canudos: Uma História de Luta e Resistência, propondo a escrita de uma outra história, popular e que coloque os pobres como protagonistas da história. Inicialmente, a cartilha recupera a trajetória de Antônio Conselheiro, desfazendo a imagem de fanático e criminoso e Belo Monte como projeto de vida das primeiras comunidades cristãs, na prática da justiça e o espírito de partilha.  Daí Belo Monte tornar-se a Meca dos pobres do Nordeste, exemplo de comunidade igualitária. Apesar da implacável ferocidade das Forças republicanas, apoiadas pela hierarquia da Igreja Católica e pelos coronéis da região, Canudos, cem anos depois, ressurgia nas comunidades eclesiais de base e nos movimentos populares: “o sangue derramado em Canudos virou semente de libertação” (INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS, 1993).

Ao longo dos anos 1990, o geógrafo envolveu-se com as atividades do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), de Juazeiro (BA), que integra um trabalho de dimensões religiosa e social com aspectos políticos, econômicos e técnicos, buscando concretizar a ideia de que os próprios membros das comunidades sejam agentes de seu próprio destino (BLOCH, 1997). Desde então, concentrou-se na organização de cursos para a convivência com o semiárido, propondo, inclusive, uma renovação curricular em algumas escolas de Poço Redondo, como em Sítios Novos e Santa Rosa do Ermirio.

Em seus oitenta anos de vida, Raimundo Cavalcante defendeu, em sua prática política e intelectual, a possibilidade de construir outras narrativas, que levem em conta a história das lutas de afrodescendentes diaspóricas e ameríndias (SELIGMAN-SILVA, 2022: p. 90). Como sugeriu Walter Benjamin, trata-se “de resgatar do esquecimento aquilo que poderia fazer de nossa história outra história. A empresa crítica converge, assim, para a questão da memória e do esquecimento, na luta para tirar do silêncio um passado que a história oficial não conta” (GAGNEBIN, 1982: p. 60).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOCH, Didier (org.). Canudos 100 anos de produção: Vida cotidiana e economia dos tempos do Conselheiro até os dias atuais. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 1997.

BOSI, Alfredo. Céu, Inferno: Ensaios de Crítica Literária e Ideológica. São Paulo: Editora Ática, 1988.

CAVALCANTE, Raimundo. Entrevista com o autor. Poço Redondo/SE, 1/10/2004 (Fonte Oral).

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: Os Cacos da História. São Paulo: Brasiliense, 1982 (Coleção Encanto Radical).

INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS. Canudos: Uma História de Luta e Resistência. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 1993 (Coleção Centenário, 1).

NASCIMENTO, Maria da Glória Cardoso do, ZORZO, Jelda, SANTOS, José Moacir dos & EHLE, Paulo. Introdução. In: INSTITUTO POPULAR MEMORIAL DE CANUDOS. Almanaque de Canudos 1993. Paulo Afonso: Editora Fonte Viva, 1993.

OLIVEIRA, Frei Roberto Eufrásio de. Caminhando com Jesus nos Sertões Nordestinos. Recife: Edições Bagaço, 2007.

SELIGMAN-SILVA, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Campinas: Editora da UNICAMP, 2022.