Profaª Dra. Valéria Aparecida Bari [*]
Seguros de nossos sentidos e da nossa cultura, religião, instituições, seguimos a nossa vida pelos anos a fio. O legado da cultura e dos costumes, que nos é entregue como um tesouro pelos nossos pais e responsáveis, se integra à nossa personalidade e faz parte de quem somos, se torna a nossa identidade. Somos o que somos, principalmente pelo que fazemos, pela maneira como nos relacionamos com outras pessoas e nos comportamos. Por isso, caso nunca nos ocorra pedir explicações além daquelas curiosidades da infância, muito de nossas práticas se constitui em mistério que permeia as nossas vidas. Mundos invisíveis, aqueles em que caminhamos pela nossa cultura, nossas crenças, nossa maneira de ver o mundo e nos situarmos nele.
Gilfrancisco, um turista “acidental e ocidental”, confronta sua baianidade com o mundo, cheio de conflitos e mistérios que não se explicam por um mero vislumbre. Verifica que os mesmos protagonistas podem inspirar opositores históricos, que o mesmo caldo cultural pode alimentar visões de mundo totalmente antagônicas. É muito preocupante constatar que o erotismo de um é a pornografia de outro, a fé de um é o pecado de outro, a justiça de um é a crueldade do outro.
A humanidade tem por metáfora uma imensa Babel, na qual ninguém consegue se entender, mas todos tem um objetivo aproximadamente comum. Nos recantos distantes, povos e pessoas nascem, se disseminam, desaparecem, migram. O passado vai sendo coberto pelas areias do tempo, ocultando dos viventes os sentidos de muitas brigas e muitas alianças. Cabe a nós interpretar esse passado, que espiamos ao longe, evitando seus erros e nos tornando pessoas cada vez melhores, respeitando a identidade e a cultura dos demais e procurando cultivar a verdadeira paz.
Na contemplação de suas viagens e suas leituras, Gilfrancisco vai produzindo, no tempo, as reportagens com suas impressões. Vamos nos entregar à sua leitura de peito aberto, para ver que tudo muda, mas nada muda. As misteriosas questões estão ali, nos espiando, muitas vezes denominando como “conflitos políticos ou religiosos” à luta pelo poder sobre as pessoas ou sobre algum segmento social, como as mulheres, as etnias, entre outros quetais.
A cultura é o mais rico tesouro legado pela humanidade, é um patrimônio indelével, que também tem muito de amor, partilha e generosidade. A identidade também nos faz mais belos, unidos e mostra o nosso melhor lado, na aproximação com o diferente. Os conflitos podem estar inseridos na cultura, se a razão não a atualiza e esvazia aquelas disputas que já não fazem sentido e só perpetuam a dor e a crueldade humana. De perto, somos todos parecidos e poderíamos viver bem melhor, dando valor e respeito à cultura e suas legitimações que valorizam a vida e a bondade.
Preocupa-me, nesses indizíveis ciclos descritos pela nossa história, que a descrição de Gilfrancisco da vida das mulheres no regime Talibã venha a se repetir no século XXI. A exemplo de todas as outras grandes religiões (todas mesmo, incluindo provavelmente a sua), que fizeram interpretações muito semelhantes em outros momentos da história, atribuindo às escrituras sagradas o poder de oprimir mulheres, crianças, etnias, gêneros humanos, e, principalmente, o outro (aquele que não é como você). Sendo assim,
verificamos que o maior mistério será a resolução dos conflitos humanos, causados pela intolerância e sede pelo poder a qualquer custo. Se a paz tem o custo do silencio e sofrimento de alguém, não é paz, é guerra.
A área de conflitos e mistérios mais perigosa está dentro de cada um de nós. Nos cabe refletir e tomar partido nesse conflito, sempre considerando a preciosidade da vida humana, a valorização de nosso planeta natural e a grandeza de um mundo desconhecido, que pode estar na palma de nossa mão, um grão de areia.
——————————-
[*] É docente pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe (UFS)
Deixar Um Comentário