Licia Soares de Souza  [*]

O Estado da Bahia perdeu no sábado, dia 14 de novembro, um grande professor da UFBA, pesquisador de literatura brasileira e francesa. O professor Jacques Salah chegou no Brasil, oriundo da França, em 1962, para dirigir a Aliança Francesa de São Paulo. Seduzido pela simbologia da cultura baiana, dirigiu-se a Salvador onde constituiu família, e se estabeleceu na terra.

Na UFBA, formou muitas gerações em língua e literatura francesas, em uma época em que a aquisição de um livro em francês era um privilégio apenas para quem podia viajar. Ele emprestava seus livros aos alunos. Com estes, já começamos a adentrar na semiótica de Roland Barthes, percebendo o cruzamento de vários tipos de linguagens que viriam configurar o hibridismo das mensagens do final do século XX e início do século XXI. Estudamos as teorias da narrativa com Todorov, Jakobson, Claude Brémond, e outros que Fato notório, contado por vários estudantes, é que as disciplinas de Literatura Francesa avançadas tinham poucos matriculados, e ele dispunha, assim, do direito de anular uma disciplina que tivesse apenas um ou dois alunos. Ele não o fazia, e alguns tiveram o privilégio, inclusive eu, de ter aula “particular” de alto nível no Instituto de Letras.

Quanto à Literatura, percorremos vários séculos, desde o renascentista Du Bellay até o Nouveau Roman e o Existencialismo do século XX. Evidentemente, estudamos o século XVII com Racine e Corneille, e pudemos apreciar as análises contemporâneas que Barthes empreendeu sobre o relacionamento trágico entre Fedra e o enteado Hipólito. Chegando ao século XIX, não posso me esquecer daquelas considerações sobre a ascensão da burguesia, o poder do dinheiro, as lutas de classes que nos trazia Balzac. Cenários de muita reflexão! Mas aquele que revolucionou minha cabeça, tornando-se livro de cabeceira até hoje, foi Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Assisti todas as recriações cinematográficas, e nunca deixo de me emocionar com os conflitos que aquela literatura “rosa” dedicada a moças, assim como os romances de capa e espada, provocaram na mente de uma menina sonhando com o amor. Madame Bovary c’est nous!, e se eu tivesse o talento da escrita romanesca iria criar tantas estórias sobre aquelas que se encantam com o mundo do star-system, ao ponto de recusar valores simples para se lançar nas armadilhas do capitalismo selvagem.

Já em nossa última disciplina, chegou a hora de encarar o Existencialismo: Camus e Sartre. Este me desconstruiu toda, tirando das minhas mãos a velha fatalidade, e me fazendo pensar que eu era responsável pela minha vida. Foi bem na hora que o professor Salah me informou que eu já estava pronta para fazer um mestrado na França. Tive medo. Era o final dos anos 1970, e o trânsito de pessoas pelo mundo não era ainda tão natural. Ele preparou minha papelada para a Embaixada da França e eu fui parar na Université du Toulouse- Le Mirail, dissertando sobre a náusea sartreana e descobrindo um mundo de abertura de pensamentos, e sobretudo como viver a democracia na vida cotidiana com respeito pelo próximo.

O professor Jacques Salah foi cônsul da França na Bahia, durante alguns anos, admirado por todos que necessitaram de seus trabalhos. Ademais, produziu a obra-prima A Bahia de Jorge Amado (2008, 320 pg.) editada pela Fundação Casa de Jorge Amado, com o decidido apoio do Governo do Estado da Bahia. Foi sua tese de doutorado, defendida com louvor na Université de Montpellier, em 1984. A obra é considerada um dos documentos mais completos sobre a cidade da Bahia, com suas tradições e costumes.

Finalmente, resta dizer que todos aqueles que conheceram o professor Salah o qualificam como uma pessoa cordial, humana, solidária e de uma simpatia sem igual. A sua partida chocou uma grande quantidade de professores e ex-alunos de culturas francófonas. O vazio é indescritível. Obrigada, professor Salah, sua lembrança estará sempre conosco.

———————————-

[*] É professora da UNEB, UFBA e UQAM. E-mail: liciasos@hotmail.com

Foto: Arquivo Pessoal