Licia Soares de Souza [*]
Estamos num Estado de Direito? Eu sou uma professora simples. Tenho o direito de não pagar Imposto de Renda por causa de moléstia grave. Mas, a Junta Médica do Estado da Bahia me nega este direito, líquido e certo, garantido por lei federal ( 7713/88, atualizada pela súmula 627 do STJ de 2019). Diante desta lei tem um guarda em cada porta, a do SAC, a da SUPREV, a da JUNTA. Eu peço para entrar, pois já li tudo sobre a lei, e sei que ela é feita para todos que estão na minha situação. Mas a cada sala e porta, cada guarda é mais poderoso do que o anterior. Estou há um ano, sentada diante da porta e advogados não conseguem me ajudar. Tentam até me enganar. Já conheço as pulgas dos colarinhos dos guardas do SAC, da FUNPREV, da JUNTA, dos advogados, do Governo da Bahia. Já me sinto cansada e gagá, e peço às pulgas que convençam os guardas a me deixar entrar na LEI. Minha visão está curta, a pressão da vista está alta, o colírio é caro. Mas, eu posso perceber o brilho imortal nas portas da lei. É uma lei simples, é um direito adquirido, eu sou uma professora simples. Eu preciso comprar alimentação e medicação que se tornaram caríssimas. Todos lutam para ter lei. Será que esta professora simples morrerá diante das portas da Junta Médica do Estado da Bahia perguntando se outros passaram por essas portas? E então, com a audição deficiente, ela vai ouvir os guardas gritar em seus ouvidos: só você poderia entrar. Ninguém poderia passar por esta porta. Esta porta foi feita para você. Agora nós a fecharemos.
Adaptado de trecho de O Processo de Franz Kafka, 1925.
Diz-se que a lógica dessa história, é a lógica de um sonho, a lógica de um pesadelo.
—–
Texto Original:
Diante da Lei
Diante da lei há um guarda, um homem vem do interior. Pede para entrar. O guarda não permite. Ele pergunta se pode entrar mais tarde. É possível, diz o guarda. O homem tenta olhar, pois aprendeu que a lei foi feita para todos. Não tente entrar sem minha permissão, diz o guarda. Sou poderoso apesar de ser o menor dos guardas. A cada sala e porta, cada guarda é mais poderoso do que o anterior. O homem senta, e espera durante anos. Ele vende tudo o que tem na esperança de subornar o guarda, este sempre aceita o que o homem lhe dá, para que o homem não sinta que não tentou. O homem conhece até as pulgas do colarinho do guarda. Ficando gagá, com a idade, pede às pulgas que convençam o guarda a deixá-lo entrar. Sua visão é curta, mas ele percebe o brilho imortal na porta da lei. E agora, antes de morrer, toda sua experiência se concentra em uma pergunta que nunca fez. O homem diz que todos lutam para ter lei. Então por que, em todos aqueles anos, ninguém pediu para entrar? Sua audição não é boa e o guarda grita em seu ouvido. Só você poderia entrar. Ninguém poderia passar por esta porta. Esta porta foi feita para você. Agora eu a fecharei.
Franz Kafka, Der Prozess, 1925.
————————–
[*] É Prof.ª Dr.ª da Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Deixar Um Comentário