Jeová Santana [*]

É sempre delicado escrever sobre quem deixou de estar entre os esplendores e misérias, inferno e maravilhas desse planeta cabuloso. O fugidio território da memória é o lugar mais apropriado para o cultivo e a manutenção das imagens de quem atravessou, lembrando Drummond, a “pobre/ área de luz de nossa geometria”. Mas, deixando de lado esse impeditivo, resolvi compartilhar essas poucas lembranças sobre quatro breves encontros com a escritora mais longeva de que se tem notícia entre nós, seja pela idade na certidão cartorial, seja a que ela divulgou vida afora, com cinco anos a menos.

O primeiro encontro teve traços picarescos e líricos. No auge dos vinte e poucos anos, na condição de estudante de Letras da UFS, vi o anúncio de um congresso de literatura numa faculdade particular, em Bonsucesso, no Rio de janeiro. Dividi a informação com o colega Elman, e fomos buscar auxílio numa das pró-reitorias. Satisfeito nosso pedido, vimo-nos na rodoviária de Aracaju com o feliz adendo de ser a primeira viagem para o Rio de todos os janeiros.

Tudo estaria nos trinques, não fosse um pequeno detalhe: o colega, que ficou com as passagens em mãos, simplesmente confundiu o horário da partida. Voltar todo murcho para casa, nem pensar! A solução: ir até Salvador. De lá seria fácil encontrar passagens para o Rio. Ledo engano!  Havia, no meio do caminho das BRs, a realização do primeiro Rock in Rio. A solução vinda do guichê: comprar até Vitória, no Espírito Santo. Chegamos ao solo carioca um dia depois do início do congresso. A grana extra que levávamos fora embora nessa saga. Felizmente, contamos com a solidariedade dos organizadores. Anunciaram aos participantes que “a delegação de Sergipe passava por dificuldades”. Sob o olhar nada amigável de alguns livreiros, passamos a vender umas coisas que levamos da terrinha tais como cartazes, postais, antologias etc.

Todos esses aperreios foram esquecidos quando vi Lygia Fagundes Telles em cena. No início, ela disse que lhe deram tal tema, mas que iria fugir dele de vez em quando. Quando isso acontecesse, “puxassem a manga de sua blusa”. Na hora dos debates, lembrei-me que havia lido uma frase sua na qual afirmara haver “três espécies em extinção no Brasil: o índio, a árvore e o escritor”. Perguntei-lhe, então, se ela mantinha essa constatação. Respondeu que mudaria em relação ao último. Quem estava sob a ameaça era o leitor, pois todo mundo virara escritor. Tinha receio de chegar em casa e encontrar a empregada com centenas de  páginas nas mãos: “Dona Lygia, eis aqui as minhas memórias. Publique-as!”

Antes de lançar a pergunta, tive a coragem de fazer um acróstico com seu nome. Só me lembro dos dois primeiros versos: “Liberdade para gerar a chama/ Yes à aventura do homem”. O mediador, é claro, fez menção a essa “proeza”. Houve o clima do “Quem é? Quem é?”. Fiquei na moita e só me identifiquei quando subi ao palco para falar com Lygia. Quando lhe disse que era de Aracaju, informou que conhecia a cidade. Que tirara há alguns anos, ao lado de um grupo, umas fotos às margens de um rio bonito. “Éramos todos jovens!”. Essa experiência foi resultante de uma das muitas empreitadas culturais da inesquecível Iara Vieira. Nessa primeira leva estavam João Ubaldo Ribeiro, Marina Colassant e Nélida Piñon. Apresentei-lhe, então, meu exemplar de A disciplina do amor. Ela escreveu: “Para o Jeová, com o melhor abraço de Lygia Fagundes Telles – janeiro, 1985”.

Dois anos depois, recebi outro exemplar deste mesmo livro. Enviara-lhe um Aperitivo Poético, mais um projeto coletivo idealizado por Iara Vieira. No autógrafo: “Para o poeta Jeová Silva Santana, com o melhor abraço desta sua autora Lygia Fagundes Telles – Primavera de 1987”.  Além da dedicatória, fui brindado com este terno bilhetinho:

O segundo encontro aconteceu em circunstâncias mais calmas. Fazia mestrado, entre 1998 e 2000, na Unicamp, quando surgiu um projeto, que tinha Haquira Osakabe entre os selecionadores, para ler poemas autorais na Livraria Cultura. Pouco depois de desfiar alguns poemeus, vejo a elegância de Lygia adentrar no recinto. Não fora lá por conta dos meus versos, é claro, mas sim devido a uma outra programação no mesmo espaço: o lançamento de um  livro do filho de  Eric Nepomuceno. Antes disso, fui brindado, em 1995, com mais um livro autografado, As meninas: “Para o meu camarada de letras (contista!) Jeová Santana, estas meninas e este abraço afetuoso – Lygia Fagundes Telles – junho de 1995.

Os dois últimos encontros aconteceram nos anos 2000. Primeiro, quando fui ouvir Pedro Paulo de Sena Madureira contar os altos e baixos de seu itinerário como poeta e editor. Lá pelas tantas, ele começou a tecer belíssimas metáforas musicais para comparar os estilos de Lygia e Nélida Piñon. Não me lembro se foi nesse encontro que Lygia  relatou essa cena cinematográfica: chegava à noite ao prédio onde  morava, na rua Consolação, em São Paulo,  quando notou que uma moto a seguia. Apressou o passo, só esperando a facada. Quando conseguiu passar pelo portão ouviu: “Lygia Fagundes Telles, eu te amo!”. Olhou para trás, ouviu o acelerar do motor e viu um jovem com os fartos cabelos ao vento.

Por fim, o mais prosaico de todos: na Balada Literária criada por Marcelino Freire. Fui assistir a uma das palestras. Vejo a chegada de Lygia e Marcelino. Aproximo-me de ambos para um fio de prosa. De repente, Lygia pega-me pelo braço, começa a andar por entre o público e diz: “Não enfrento mais fila”. No final da palestra, fico sabendo que Antonio Candido, Davi Arrigucci e Boris Schnaiderman fariam uma homenagem a João Alexandre Barbosa, na Livraria da Vila. Parou-se um  táxi e lá fomos os três, Lygia, Marcelino e o autor destas linhas, lépidos e fagueiros no banco de trás.  No início daquela década, recebi seu último autógrafo em Invenção e memória: “Para Jeová Santana, estes contos e este abraço afetuoso, Lygia Fagundes Telles – São Paulo, janeiro, 2001”.

É isso.  Agora, é continuar lendo, relendo e divulgando sua literatura, fruto de uma “imaginação cintilante”, como bem a definiu Antonio Candido. Seus romances densos ainda têm lugar. O tenebroso tema da tortura, presente em As meninas, lançado em 1973, infelizmente ainda está aí, a receber louvações de neofascistas que circulam, inclusive, nas chamadas Casa do Povo. Há vários contos memoráveis, que tendem a nos acompanhar tempo afora. Na parte que me cabe leio, desde sempre, para alunos do ensino médio e da universidade, “O direito de não amar”, enfeixado nas memórias de A disciplina do amor. Nele estão os três pilares que, segundo Lygia, marcam os caminhos das relações amorosas: matar/morrer; desejar o pior para o/a ex-companheiro(a); renunciar. Esta última atitude passa ao largo de nossas práticas psíquicas e sociais. Optar por ela seria mostra de civilidade para eliminar a máquina de destruição chamada feminicídio. Estamos longe disso, é obvio.  Ainda mais nesses tempos de adesões a discursos truculentos e farsescos, inimigos da palavra, da arte e da educação, naturalizados como se se bebesse uma xícara no café da manhã, ora vigentes no Brasil desde 2016. Assim, este e outros textos de Lygia Fagundes Telles serão nossa barca iluminada contra quaisquer cirandas de pedra. Agora e sempre.  

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[*] É Mestre em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP, professor da Universidade de Alagoas, escritor e autor de diversos livros – Dentro da Casca (1993), A Ossatura (2002), Inventário de Ranhuras (2006), Poemas Passageiros (2011), entre outros títulos.

Foto: Denilma Diniz Botelho