GILFRANCISCO: Jornalista, pesquisador e professor universitário. Autor de quatro dezenas de livros publicados nas áreas de história, literatura, folclore e biografias. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com

João Cordeiro me faz recordar a fase mais interessante da minha vida. Nós éramos uns garotos e fazíamos, sob as ordens de Pinheiro Viegas, a parte de pasquim da literatura baiana. Tínhamos uma Academia dos Rebeldes, que amávamos apesar de todo o ridículo que a cobria. Tentamos fazer o saneamento intelectual da boa terra. (Jorge Amado).

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Foto: Reprodução

Pertencente a Academia dos Rebeldes (1929-1931), tendo como companheiros Jorge Amado, Edison Carneiro, Dias da Costa, Sosígenes Costa, Da Costa Andrade, Alves Ribeiro, Pinheiro Viegas, Guilherme Dias Gomes, Walter da Silveira, José Bastos, Aydano do Couto Ferraz e outros. A agremiação literária fundou duas revistas: Meridiano (1929) e O Momento. (1931-1932). Nascido em Salvador a 2 de março de 1905, o romancista faleceu inesperadamente nesta mesma cidade a 7 de abril de 1938, era filho de João da Cruz Cordeiro e Maria Elvira de Castro Cordeiro. Em Salvador a família morava à Rua Nova de São Bento, 60 e tinha os seguintes irmãos: José, Aryval, Dyla e Ilza. Como membro da Academia dos Rebeldes, colaborou em vários periódicos: O Jornal, Etc., O Momento, Boletim de Ariel, entre outros.

Capa da Revista O Momento – Foto: Reprodução

A publicação de Corja, que deveria se chamar “Boca Suja” foi uma grande revelação nos meios intelectuais do país. Um romance que marcou uma afirmação de talento e independência espiritual, uma literatura fora dos preconceitos sociais e do pieguismo doentio da época. João de Castro Cordeiro escreveu um romance realista, dinâmico e livre, sem o carrancismo gramatical e as preocupações pronominais, em franca decadência da própria evolução da língua, que veio para marcar uma época. Considerado um dos espíritos brilhantes da mocidade inteligente da Bahia, João Cordeiro inicia seu romance, descrevendo um grande incêndio no Terreiro de Jesus, onde numa fogueira enorme arde em montões de cinzas, a velha faculdade de Medicina. Enquanto este acontecimento abalava a população sobressaltada, no Campo Grande, uma pobre mulher, se estorcia de dores, num parto complicado. E Assim nascia, entre as chamas dos sofrimentos maternos, e as labaredas de um grande incêndio – Policarpo – esse grande herói, de João Cordeiro, o tipo do boêmio meio maluco, meio cínico e meio sentimental, como caracterizou Édison Carneiro.

Capa do livro Corja – Foto: Reprodução

O crítico Agripino Grieco se referindo à construção do livro diz: “O lado baiano do romance, com o aspecto popular de ruas e becos, noitadas boemias e cenas de tascas, soube o autor detê-lo em instantâneos vivazes, colhendo no vôo as notas típicas de algumas vidas prosaicas ou inquietas. Sente-se o pendor para desfigurar satiricamente as personagens da política ou do clero, que evidentemente detesta, mas a morte de Luciano, o noctâmbula que tem o nome do belo herói de Balzac, emociona os leitores, dando ao volume um bocado de poesia azul, que o Sr. João Cordeiro, envergonhado talvez dos seus cinco minutos de romantismo, se apressa em desfazer, pondo a amante do morto as velas com um sucesso imbecil”.

A sua vida de menino traquina, cheias de maldades inocentes e aventuras atrevidas, muito cedo perdeu seu pai, ficando a viúva numa pobreza franciscana. Na escola de dona Xandoca pintou o sete, sendo logo expulso por indisciplina. Internado no Liceu, como aluno gratuito, era obrigado a escolher um oficio, o que prontamente preferiu o de tipografia. Com um ano de Liceu suportou toda sorte de humilhação e sofrimentos, fugindo numa noite para casa de sua amante, “Minha Negra”.

Em seguida se matricula na escola do professor Posidônio Coelho, um dos mestres mais afamados do seu tempo, abandonando os seus antigos amigos, divertimentos para somente nos livros encontrar conforto. Essa nova etapa em sua vida duraria pouco tempo, pois ficou impossibilitado de continuar os estudos por questões financeiras, resolveu empregar-se como caixeiro da Livraria Carangugi. Com dinheiro no bolso, Policarpo se iniciava na realidade na vida, com uma estréia das mais desastradas. Mesmo com todos os seus sofrimentos, se julgando feliz, inicia-se com a amante nas farras e se envolvendo em escândalos e conseqüentemente na perda do emprego.

Aconselhado por seu tio, Dr. José Praxedes, seguiu para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar em seu escritório de advocacia. Na capital federal, após envolvimentos com outras mulheres, senti-se desiludido da vida, do mundo e das mulheres, restando-lhe retornar a velha Bahia, de coração arruinado e envelhecido. Tempos depois retoma a vida boêmia. Agora, na qualidade de funcionário público, somente comparecia a Repartição no fim do mês para receber os vencimentos. O livro termina com a regeneração completa de Policarpo (herói bem representado: mal educado, revoltado, pornográfico, pois seu nome em criança era Boca-suja), casado, feliz e já sem saudade da sua grande vida de boêmio.

Capa do livro Corja – Foto Reprodução

Corja, publicado em 1934 no Rio de Janeiro pelo editor Galvino Filho com texto de apresentação de Jorge Amado é um romance de emoção, de grande fôlego, que segundo Édison Carneiro, “o seu romance terá um sentido marcadamente revolucionário. Em vez do Policarpo Praxedes palhaço da burguesia, teremos neste novo romance de João Cordeiro a visão exata, e por isso mesmo cruel, da humanidade que se definha nas salgadeiras, nos trapiches, nos armazéns das docas, para pagar com o seu suor as amantes, as bebedeiras e os palácios dos capitalistas”.

Como escreveu seu último livro? – A resposta do romancista da Corja

Entre os bons romances que o Nordeste nos mandou nos últimos tempos, seria injustiça não incluir o de João Cordeiro, Corja, cujo nome primitivo – e muito melhor: – era “Boca Suja” – é um romance forte e que situa o seu autor entre os prosadores mais significativos da sua geração. Escritor baiano, João Cordeiro surge, porém, integrado no espírito novo da prosa nortista, completamente liberto de retórica e de eloqüência. O seu estiro é direto, objetivo, simples. Nada de palavrório decorativo e inútil. Por isso mesmo, Corja que é livro um pouco cru, na aspereza do seu realismo, tem uma intensa palpitação humana de vida. Jorge Amado, prefaciando este romance, definiu com entusiasmo a personalidade de João Cordeiro, incorporando Corja entre os livros melhores que a Bahia nos deu ultimamente. É esse bravo campeão do “team” novíssimo do Norte quem nos fala hoje, para dizer-nos como foi que escreveu o seu primeiro romance.

Aqui está a interessante resposta de João Cordeiro, que por si só é uma definição de atitude.

Como e Porque escrevi “Corja”

“Polycarpo Praxedes da Anunciação, meu conspícuo colega de burocracia, que, como todo brasileiro que se preza, perpetrou, na infância, vários e incríveis sonetos de amor, e ainda hoje, tem as suas veleidades literárias, procurou-me, certo dia, para que eu lhe escrevesse as suas memórias. Neguei-me, a pé firme. Ele insistiu. Relutou muito. Amofinou-me a paciência. Quase brigamos. E como o homenzinho visse que nada arranjaria sem pistolões, deu outras providências. Foi aos meus amigos do coração. Conseguiu comovê-los. E eles – Alves Ribeiro, Dias da Costa, Clóvis Amorim, Edison Carneiro, Jorge Amado e Emmanuel Assemany – exigiram de mim tão grande sacrifício. Acedi. Polycarpo vencera-me.

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Durante os meses de janeiro e fevereiro de 1933 (e sempre que as minhas enormíssimas ocupações me davam uma folgazinha) fui à casa de Polycarpo. Lá, deitado numa rede, o indefectível cachimbo pendurado na boca e rodeado de gatos. Polycarpo ditava-me as suas memórias. De quando em vez, a sua mulher nos trazia um delicioso cafezinho.

Pronto o livro, Polycarpo levou-o ao Edison Carneiro para datilografar. Edison, que além de magnífico ensaísta é a melhor criatura deste mundo, suportou, calado, a horrível estopada, e, dois meses depois, as memórias de Polycarpo estavam prontas para as linotipos.

Passando, em julho, pela Bahia, Jorge Amado tomou-as e levou-as consigo para o Rio. Por mim autorizado, o vitorioso romancista de Cacau batizou-as com o título de Boca Suja, nome que, mais tarda depois de entendimentos com o senhor Calvino Filho, que as editou, foi substituído pelo Corja.

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Em novembro de 1933, prefaciado por Jorge Amado e com uma maravilhosa capa do fabuloso Santa Rosa, Corja saia dos prelos dos senhores Borsoi & C. Seus impressores.

Apesar da revisão ter engolido muitos espaços existentes nos meus originais e ter deixado escapar diversos erros tipográficos, a brochura honra as nossas artes gráficas.

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Corja tem defeitos que eu sou o primeiro a reconhecer. Posso, porém, garantir que é um livro honesto. E antes de tudo, é um livro sentidíssimo. E, sério.

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Pretendo para o ano, publicar Trapiche, onde focalizarei aspectos por muita gente completamente desconhecidos. E uma coisa prometo: ser absolutamente fiel.

Não será um livro sectário; mas, sim, um grande protesto contra injustiças sociais que nos revoltam profundamente.

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Senhor do Bonfim, quase pronto, será publicado depois.1

                                                        Prêmio João Cordeiro para 1939

O prêmio João Cordeiro, instituído para ser concedido à melhor estréia de cada ano, coube, entre os de 1939, ao escritor Emil Farhat, Cangerão.

João Cordeiro, patrono do prêmio, nasceu na Bahia, em 1905, e faleceu na mesma cidade em 1938. Publicou um único romance, Corja, com estranha e impressionante força de criação. Os juizes do prêmio são os escritores, baianos Jorge Amado, Dias da Costa, Sosígenes Costa, Clovis Amorim, Aydano do Couto Ferraz, Edison Carneiro, Rui Facó, Azevedo Marques, Guilherme Dias Gomes e Alves Ribeiro.

Para 1939 a comissão julgadora sentiu grandes embaraços. Foi o ano das estréias excelentes. Além de Cangerão, foram votados também Vila de Santa Luzia, romance de costumes do interior nordestino, de página fortes, de Omer Mont’Alegre: e “Tinha anos sem paisagem”, o vigoroso romance de Guilherme Figueiredo.

Cangerão, de Emil Farhat, é romance de costumes, em que o autor, também jornalista, retrata em tons crus, atingindo por vezes um vigor de mestre, cenas e tipos do interior de Minas. Tem muito de verídico, ainda que certos episódios tenham chocado. Recebe agora um prêmio de estréia, e dá a esse prêmio, concedido pela primeira vez, um nível honroso.

Emil Farhat nasceu num lugarejo de Minas Gerais, Maripá, em 25 de setembro de 1914. Foi criado em Bicas, um dos cenários de Cangerão. Estudou em Juiz de Fora, no Colégio Grambery, e formou-se em direito pela Universidade do Rio de Janeiro.

Sempre exerceu o jornalismo, e vem daí a preocupação de veridicidade que o filia à maneira realista. Atribui muito do seu processo literário à impressão de leituras de Gorki, feitas na adolescência. Outros autores que o formaram: Michael Gold, Jorge Amado, José Américo, Graciliano Ramos, Eça de Queiroz, na concepção do romance, na atenção aos dramas humanos e no modo de tratar a língua.

Presentemente, Emil Farhat está preparando um novo romance. “Mas não sei como aprontá-lo já. Só posso escrever ficção na província” – declarou certa vez.

Concedendo desta maneira o Prêmio João Cordeiro, a Comissão Julgadora venceu as dificuldades de escolha entre os três fortes romances de estreias do ano. E atribuindo-o a Cangerão, marcou inicialmente o mérito e o nível desta iniciativa tão simpática dos escritores baianos, para evocação da memória do autor de Corja.2

Recentemente, localizei um capítulo do romance inédito de João Cordeiro, Trapiche.

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2 Vamos Ler! Rio de Janeiro. Ano V, nº190, 21 de março de 1940.