Silvaney Silva Santos1
Brasil Império. Período epidêmico. Sociedade sergipana oitocentista. Aquele presente transformou-se em uma eterna e dolorosa realidade para milhares de sergipanos, destes, centenas eram santoamarenses2. Diante de tamanhos desafios, não faltaram estratégias do Estado e de grande parte de sujeitos históricos, para vencer o inimigo em comum, o “cholera morbus”. Naquela oportunidade, a província sergipana se defrontava com duas grandes frentes de atuação, uma de ordem econômica, com a mudança da capital, de São Cristóvão para a “Barra do Cotinguiba3”, onde se localizava a antiga povoação, Santo Antônio do Aracaju (17.03.1855); o que traria, segundo os ideais da chamada “era Mauá”, rentabilidade e autonomia ao governo sergipano; e a outra, a instalação do “império do mal”, uma epidemia de proporções desastrosas para a saúde das pessoas, o que fez mudar, drasticamente, costumes e práticas do cotidiano dos sergipanos. A historiografia sergipana demonstra a atuação e o papel do Estado, em ambas às frentes citadas. Todavia, nos ocuparemos mais detalhadamente das estratégias tomadas pelo governo e pelos sujeitos históricos que atuaram no combate à “cholera morbus” na vila de Santo Amaro4 na segunda metade do século XIX.
O medo da morte e dos mortos causou conflitos de ordem administrativa entre párocos e os agentes dos governos das vilas e das cidades. Aos religiosos, padres, cabia “santificar”, com suas bênçãos, os cemitérios improvisados e recém-inaugurados. Sobre esse processo, o presidente, Barão de Maruim, oficiava ao “Delegado de Santo Amaro”:
Nesta data officio ao Vigário Geral da Província para authorisar ao Paroquial d’essa villa a benção de um lugar apropriado para a factura de um cemitério provisório. V.m. de accordo com o dito vigário parochial proceda a escolha do terreno e mande apresentar a este Governo alguma pessoa activa, e capaz com quem contracte a construção do sobredicto cemitério com a maior brevidade possível […] (CORREIO SERGIPENSE, 12 dez. 1855).
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1 Historiador-pesquisador. Mestre em História. Professor do sistema público estadual e do município de Santo Amaro das Brotas; cidade de onde é natural.
2 Santoamares é o gentílico para aqueles que nasceram em Santo Amaro das Brotas.
3 A Barra do Cotinguiba localizava-se no rio Sergipe e servia à Aracaju. “Apresenta ao nível baixo das marés 10 a 12 pés, de profundidade, e em maré alta 14 a 18”. Ver Cadastros de Sergipe (BARRETO, 1913, p. 34).
4 Município canavieiro localizado na Cotinguiba, uma região fértil situada nos vales dos rios Cotinguiba, Sergipe e Japaratuba. No século XIX foi a região de maior produção econômica, destacadamente, a cana de açúcar. Sobre a Barra da Cotinguiba, José Calasans diz que a mesma “estava numa posição privilegiada. Santo Amaro, Laranjeiras, Maroim, Capela eram suas antigas tributárias” (CALASANS, 1942, p. 48).
O apego às crendices, aos “bens de salvação”5, era uma das mais diversas alternativas para se alcançar a cura diante do flagelo e “mandá-lo para as ondas do mar sagrado”, como diziam os mais velhos em suas orações.
São nestes momentos que se dimensiona o tamanho dos sujeitos históricos. As suas ações ou omissões, respectivamente, justificam ou não a emolduração dos seus retratos na galeria da história. Dos “capitais” conquistados nestas batalhas, vieram os títulos honoríficos das mãos de D. Pedro II, imperador do Brasil (1840-1889).
Dentro do processo de “medicalização” da sociedade sergipana, conforme estudo de Amâncio Cardoso dos Santos Neto em,“Sob o signo da peste, Sergipe no tempo do Cholera (1855/1856)” e diante do exposto, evidenciamos as ações do governo e de profissionais da área da saúde que estiveram na linha de frente da epidemia na vila de Santo Amaro e confrontamos as ações de “bondade/caridade”6 do sujeito Antônio José da Silva Travassos. Brevemente, situamos a importância da Faculdade de Medicina de Salvador7 com os seus médicos e acadêmicos, os quais, em tempos incertos e desafiadores, deixaram a Bahia e atuaram nesse período mórbido da história de Sergipe. Neste ponto, deixamos a provocação para estudos mais aprofundados sobre a atuação destes sujeitos anônimos da história de Sergipe e da Bahia.
Letra morta ou não, havia lei preventiva para uma possível epidemia, três anos antes da mesma aportar na província. Porém, as condições estruturais para se combater um surto epidêmico mostraram-se desconectadas da realidade. A resolução número 335 de 22 de abril de 1852 foi aprovada pela câmara municipal da vila de Santo Amaro. Segue o artigo primeiro da referida:
Artigo1º Os mestres de embarcações vindas de qualquer porto que ancorarem no desta villa ou seu termo, trazendo a seu bordo pessoas affectadas de bexigas, ou de qualquer outro mal eminentemente contagioso, e não derem parte as Authoridades policiaes, afim de designarem o lugar para onde devem taes pessoas ser condusidas, ficão sugeitos, como todos os outros contraventores a uma multa de 8 $rs. Ou quatro dias de prisão. Trigésimo Primeiro da Independência e do Império.
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5 BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 27-78.
6 Conforme Hannah Arendt, quando uma obra, uma ação torna-se pública, “perde o seu caráter específico de bondade”. Não deixa de ser útil à sociedade, mas agora como caridade ou solidariedade. Ver ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 84-85.
7 A Faculdade de Medicina de Salvador nasceu no contexto da vinda da Família Real para o Brasil em 1808. Mas recebeu este nome a partir de 3 de outubro de 1832 (Faculdade de Medicina da Bahia. Disponível em: http://www.fameb.ufba.br/institucional/historico). Acesso em: 10 de maio de 2022.
Como um presságio, depois de notícias do “império do mal” no Pará, o mesmo ancorava na província sergipana em setembro de 1855. Diante daquele quadro, o governo determinou o isolamento social, confinamento forçado e reabertura dos portos para beneficiamento da açucarocracia sergipana, muito afetada com a epidemia, que não tardou em ceifar vivas, em grande maioria de indigentes e de escravizados8. Abaixo transcrevemos o quadro aterrador comunicado pelo então presidente da província, o Barão de Maruim, ao delegado de Laranjeiras, Francisco Felix de Freitas Barreto, orientando que no cemitério público da cidade não haveria possibilidade de enterrar os escravizados, que os senhores de engenho “das circunvizinhanças” enterrassem os escravizados nas suas terras, nos seus engenhos:
Ao Delegado Francisco Felix de Freitas Barreto, neste momento sou sabedor de que os Senhores de Engenho das circunvizinhaças d’essa Cidade tem mandado sepultar os cadáveres dos seos escravos no cemitério público. – E porque vejo que semelhante proceder redunda em prejuízo manifesto, principalmente se a motalidade dos habitantes de dentro da Cidade continuar como vai em ponto tão crescido; vou por meio d’este encarreá-lo de fazer sentir aos Senhores de Engenho aquella rasão, para que tratem elles de mandar fazer em suas próprias propriedades Cemitérios reservados para a sepultura dos seos – escravos – necessidade esta que espero elles reconhecerão tanto mais porque não he possível que corra por conta do governo as despesas com sepulturas de taes escravos (CORREIO SERGIPENSE, 1855, p. 2).
A epidemia vitimou mais de 15 mil seres humanos, sem contar o elevado número de subnotificações. Destas vidas perdidas foram 275 santoamarenses9, aproximadamente, sepultados, provavelmente, no “Capote”, o cemitério dos “bexiguentos”, expressão que sobreviveu na memória coletiva de geração à geração.
O ano de 1855 e início de 1856 foram os mais traumáticos pelo alto número de mortalidade. Mas, a doença não desapareceu completamente da vida dos sergipanos. Registros de 1863 mostram estragos causados pelo “cholera morbus”. Diante de tais realidades podemos elencar os planos e as medidas tomadas pelo governo para combater o grande mal: a província foi dividida em distritos médico-sanitários; cada distrito tinha uma comissão de 4 a 7 membros; cada comissão era encarregada de socorrer os enfermos caridosamente, observar o estágio da doença nas vilas, solicitar membros de outras comissões para acudir a carência de profissionais
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8 Ver NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. p. 159-183.
9 Possivelmente houve um grande número de subnotificações quanto ao número de mortos vítimas do “cholera morbus” em Sergipe. Ver também SANTOS NETO, Amâncio Cardoso dos. Sob o signo da peste: Sergipe no tempo do cholera (1855-1856). Campinas, SP: [s.n], 2001.p. 233.
numa determinada área, criar lazaretos para o isolamento dos infectados, visitar cemitérios para supervisionar a quantidade de sepultura e sepultados nos locais, fiscalizar os víveres e as casas de comestíveis.
As câmaras municipais eram as supervisoras das referidas comissões médico-sanitárias. Mas neste momento nevrálgico do sistema de saúde, não faltaram ações do governo e de sujeitos enganjados. Evidenciaremos as ações de Antônio José da Silva Travassos e as controvérsias por seus desafetos; do Dr. João Ferreira de Britto Travassos e do Dr. Raymundo de Valois Galvão.
Antônio José da Silva Travassos (1804-1872), através da sua própria lavra, em “Apontamentos Históricos e Topográficos sobre a província de Sergipe”, afirma ter instalado um hospital de campanha em Santo Amaro, “onde não só foram tratados os moradores desse município, como os de Laranjeiras, Maruim e Rosário, que para ali emigravam aterrados pela mortandade que se dava naqueles lugares” (TRAVASSOS, p. 63-64). Travassos acrescenta que além dos “preciosos recursos”, no referido hospital, os seus filhos, “o capitão José da Silva Travassos e o tenente Francisco José Travassos”10, serviram como enfermeiros. Conforme o autor dos “Apontamentos”, tudo teria sido feito por meio da caridade. Sobre este aspecto do supracitado temos:
Era de alta estatura, robusto, sem corpulência, constituição sanguínea, alvo, cabelos castanhos claros quase ruivos, muito chão no viver, bonachão no tratar. Uma particularidade notável: não tinha apego ao dinheiro. Quando ganhava gastava consigo e com os necessitados. Um tipo moral superior, portanto (BITENCOURT, 1912, p.35).
Os “Apontamentos” de Antônio José da Silva Travassos foram entregues, de maneira manuscrita, ao Imperador D. Pedro II, quando da visita de sua majestade à Província de Sergipe em 1860. O objetivo era apresentar os aspectos históricos e geográficos de Sergipe à realeza. Tal ato não deixou de ser uma estratégia de notoriedade. Coincidências ou não, Travassos recebeu o título honorífico de “Comendador da Oredem da Rosa” no mesmo ano.
O político e comerciante continuou expondo as suas ações quando da epidemia do “chólera” na vila de Santo Amaro. Conforme o supracitado, obteve “uma receita do Dr. João Florindo de Bulhões, no Pará, fez reimprimi-la em avulso na vila de Santo Amaro, e remeteu a todas as câmaras da província para distribuírem”, teria ele fornecido medicamentos grátis, importando receitas de Maceió e Pernambuco (TRAVASSOS, 2004, p. 61). Diante do exposto, o Comendador Travassos teria uma “dedicação heróica” (DANTAS, 2009, p. 82).
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10 Francisco José da Silva Travassos também ocupou o cargo de Juiz de Paz da Vila de Santo Amaro das Brotas. Ver também o CORREIO SERGIPENSE, nº 55. p. 1. 1861).
A partir da influência do político e empresário da província sergipana, através das suas ações de caridade/bondade, todavia, sem fugir das diversas imputações, por seus adversários políticos, de beneficiário da coisa pública, Antônio José da Silva Travassos recebeu o título honorífico de Comendador, “por ocasião do aniversário natalício de S.M. a Imperatriz do dia 14 do presente mez”, era março de 1860, Teresa Cristina de Bourbon completava 38 anos de idade (CORREIO SERGIPENSE, 31 mar. 1860, p. 4).
Sobre este capital adquirido por Travassos, “Comendador da Ordem da Rosa”, a historiadora Maria Thetis Nunes, em sua obra “Sergipe Provincial II, (1844/1889)”, equivoca-se na transcrição do jornal e esquece o nome de Antônio José da Silva Travassos entre os intitulados descritos na página 307 daquela importante obra. Voltando ao título honorífico, seria mais um “capital” no campo político, econômico e social deste sujeito santoamarense.
Foi com o capital de distinção, de “Comendador Travassos”, que o mesmo foi emoldurado na galeria dos ilustres do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Ali encontra-se “imortalizado” como um dos notáveis do século XIX da província sergipana.
Outras narrativas de adversários do campo político contestam essa imagem bonachona, heroicizada, construída em torno do Comendador Antônio José da Silva Travassos. Naquela época quem tinha boca ia aos jornais contrapor aos seus adversários políticos. A cholera acirrou também as disputas de ordem política. Enquanto uns fugiam com medo da doença, a exemplo de soldados recrutados para o enterramento dos mortos, outros usavam o momento para se beneficiar de alguma maneira, como por exemplo, gerindo os recursos destinados ao tratamento dos doentes.
O Correio Sergipense de 5 de janeiro de 1856, nas páginas 3 e 4, respectivamente, contesta a publicação feita no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, que exaltava os supostos feitos do
Comendador Travassos. Os textos publicados no Correio Sergipense são fortes evidências de que Antônio José da Silva Travassos usou o erário público para o combate ao cholera morbos. Travassos tinha uma relação muito estreita com Alagoas, inclusive intermediava a compra de escravizados daquela região para Sergipe. Abaixo vejamos o que se diz a respeito dos medicamentos:
“Os medicamentos que o sr. Travassos mandou comprar em Alagoas, e que por não haver mandou vir de Pernambuco, foram comprados com o dinheiro dos cofres geraes. O exm. sr, Trindade, então na Vice-Presidência, tomando louvavelmente uma medida preventiva para que a província em caso de ser invadida pelo cholera não tivesse falta de medicamentos, encarregou o sr. Travassos de os mandar comprar e deo-lhes 400$ reis – Eis a prova”.
Para substanciar a sua tese e não deixar dúvida sobre o real sujeito responsável pelas ações frente aos coléricos da vila de Santo Amaro, naquele primeiro grande surto epidêmico, a publicação do Correio Sergipense insere a missiva indereçada a Travassos:
Ao Delegado de Santo Amaro, Antonio José da Silva Travassos. – Sentindo-se nas boticas desta província falta da mor parte dos medicamentos próprios a combater o terrível mal do cholera morbus que se acha devastando alguns pontos da província da Bahia e sua mesma capital, resolvi-me mandar comprar na província limitrophe das Alagôas uma porção de taes medicamentos afim de que de antemão preparados possão ser de prompto destribuídos pela classe indigente da província se infelizmente o mal a houver de accommetter. E visto como com aquella província mantem v.m. estreitas relações de amizade, vou pelo presente encarrega-lo de madar effetuar ali a compra dos indicados medicamentos para cujo fim remetto-lhe inclusa a quantia de 400$ – couvindo que realizada a compra e satisfeitas as despesas da condução dê v.m. parte circunstanciada à presidência da commissão que se lhe encarrega apresentando por fim conta de toda a despeza que se houver feito, e recolhendo outrossim à Thesouraria de fazenda algum saldo que possa apparecer ou solicitando a quantia correspondente a qualquer excesso de despeza que por ventura se verifique. Deos guarde sr. – José da Trindade Prado11.
Doravante, citaremos outras atuações, de sujeitos históricos, no contexto do “império do mal” em Sergipe, de maneira mais específica, na vila de Santo Amaro das Brotas. Dentre eles, o
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11 Santoamarense, personagem que participou ativamente do processo de independência de Sergipe e do Brasil, ingressando no batalhão de Pedro Labatut, nomeado capitão da 3ª Companhia. Recebeu o título de Barão de Propriá das mãos do imperador, Dom Pedro II, há 14 de março de 1860. Ver GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano. Edição do Estado de Sergipe, 1925. Ver BOMFIM, Clóvis. Retratos da história de Santo Amaro das Brotas, 2007. p. 187-191. Ver também ANTÔNIO, Edna Maria Matos. A independência do solo que habitamos: poder, autonomia e cultura política na construção do império brasileiro, Sergipe (1750-1831). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
médico, santoamarense, Dr. João Ferreira de Brito Travassos. Nascido no dia 29 de agosto de 1820 na vila de Santo Amaro e falecido a 25 de junho de 1885 (GUARANÁ, ano, p. 253-254).
O Dr. João Travassos formou-se em Medicina em 1 de dezembro de 1845, portanto, aos 25 anos de idade, pela Faculdade de Medicina da Bahia. Um parêntese para dizer que esta instituição teve uma relevante importância nesse período epidêmico em Sergipe. Outros acadêmicos e doutores, formados na Faculdade de Medicina da Bahia, atuaram no combate ao “chólera morbus” na província sergipana. No caso da vila de Santo Amaro das Brotas citemos: José Ignacio de Barros Pimentel, “estudante do 4º anno da eschola de Medicina da Bahia […] que já ali fora empregado no tratamento do cholera” e Antônio Joaquim de Souza Britto. Práticos também foram chamados para tratar os coléricos, a exemplo do prático e curioso, João Pedro Xavier, vindo das Alagoas, “que tem bastante prática do tratamento do cholera” (CORREIO SERGIPENSE, 3. jun. 1863, p. 1). Referindo-se ao Dr. João Ferreira de Brito Travassos, o mesmo fazia parte das fileiras do Partido Liberal, assim como o seu irmão, o Comendador Travassos. O Dr. João Ferreira de Brito Travassos foi Deputado Provincial e Diretor Geral do Ensino Público (1885)12.
No contexto do “cholera morbus”, o Dr. João Travassos, foi figura importante pelos estudos empreendidos e publicizados nos jornais com o intuito de se chegar à cura da epidemia. Trecho do Jornal Correio Sergipense de 20 de maio de 1863 evidencia, através da expedição de ofício, a importância dos estudos práticos do Dr. João Travassos:
Ao dr. Inspetor de saúde pública. – Transmitto à V.M. o incluso officio que devolverá do Dr. João Ferreira de Britto Travassos, expondo o resultado de suas observações práticas a respeito da propriedade da PLANTA LARANGEIRA AMARGA BRAVA para combater o “cholera morbus”, afim de que, ouvindo o parecer dos facultativos existentes nesta capital, doutores Joaquim José de Oliveira, Guilherme Pereira Rabello e José João de Araújo Lima, haja v.m. de informar-me circunstanciadamente acerca do grau de apreço que se deve dar as observações do mencionado Dr. sobre um assumpto de primeira magnitude, digno na quadra atual de toda a importância e dos mais sérios estudos.
Como vemos, o Dr. João Ferreira de Brito Travassos foi um precursor, em Sergipe, dos primeiros estudos sobre o “Cholera”. Atuou principalmente na vila de Japaratuba, mas as suas descobertas serviram à toda província. O supracitado médico publicou: “Breves instruções
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12 Ver GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano. Edição do Estado de Sergipe, 1925.
sobre o tratamento do choleramorbus” no jornal Correio Sergipense de 1 de abril de 1863. Nas referidas instruções o santoamarense deixa evidente a importância de se “combater os primeiros symptomas com tintura de laranjeira amarga” (roncaria nas tripas, dores no ventre e diarreia) (CORREIO SERGIPENSE, 1 de abr. 1863, p. 4). O Dr. continua … “se houver já diarrhea, deve logo o doente agasalhar-se com baieta, ou cobertas de algodão para transpirar”, o doente deveria “de meia em meia hora, ou de uma em uma hora, tomar meia chícara de chá de folhas de larangeiras da China, ou cascas de laranja ou limão”. Aquela publicação, numa quarta-feira, seguia instruindo sobre o tratamento a base de laranjeira amarga, limão, banhos de água quente, vinhos de diversas marcas, chás quentes, éter sulfúrico, canela, aguardente, gengibre, ferro em brasa, dentre outros. No final das “instruções” o dr. João Travassos mostra a complexidade da doença: “O acommetimento do cholera dá lugar a moléstias differentes, conforme os indivíduos. As mais graves são congestão cerebral, pulmonar e cardíaca, inflamações intestinaes, febre, e retenção de orinas” .
Outros profissionais da área da saúde se dedicaram ao ofício tanto quanto o Dr. João Travassos. Mas também houve quem tenha faltado à missão. Todavia, continuemos com as práticas daqueles que estiveram diretamente enfrentando a epidemia do “cholera morbos” na vila de Santo Amaro das Brotas, a exemplo do Dr. Raimundo de Valois Galvão, genro do Senador por Sergipe, Antônio Diniz de Siqueira e Melo, proprietário do Engenho Arauary e adjacências (sítio Sapé, sítio Aldeia, sítio Angelim etc).
Em publicação de um edital da venda do “sítio Porto das Redes”, em 25 de abril de 1860, pelo jornal Correio Sergipense, o Dr. Raymundo de Valois Galvão introduz o anúncio com os seus “capitas” adquiridos: “Dr. em Medicina pela Faculdade de Pariz. Cavalleiro das Ordens da Roza e de Christo, e Juiz Municipal Supplente em exercício nessa villa de Santo Amaro e seu termo na forma da Lei” (CORREIO SERGIPENSE,1860, p. 4). O título de “Cavalleiro das ordens da Roza” foi concedido pelo imperador D. Pedro II na mesma ocasião do título de “Comendador” a Antônio da Silva Travassos, “por ocasião do aniversário natalício de S.M. a Imperatriz do dia 14 do presente mez”, era março de 1860, Teresa Cristina de Bourbon completava 38 anos de idade (CORREIO SERGIPENSE, 31 mar. 1860, p. 4).
O Dr. do Caeira poderia acrescentar a posição de conselheiro (hoje denomina-se vereador) da Câmara Municipal de Santo Amaro, um dos “homens bons” do século XIX na província sergipana. Raymundo de Valois Galvão “era originário da Província do Maranhão e descendia de uma sobranceira família do algodoeiro município de Codó, no leste maranhense (ALBUQUERQUE, 2016, p. 29).
Depois da sacralização do nome de herança do referido médico, radicado em Santo Amaro, no Engenho Caeira e, principalmente, através das evidências (jornais, livros e ofícios) percebemos a sua relevante atuação no combate ao “império do mal” que assolou Sergipe em 1855 e início de 1856 e voltou a preocupar a província nos anos seguintes. O Dr. do Caeira atuou em várias frentes: fez parte da Comissão Médico Sanitária de Maruim, Rosário e Santo Amaro. Em boletim diário, expedido pelo governo da província, sobre as medidas e providências acerca do “cholera morbus”, no dia 9 de setembro de 1862, a administração provincial decretava:
O Presidente da Província designa o Dr. Raymundo de Valois Galvão para se encarregar do corativo dos enfermos desvalidos do districto médico do município de Santo Amaro mediante diária de 15 mil reis, que principiará a ser contada do dia em que o Cholera morbus se desenvolver epidemicamente em qualquer ponto do sobredicto, devendo o mesmo doutor passar a fazer parte da comissão do mencionado districto medico (CORREIO SERGIPENSE, 1862, p. 1).
No ano seguinte o sistema de saúde de Sergipe e, em específico, o de Santo Amaro, começou a entrar em pânico, o “cholera morbus” grassava ceifando vidas de pessoas no Engenho Conceição e em outras partes da vila. O Correio Sergipense de 8 de junho de 1863 tornava público o ofício do presidente de antanho, Marquez de Abrantes:
“[..] Ao subdelegado da villa de Santo Amaro. – Respondendo ao officio de V.M. de hontem datado, em que me communica o aparecimento de dous casos factaes do Cholera Morbus, um no lugar clamado Conceição, e outro nos subúrbios dessa villa […]” (CORREIO SERGIPENSE, 1863, p. 3).
Diante do estado de pânico e da “medicalização” da sociedade sergipana, o delegado de Santo Amaro fez uma reclamação quanto à ineficácia dos membros da comissão médico-sanitária do município por “residirem fora da vila”. Diante da queija, o presidente autorizou a “commissão do districto médico de Maroim que lhe fica visinha” (CORREIO SERGIPENSE, 8. jun. 1863, p. 3). Esta comissão deveria atender aos “santoamaristas” com “medicamentos, baêta, algodão, carapuças, tamancos e roupa, como também de recolhimento em um lazareto”.
Se a vila de Santo Amaro vivia uma calamidade, a cidade de Maruim, através do seu vigário, se dirigia ao governo para solicitar “algum sacerdote que o auxilie na administração do pasto
espiritual às suas ovelhas, victimas do cholera morbus” (CORREIO SERGIPENSE, 10. jun. 1863, p. 2). O quadro epidêmico que se apresentou naquele momento fez surgir novas estratégias de salvação, novas práticas diante dos mortos e infectados foram necessárias para manter uma aparente normalidade ou controle social.
Voltando à Santo Amaro pela Estrada Real, o Correio Sergipense de número 44 de 1863 comunicava, “[…] que a epidemia reinante tem consideravelmente aumentado nessa villa e seu município, sendo o número de atacados de 53 e dos falecidos 5 […]”. Diante da situação epidêmica o Dr. do Caeira, Raymundo de Valois Galvão, foi nomeado efetivamente para o “tratamento da classe indigente desse município a todo tempo que fosse invadido do cholera recomendando que passe a exercer sua comissão, e a V.M. remeto não só ambulância bem sortida de medicamentos próprios a combater o mal, com os objetos da relação junta” (CORREIO SERGIPENSE, 1863, p. 3).
A respeito dos objetos remetidos à vila de Santo Amaro para o tratamento dos infectados naquela complexa situação, podemos verificar e dimensionar o tamanho do trauma sofrido pela comunidade municipal. Trecho do Correio Sergipense de 10 de abril de 1863, noticiava a relação de suprimentos que foram remetidos para o tratamento dos enfermos em Santo Amaro no dia 6 de abril daquele fatídico ano: “meia sacca com araruta, uma peça de baêta, três ditas de algodão, vinte calças, vinte camizas, vinte carapuças”. Estes materiais serviram para alimentar os doentes (araruta para fazer mingau), agasalhá-los (baêtas) e vesti-los com roupas desinfectadas. Por fim, no dia seguinte, 7 de abril daquele ano, o então presidente alterava completamente a estrutura da comissão médico-sanitária da vila de Santo Amaro para melhor gerir e cuidar da saúde dos santoamarenses:
“O Presidente da Província, à bem da salubridade da villa de Santo Amaro, resolve alterar a comissão do districto médico que ficará construída pela maneira seguinte: Para presidente o subdelegado Antonio Ramos Maia. Para membros o Comendador Antônio José da Silva Travassos, o Revm. Benvindo Tito de Jesus, capitão Antônio Pereira da Silva Meira, e Tenente Constantino Francisco da Cruz” (CORREIO SERGIPENSE, 1863, nº44. p. 3).
Neste processo, o Dr. Valois Galvão era membro nato da referida comissão por ser médico nomeado para o referido distrito sanitário. Em suma, o presente texto nos permite perceber a atuação de sujeitos históricos que ocupavam a alta cepa da sociedade sergipa
am notoriedade e prestígio pelos seus feitos, principalmente, no combate ao “cholera morbus”.
Reafirma a mudança drástica nas práticas do cotidiano sergipano frente ao império do mal, a “medicalização” da província sergipana e neste sentido, as exigências “dos bens de salvação”, a exemplo do bezimento dos cemitérios improvisados, da presença de párocos nas vilas. Por outro lado também, vemos o distanciamento da própria promotora dos “bens” dos coléricos, que foram proibidos de serem sepultados no interior das igrejas. O texto também não escamoteia a falta de pesquisas mais aprofundadas sobre outros sujeitos históricos que, certamente, tiveram papéis relevantes no cotidiano sergipano e santoamarense da segunda metade do período oitocentista. Logo, o campo de pesquisa continua fértil para novos estudos alusivos à referida temática.
Referências:
ALBUQUERQUE, Samuel. A carta da condessa: família, mulheres e educação no Brasil do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2016.
ANTÔNIO, Edna Maria Matos. A independência do solo que habitamos: poder, autonomia e cultura política na construção do império brasileiro, Sergipe (1750-1831). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
ARMANDO, Barreto. Cadastros de Sergipe, 1933.
BITENCOURT, Liberato. Homens do Brasil – Sergipe. Disponível em: https://portalcatarina.ufsc.br/documentos/?action=download&id=93098. Acesso em: 6 jun. 2020.
BOMFIM, Clóvis. Retratos da história de Santo Amaro das Brotas, 2007.
CALASANS, José. Aracaju, contribuição à História da capital de Sergipe. 1942.
COLEÇÃO DE LEIS PROVINCIAES DE SERGIPE. Câmara Municipal da Villa de Santo Amaro. Resolução, número 335 de 22 de abril de 1852.
DANTAS, Ibarê. Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel (1825/1909). O patriarca do Serra Negra e a política oitocentista em Sergipe. Aracaju: Criação, 2009.
FONTES, Arivaldo Silveira. Figuras e fatos de Sergipe. Porto Alegre: Ed. CFP SENAI de Artes Gráficas Henrique d’Ávila Bertaso, 1992.
GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano. Edição do Estado de Sergipe, 1925.
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II (1840-1889). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006.
SANTOS NETO, Amâncio Cardoso dos. Sob o signo da peste: Sergipe no tempo do cholera (1855-1856). Campinas, SP: [s.n], 2001.
TRAVASSOS, Antônio José da Silva. Apontamentos Históricos e Topográficos sobre a Província de Sergipe. Aracaju: Secretaria de Estado da Cultura, 2004.
Jornais:
CORREIO SERGIPENSE, 1855 (Coleção Biblioteca Nacional- Hemeroteca Digital).
CORREIO SERGIPENSE,1860 (Coleção Biblioteca Nacional- Hemeroteca Digital).
CORREIO SERGIPENSE, 1862 (Coleção Biblioteca Nacional- Hemeroteca Digital).
CORREIO SERGIPENSE, 1863 (Coleção Biblioteca Nacional- Hemeroteca Digital).
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