Profa. Dra. Valéria Aparecida Bari [*]

A mais recente publicação de Gilfrancisco, “Alina Paim: a Greve na Rede Mineira de Viação”, nos permite a oportunidade de acompanhar, entre outros episódios, a trama da participação testemunhal de Alina Paim num representativo movimento grevista da década de 1950. Apostilando outras análises e originais, a estrutura da obra nos faz desfrutar de aspectos da produção literária diretamente derivada das observações sociais e de campo que se tornaram notórias. Assim sendo, o livro está dividido em duas partes: a primeira é um ensaio sobre a construção do romance de Alina Paim, A Hora Próxima. A segunda parte é constituída de dois Apêndices, onde são incluídos textos da fortuna crítica da autora dos seus livros publicados. Esta fortuna crítica traz artigos escritos por vários intelectuais brasileiros e estrangeiros, desde a sua obra de estreia, “Estrada da Liberdade”, publicada em 1944. As pesquisas do livro antecedem o ano de 2008, quando o autor publicou outra obra resultante de seu trabalho de pesquisa, “A Romancista Alina Paim”.

Vamos ao episódio prosaico que dá nome à nova obra. Passando desapercebida, no meio de uma aglomeração de mulheres e crianças, está uma jovem franzina, de baixa estatura, tez clara, olhos e cabelos castanhos. Alina Paim é uma testemunha da História do Movimento Operário no Brasil, pesquisando em campo. O grupo se dirige para a passagem de carris e se acomoda, algumas pessoas em pé e outras sentadas nos dormentes dos trilhos. As crianças brincam na passagem dos caminhos de ferro. O brilho do sol dá vez à luz de lampiões. Não há uma grande refeição para esse coletivo, que reparte as migalhas possíveis com solidariedade, privilegiando a alimentação das nutrizes e dos menores, por horas a fio. A moça franzina está lá, observando, num honesto método antropológico que colocará em risco sua integridade física, assim como seu futuro civil e criminal. A manifestação de sit-in nos carris da Rede Mineira de Viação, em 1951 torna-se notória no Brasil, exemplificando a atuação feminina no movimento operário.

O inquérito que se segue ao movimento grevista, com intuito de punição exemplar, vincula às reivindicações justas dos famintos trabalhadores e suas famílias aspectos ideológicos, constrói tramas astutas. A jovem magrinha dos cabelos castanhos ganha feições suecas, longa cabeleira loura, cresce uns vinte centímetros e se transforma numa espiã russa. Escrita imaginativa e romance fantástico, à moda da produção literária sul-americana, é a obra da equipe da Secretaria de Segurança Pública de Cruzeiro-MG, no ano de 1951. Seria cômico, se não fosse trágico, verificar a falta total de seriedade, perícia, além da inflexão dos fatos apurados, executada e assinada por representantes legais da justiça. 

As repercussões surpreendentes escandalizaram a intelectualidade brasileira, ainda sensibilizada pelo final da Segunda Guerra Mundial. A escritora Alina Paim, processada por incitar a desordem pública, uma flor delicada do campo que brotara no jardim de Sergipe, a bela Estância, transmudada numa estrangeira… treinada em guerrilhas, armada e perigosa. O mandato de prisão foi de um cumprimento confuso, desde a acusação até a localização daquele corpo da escritora e repórter, descrito de um modo diferente por cada testemunha arrolada, nos autos desse confuso processo. 

Nesse ínterim, uma comoção nacional impede o desfecho escandaloso. Mas, para Alina Paim, as marcas foram indeléveis. Importante salientar que muitos vibraram com esse malfeito, principalmente aqueles poderosos que vislumbravam, preocupados, um mundo novo para as mulheres. Havia, no final da Segunda Guerra Mundial, uma grande reviravolta no papel atribuído às mulheres na sociedade. Sob o vácuo das convocações, que levavam os homens ao campo de batalha, grandes barreiras culturais e sociais foram rompidas, dando finalmente voz e oportunidade de exercício pleno da cidadania às mulheres. 

Fica clara a obscuridade do protagonismo feminino nos autos do inquérito da Greve. Um exemplo que comprova o olhar preconceituoso das autoridades, no qual o delegado de Polícia João Ranali, de Cruzeiro-MG, dirige-se ao Dr. Elpídio Reali, Diretor do D.O.P.S., de São Paulo-SP, afirmando que, embora o artifício para viabilizar a greve tenha sido concretizado pela participação feminina, coube “aos homens o trabalho de mentores da situação”. A figura da mulher passiva, dócil e obediente, embora ultrapassada pelo avanço da civilização no séc. XX, ainda sobrepujava culturalmente a inteligência e iniciativa visível desse grupo aguerrido.  

Se, nas metáforas poéticas de Alina Paim, o sol é a verdade e o vento é a ideologia, Alina e suas companheiras de gênero são como a lua. Na tranquilidade de seu brilho, a lua ilumina as noites, está presente nos dias e sua influência chega aos mais profundos recônditos do Planeta Terra.  Aqueles que querem se aproveitar do obscurantismo, para perpetrar o mal, veem na lua uma inimiga que ilumina a escuridão, sem uso da violência, por meio de sua presença e existência. E essa lua, cuja luz é reflexo de sua posição em relação ao sol, é como Alina e as aguerridas mulheres do movimento grevista mineiro de 1951, que tomam seu brilho refletindo a luz da verdade. 

————–

[*] É docente pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe (UFS)