GILFRANCISCO, jornalista, pesquisador e professor universitário. Membro do Grupo Plena/CNPq/UFS e do GPCIR/CNPq/UFS gilfrancisco.santos@gmail.com

Este pintor italiano teve uma carreira breve e tumultuada, marcada por rixas e entreveros provocados por seu temperamento explosivo. Passou para a história como um artista escandaloso e provocador, como um ser anti-social, cuja vida chegou ao fim de forma misteriosa em uma praia, talvez assassinado por seus inimigos. Fiel a sua verdade e honestidade artística, Caravaggio combateu às convenções do maneirismo e opôs a elas uma pintura “natural” direta e até mesmo bruta, que por sua franqueza renovou a natureza-morta, bem como os temas religiosos. Talvez, o mestre lombardo tenha vivido numa época de poder burocrático, censura de idéias e conformismo assustador. Os contrastes de sombra e luz sublinham formas maciças que, na maior parte de suas obras, emergem vigorosamente de um fundo negro. A influência que deixou na Europa, através do caravagismo foi muito importante.

Foi o artista plástico baiano Gilberto Dias, então professor do Colégio e Curso Einsteain, em Salvador, dirigido pelo poeta santamarense Jorge Portugal, que no final dos anos 80 me emprestou o vídeo “Caravaggio”, filme dirigido em 1986 pelo cineasta inglês Derek Jarman. Usando elementos modernos e surreais, este filme faz um retrato pessoal da vida e das obras de Caravaggio, um genial pintor do século 17 cujo estilo era de uma modernidade surpreendente. Impressionado com a película, fui procurar o professor e diretor da Escola de Belas Artes da UFBa. Ivo Velame, para indicar-me alguns livros sobre a obra de Caravaggio. Atendendo ao pedido do amigo, levou-me à biblioteca da Escola e colocou a minha disposição vários volumes em inglês e espanhol sobre o pintor italiano. Esta semana, fui surpreendido com um destes livros, lido há mais de quinze anos, numa banca de revista local, integrando a coleção Folha “Grandes Mestres da Pintura”. Não resisti, reli o fascículo.

Trajetória

Sobre sua vida paira uma sombra de mistério. Sua trajetória se desenvolveu em uma sociedade dominada pela violência e repressão ideológica originada das disputas pelo poder e pela hegemonia religiosa entre os Estados europeus e a Igreja, além do conflito com o mundo que acabou arrastando-o para o abismo. A hipótese mais provável é que ele tenha nascido em Milão, já que o registro não consta na igreja do pequeno povoado Caravaggio. Até a data de nascimento é incerta. Como foi batizado Michelangelo, especula-se que pode ter nascido em 29 de setembro de 1571, dia do arcanjo São Miguel. Filho de Lucia Aratori e Fermo Merisi, arquitedo-decorador de Francisco Sforza, duque de Milão e marquês de Caravaggio. Sabe-se que Fermo seria um homem de confiança de Sforza e, graças a seu pai, o futuro pintor esteve ligado às poderosas famílias Sforza, Colonna, Borromeo e Doria, que sempre deram proteção a ele.

Em 1576, quando Caravaggio tinha 5 anos, os Merisi encontravam-se em Milão, então dominada pela Espanha. Devido a grave situação enfrentada pela população local que sofria com más colheitas, fome e peste, os Merisi regressaram ao povoado Caravaggio, também atingido pela peste, que matou o pai, o avô e o tio do futuro pintor. Há indícios de que a família Sforza cuidou da educação de Michelangelo e de seus irmãos. É provável que Caravaggio mostrasse desde cedo talento para a pintura, pois aos 12 anos foi enviado pelo príncipe Colonna, novo senhor de Caravaggio para estudar em Milão no ateliê de Simone Peterzano, onde permaneceu por mais de 4 anos. Caravaggio foi bastante influenciado pela obra de Sofoninha Anguissala (1532-1626), pintora que inspirou o uso iconográfico de pessoas comuns.

Maneirismo

Atitude sistemática de afetação na maneira de se expressar e, em particular, falta de naturalidade, de simplicidade em matéria artística ou literária. Surgida tardiamente na história da arte, a noção de “maneirismo” designa um estilo original e completo que exacerba a “maneira” de artistas da grande geração do renascimento, como Rafael, Bramante, Correggio e Michelangelo.

Surgido na Itália em torno de 1520, em tempos de dúvida e inquietação, espalhou-se pela Europa assumindo formas diversas, conforme os locais, até o século XVII. Irrealismo, sofisticação e refinamento são os traços dominantes: o corpo humano se alonga, os temas confinam com o fantástico e até mesmo o esotérico, as cores tornam-se ácida.

Na Itália, os representantes mais ilustres foram Pontormo, Parmigiano, G. Romano, (pintura e arquitetura), Bronzino, Cellini, Giambologna, Ammannati. Na França, o maneirismo desenvolveu-se com a escola de Fontainebleau, graças à presença de Rosso, Primaticcio e de Niccolo dell’Abate.

Portanto, numa época em que o maneirismo ainda imperava, Caravaggio foi talvez o primeiro a propor um novo “naturalismo” que perturbou os seus conterrâneos. Pretendeu representar gente vulgar e conseguiu, mesmo as suas figuras mitológicas nada têm de divino ou sobre-humano.

Contra Reforma

A afirmação do poder papal deu livre curso ao Barroco, que passou a explorar as conquistas do renascimento no sentido de uma arte pomposa e de efeitos, da qual participaram todas as disciplinas, em estreita ligação. Na pintura, a oposição ao maneirismo havia engendrado duas correntes diferentes: realista, com Caravaggio, criador do Iluminismo pictórico que fez escola, a partir de 1606-1610, em Roma (O. Gentileschi, C. Saraceni), na Lombardia e em Nápolis. O realismo familiar introduziu-se em Bolonha nos últimos anos do século XVII e renasceu em Brescia, no séc. XVIII, com G. Ceruti, pintor de tipos populares.

A falta de reconhecimento oficial incomodava Caravaggio e para esquecer a frustração, juntava-se a seus colegas, quase todos os artistas simpatizantes de jogos e brigas.Talvez por seu caráter desordeiro, Caravaggio sentia-se atraído pela marginalidade e também

pela criminalidade. Acusado de ter assassinado um policial, o que levou a prisão de Tor di Nona, de onde fugiu com a ajuda de amigos. A partir daí passou a ter seu nome na lista dos procurados pela justiça. Em maio de 1606, após matar Ranuccio Tommaroni de Terni durante um jogo, as autoridades romanas anunciaram a condenação à morte de Michelangelo Merisi. Sem a proteção dos antigos amigos foi obrigado a fugir de Roma, para onde nunca mais regressaria. Em Nápolis, conta com a nova proteção da família Caraffa e recebe novas encomendas para pintar diversos quadros, entre as telas mais importantes do período se encontram “A Virgem do Rosário” para a igreja dos dominicanos; “A flagelação de Cristo,” quadro aterrador em que parece evocar a tortura sofrida durante sua detenção em Roma. Nos oito meses que esteve em Nápolis, Caravaggio se converteu em celebridade.

Novas Fugas

Em julho de 1607, Caravaggio desembarcou em Valletta, na ilha de Malta onde pintou um novo São Jerônimo, além de retratar Wignacourt, o artista recebeu a encomenda para pintar “A degola de São João Batista”, único quadro em que consta sua assinatura. Em Malta Caravaggio é agraciado como cavaleiro da Ordem o que podia significar o perdão por seu crime e permitir sua volta a Roma. Tempos depois se envolveu em mais um escândalo causando sua expulsão da Ordem de Malta sob acusação de pederastia e agressão a um influente cavaleiro da irmandade prejudicando ainda mais sua imagem. Seguindo para a Sicilia, Caravaggio aguarda durante um ano o indulto de Roma a pedido de seus amigos.

De Siracusa, cidade situada na costa oriental da Sicilia, fundada pelos corintios em 734 a. C., partiu para Mesina onde realizou uma de suas obras mais importantes: ”A ressurreição de Lázaro”. O quadro reflete o ápice de sua ousadia ao apresentar o santo nu e evidenciar seu pudor e de modo plástico o fedor desprendido pelo cadáver.

Resistente em pintar temas religiosos, mesmo depois de seu marchand Valentin introduzi-lo no circulo do cardeal Del Monte, Caravaggio em vez pintar quadros de temática piedosa, entregou-lhe telas com temas profanos como “Baco” de 1596, mostrando com atrevimento a crueza de sua arte, o fez com sensual exuberância. Este Baco não responde à tradição iconográfica do deus nem à realidade idealizada da arte renascentista. Fiel a sua atitude artística e a sua visão da verdade, Caravaggio utiliza mais uma vez como em “A Madalena arrependida” (1596-1597) a modelo Anna Bianchini, a jovem prostituta que também encarnava a Virgem em “O repouso durante a fuga para o Egito” (1596-1597). Neste quadro de tema religioso o artista italiano violou mais uma vez as regras da tradição e do decoro exigidos pelos ideólogos da Contra-reforma. Observamos uma Virgem de cabelos avermelhados, um São José, encarnado por um camponês próximo a uma garrafa de vinho, segurando a partitura para um jovem anjo, ruivo e nu, que toca violino. Sem dúvida a escolha da modelo é mais uma provocação de Caravaggio em uma época que a Igreja levantava polêmica por obras que fugissem do decoro.

Uma de suas últimas obras, “Davi com a cabeça de Golias” (1509-1510), representa um Davi encarnado por Cecco, o jovem amante do pintor, segurando pelos cabelos a cabeça decepada do gigante Golias, um auto-retrato de Caravaggio, configurando um impressionante retrato de horror. Segundo a tradição bíblica o hebreu Davi aceitou o desafio de Golias (guerreiro filisteu gigantesco) armado apenas com sua funda, abatendo-o com uma pedrada na fronte. O auto-retrato do pintor na cabeça do gigane reflete as muitas atribulações que atormentavam Caravaggio ao final de sua vida: “A cabeça do guerreiro, apesar de ter sido separada do corpo, conserva uma feição viva. Praticamente envolvida na sombra, percebe-se em sua fronte a marca enegrecida do golpe da pedra lançada com precisão por Davi. Mostra o olho esquerdo com o brilho vidrado da morte ou da última visão da vida, a boca aberta pelo grito de agonia que revela os dentes escurecidos e a língua avermelhada pelo vômito de sangue, cujos fios coagulados penduram-se em sua barba”.

Morte

No final de 1609, Caravaggio encontrava-se doente, cansado e, ao mesmo tempo, ansioso por receber o perdão de Roma. Vivendo em Nápolis sob proteção de Costanza Sforza Colonna, marquesa de Caravaggio, foi atacado na rua por desconhecidos que o abandonaram quando consideraram morto. Cravaggio, porém, sobreviveu e ficou com uma cicatriz bem visível no rosto. A recuperação não foi completa e o artista carregou seqüelas da brutal tentativa de assassinato.

No verão de 1610, Caravaggio seguiu para Roma, onde esperava receber a notícia do seu perdão. Porém, assim que a embarcação atracou no porto, o artista foi detido e levado a fortaleza da cidade. Posto em liberdade há dúvidas se Caravaggio morreu assassinado ou vítima de seu estado de saúde. Dias após seu falecimento, o papa Paulo V proclamou seu indulto.

Após sua morte, suas obras ficaram esquecidas durante quase três séculos. Contudo, tiveram poderosa influência na produção artística posterior: Zurbaran, velázquez e Rubens, entre outros. Sua obra está dispersa em museus e coleções particulares: Roma, Áustria, Florença, França e Londres. É possível encontrar na Galeria Borghese em Roma, algumas das suas mais importantes peças: Pequeno Baco doente; Davi com a cabeça de Golias; Nossa Senhora dos palafreneiros; Rapaz com cestos de frutas; São João Batista e São Jerônimo. Vejamos algumas de suas principais obras: Rapaz com cesto de frutas (1593-1594); Cesto de frutas (1594); O tocador de alaúde (1595); A advinha (1595-1598); Baco (1596); O repouso durante a fuga para o Egito (1596-1597); A Madalena arrependida (1596-1597); Santa Catarina de Alexandria (1597); Narciso (1597-1599); Judite e holofernes (1597-1600); Cabeça de Medusa (1598); O Martírio de São Mateus (1599-1600); A vocação de São Mateus (1599-1600); A crucificação de São Pedro (1600-1601); A conversão de Paulo (1600-1601).

Na segunda metade do século XX, exposições dedicadas à obra de Caravaggio como à organizada pelo Metropolitan Museum of Art de Nova York em 1950, consagraram o pintor italiano.