GILFRANCISCO [*]
Fundado em Portugal em 1536, pelo rei D. João III, o Tribunal da Inquisição ou Santa Inquisição foi um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana cujo objetivo era combater a heresia, blasfêmia, bruxaria e costumes considerados desviantes. Violência, tortura, ou a simples ameaça da sua aplicação, foram usadas pela Inquisição para extrair confissões dos hereges. A Bahia recebeu em 1591, a primeira visita do Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Deputado do Santo Ofício da Inquisição.
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A Inquisição exerceu sobre os domínios do Brasil nascente, e do Brasil adolescente, influência considerável, que desafia, ainda hoje os pesquisadores. A presença dos verdugos da igreja em terras brasileiras ainda não atraiu, todavia, com o conjunto e a complexidade das suas consequências, a atenção dos historiadores. Talvez devido ao desaparecimento da documentação eclesiástica enfeixada em mais de uma dezena de volumes, remetida para a metrópole, e o fato de se não terem acendido, em território nosso, as fogueiras da Inquisição.
Presença constante nas terras do Brasil entre os séculos XVI e XVII, o Santo Tribunal, através de seus múltiplos agentes, procurou controlar o quotidiano da colônia, impondo aos seus habitantes as normas da vida cristã, implementadas pela Reforma Católica, sobretudo após o Concílio de Trento.
Tal esforço de aculturação traduzir-se-ia, inclusive, pela vigilância sobre as práticas sexuais, na tentativa de promover moralidades genuinamente cristã, baseadas na condenação do prazer e na difusão de regras de abstinências. A progressiva demarcação do estreito campo da sexualidade lícita iria, assim, empurrar para as margens uma variedade de costumes, hábitos, opiniões e mesmo indivíduos.
Inquisitorial
Era o procedimento que consistia em uma inquirição (inquérito) conduzida pelo juiz, que interrogava as testemunhas obrigadas por juramento a dizer a verdade sobre elas mesmas e sobre os outros. A Inquisição nasceu da intenção de combater as heresias populares que se multiplicavam na Europa ocidental a partir de meados do século XII, especialmente o catarismo.
Enquanto príncipes e povos atacavam-se por meio de massacres, a partir de 1162 concílios e papas se preocuparam em organizar a luta. O papa Inocêncio III, que sancionou a cruzada, ou guerra, contra os albigenses (1209-1229), assegurou sua eficácia pela introdução do processo inquisitorial (bula Vergentis in senium, 1199, que compara a heresia ao crime de lesa-majestade).
Inicialmente confiada aos tribunais ordinários, a Inquisição tornou-se em 1231, pela vontade do papa, especialidade dos dominicanos, aos quais Alexandre IV, em 1260, concedeu uma independência quase total em matéria de repressão das heresias.
Procedendo geralmente por meio de correições, o Tribunal inquisitorial passou a realizar, após uma predicação pública, um interrogatório sistemático da população: a delação foi encorajada, os suspeitos eram privados do auxílio de um advogado e a tortura era frequentemente empregada. As sentenças proclamadas iam desde a pena de morte, cuja aplicação era confiada ao poder secular, até o confisco dos bens, passando pela prisão perpétua ou temporária.
Após ter estendido sua ação sobre o conjunto da cristandade romana, a Inquisição extinguiu-se pouco a pouco, a partir do séc. XV, salvo na Espanha, onde os reis católicos a utilizaram como elemento essencial de sua política de unificação, e em Roma, onde foi canalizado pela congregação da Suprema e Universal Inquisição, mais conhecida pelo nome de Santo Ofício.
Censura: Prática Medieval
A estupidez e a xenofobia inquisitoriais na perseguição dos judeus e cristão-novos não só levaram as nações ibéricas ao caos financeiro como também à imbecilidade intelectual. A filosofia humanista foi eclipsada pelo fanatismo religioso; a literatura mutilada; a pintura, servil; e a língua maculada.
A Bíblia não podia ser lida para que não houvesse dúvidas sobre as suas verdades. Os Lusíadas, de Luis Vaz de Camões, foi uma obra mutilada em sua segunda edição por ser épica, portanto, humanista; além do mais, Camões utilizou-se da mitologia para enriquecer a aventura de Vasco da Gama; isso implicava uma obra pagã, herética.
Damião de Góes (1502-1574) – cronista de D. Manoel, o Venturoso – foi censurado por ser o precursor do pensamento moderno em relação aos judeus. D. Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616) onde escreve; “Cada um é filho de sua obra”, é considerada literatura proibida, pois à Inquisição tem como dogma que cada qual vale pelo nome que vale e pelo sangue que corre em suas veias.
O teatrólogo português Gil Vicente (1470-1536), que três décadas antes do estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal disse a célebre frase “A fradaria é que nos mata”, teve, depois de morto a sua dramaturgia proibida para ser encenada ou editada. Outro dramaturgo que teve sua obra recolhida foi o brasileiro Antônio José da Silva (1705-1739), mas no seu caso não foram suas peças o objeto da perseguição. Antônio José da Silva, o Judeu, foi condenado à fogueira por causa da sua ascendência judaica.
A política racista da Inquisição perseguiu além dos descendentes de judeus, os de negros, árabes, ciganos e índios. O primeiro poeta brasileiro a publicar livro, “Prosopopéia”, Bento Teixeira (1561-1600), foi perseguido devido à sua condição de cristão-novo. Preso em 1595, foi levado a Lisboa, onde abjurou o judaísmo e obteve liberdade condicional. Gregório de Mattos e Guerra (1636-1695), poeta satírico e fescenino, manteve com os religiosos da Bahia, um certo aspectos “ideológico” da sua postura frente ao “fato religioso da sua crença”. Por isso foi feita na Bahia contra ele, denúncia em 1685 por parte de Antônio Rodrigues da Costa, junto ao Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, sob alegação de ateísmo.
O poeta árcade Cláudio Manoel da Costa (1729-1789), teve sua proposta recusada ao tentar ingressar numa ordem religiosa por “suspeita de sangue”. José Bonifácio (1827-1886) e Alexandra Gusmão (1695-1753) também passaram pelo processo de “habilitação de Gênese” por suspeita de sangue. Gusmão demonstra através das cartas em que zomba da beatice e atraso da Corte portuguesa, o “juízo! em que satiriza o anti-semitismo dos cristãos-velhos, e a “Dissertação” contra os abusos do clero. Outro tipo de processo se deu contra Hipólito José da Costa (1774-1823) – fundador do Correio Brasiliense, o primeiro jornal brasileiro (editado em Londres). Seu crime era pertencer à Maçonaria, “que conspirava contra Portugal! Segundo a ideologia inquisitorial. Hipólito conseguiu, entretanto, evadir-se, indo refugiar-se na Inglaterra.
Os Sermões
Um dos processos mais citados é o que envolve o nome do padre Antônio Vieira (1608-1697), que foi preso e teve a palavra cassada. É que Vieira, tendo sido embaixador e conselheiro do rei de Portugal, sabia de todas as tramas, tanto é que certa vez afirmou que o confisco era a causa da perseguição dos cristãos-novos, o que, um século depois, se confirmou no recenseamento, que trazia os seguintes números: 800 mil fidalgos, 500 mil religiosos, 200 mil militares. Implicava que mais da metade da população lusitana era improdutiva, portanto a necessidade do confisco.
Sabe-se que na pintura, El Greco e Goya (1746-1828) foram também censurados. O primeiro, por existir desconfianças de que era judaizante, e o segundo, porque os seus quadros, às vezes, levavam frases como: “Por haver nascido em outra parte”. A Inquisição, então, o censurava por “nascer em outra parte” gerar dúvidas.
A imbecilidade inquisitorial também atingiu a língua portuguesa, maculando-a com palavras cuja significação afirma seu alto grau de xenofobia e inconsciência. Para tanto, é só procurar nos dicionários as seguintes palavras, seguindo esta ordem: judiaria, judiação e judiar.
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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
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