Silvaney Silva Santos [*]

“O capital mais precioso é a vida”

O texto em tela mostra aspectos panorâmicos da varíola em Sergipe no período da primeira República, com um foco mais direcionado à vila de Santo Amaro das Brotas. As fontes consultadas foram: o jornal “Correio de Aracaju”, dos anos de 1919 e 1920, o Diário da Manhã de 1919 e a mensagem à Assembleia Legislativa de Sergipe, proferida pelo então presidente do Estado, o coronel Dr. José Joaquim Pereira Lobo, datada de setembro de 1920.

Em tempos de barbárie, já ficou mais que evidente, as mulheres e os homens, leia-se, a sociedade, naquilo que ela possui de mais humano, se une para estabelecer a ordem, corporificando regras universais e consensuais para o progresso racional da humanidade. Negar a importância da vacinação e das medidas de prevenção para conter um vírus, não respeitar as etnias e as suas especificidades culturais, normalizar o assassinato de pretos e pobres, discriminar religiosamente, racialmente e todas as formas de desumanizar o outro … são exemplos característicos de tempos de barbárie. Tempos que, o descrédito na política e nas instituições democráticas, nos leva para um horizonte de expectativa de futuros incertos.

É com esse olhar do presente que mergulhamos no passado, com um pulo de aproximadamente cem anos atrás. Coincidentemente, ressalvadas as devidas proporções, anacronismos e posturas dos homens públicos de antanho, Sergipe passava por uma epidemia de varíola.

Naquele contexto houve quem negasse a importância da vacinação e do isolamento social. Todavia, a ciência venceu o medo. O governo do coronel Dr. José Joaquim Pereira Lobo (1918/1922), através de uma política de conscientização, de planejamento e de investimentos na saúde pública, em menos de um ano, venceu o “Orthopoxvirus variolae”, vírus da varíola.

Foto: Reprodução

A varíola chegou a Sergipe através das barcaças vindas do Estado da Bahia. Publicação do Correio de Aracaju, de 6 de novembro de 1919, nos mostra a ação do governo diante de um dos casos da referida doença.

Um caso de Varíola

Na pessoa dum tripulante da barca “Conceição”, procedente da Bahia e ancorada no nosso porto, foi ante-hontem verificado um caso de varíola pelo Sr. Dr. Berillo Leite, inspector da Saúde dos Portos.

O doente foi removido para o Lazareto, e a barcaça foi rigorosamente desinfectada, ficando em observação médica o resto dos tripulantes.

A situação na Bahia chegava a ser aterrorizante para os sergipanos, que recebiam as notícias do Estado vizinho com muito temor devido à proximidade, às relações sociais, econômicas e culturais entre sergipanos e baianos, que, em muitos casos, se confundem. A experiência desses aspectos entre ambas as federações, em momento de epidemias virais, mostrou-se trágico no século XIX, com o “cólera morbus”, que deixou um saldo de mais de 15 mil mortos em Sergipe. O Correio de Aracaju, do mesmo 6 de novembro de 1919, nos apresentou os estragos provocados pela varíola na terra de todos os santos:

A Varíola na Bahia

Os jornais da vizinha cidade da Bahia pintam-nos com cores carregadas o quadro negro que apresenta em sua passagem a varíola por aquela cidade.

Não há mais um leito disponível nos hospitais, o mal continua a alastrar-se em proporções desoladoras e os médicos são impotentes para acudirem a todos os atacados.

Sábado foram enterradas 44 victimas da varíola.

Segunda-feira, até às 8 da manhã, o Desinfectorio Central já havia recebido pedidos para nove enterramentos e cerca de duzentas remoções para o hospital.

Foto: Reprodução

Diante do quadro situacional da Bahia, não tardaria para o vírus chegar a vários municípios sergipanos. Foram eles: Anápolis (Neópolis), Socorro, Aracaju, Propriá, Itaporanga, Boquim, Lagarto, Salgado, Estância, Campos (Tobias Barreto), Itabaiana, Maruim, Rosário e Santo Amaro das Brotas.

Antes de focarmos nos bexiguentos da vila de Santo Amaro das Brotas, local onde o vírus foi mais letal, alguns aspectos da dinâmica social em meio à epidemia da varíola em Sergipe merecem reflexão. Desconstruir uma “barbárie da reflexão” é um caminho heterodoxo frente à produção de discursos fundamentalistas. Logo, esse combate discursivo não deixa de servir como análise comportamental, comparativa, de continuidades e descontinuidades entre passado e presente.

Primeiro, no campo do “mercado simbólico”, os “bens de salvação” foram muito utilizados para a “salvação” das almas dos bexiguentos. Bênçãos de cemitérios, unção dos enfermos, visitas aos variolosos são exemplos de alguns “bens” utilizados naquele período. Em trecho da carta publicada no Correio de Aracaju de 4 de outubro de 1919, o padre de Santo Antônio, Abílio da Silva Mendes, em visita ao Hospital de Campanha de Aracaju (Lazareto), diz: “Ministrei a Extrema-Uncção a dois baianos e ouvir de confissão Sacramental a uma sergipana que estava, todavia, em convalescença.”

Segundo, o negacionismo à ciência. Como disse anteriormente, não faltaram aqueles resistentes às determinações da Ciência em momentos traumáticos como esses. Na mesma carta do padre Abílio, há um trecho que deixa evidente essa questão:

Como tive que passar dois dias no Socorro, não pude escrever logo a v. ex., como desejava, para auxiliar, por ventura, os Srs. médicos, em desfazer certa má vontade que se encontra, entre o povo, em deixar ir para o isolamento os variolosos.

Poderia continuar citando uma série de práticas dessemelhantes ao consensual, estabelecidas pelos órgãos de saúde; a exemplo da ocultação de um cadáver por um médico que acompanhava um paciente. O Correio de Aracaju, de 28 de outubro de 1919, noticiou o caso da não “notificação da Hygiene Pública local o referido caso mórbido, em detrimento dos interesses públicos e em desacordo com as prescripções legaes”. O caso se refere à morte por varíola, no Hotel Internacional de Aracaju, de um “illustre médico da Saúde Pública da Capital Federal, aqui recém-chegado da Bahia”.

Voltando-se para os bexiguetos de Santo Amaro das Brotas, desde muito tempo um assunto chama-nos atenção, qual seja, o “Cemitério dos Bexiguentos no Capote”. Os mais velhos repetem a história de uma época de peste, em que muitos santoamarenses “capotaram”, ou seja, morreram. Todavia, as histórias não precisavam época, se perdiam no tempo… Apenas o local dos enterramentos, o Capote, era conhecido.

1919 e 1920 foram anos marcantes para a histórica e lendária vila de Santo Amaro das Brotas. É provável que aquela história, que ficou na memória coletiva, na oralidade do povo santoamarense, tenha ocorrido entre os anos mencionados. Logo, esse estudo poderá ser aprofundado com análises de outras evidências históricas, a exemplo dos obituários desse período.

Entre as vilas e cidades atingidas pela varíola em Sergipe, aquela que mais teve casos foi a vila de Anápolis (Neópolis), com 600 casos e 20 mortes; e a de Santo Amaro das Brotas teve 448 casos e o número superior de falecimentos, 28 óbitos (Correio de Aracaju, 24 abr. 1920, p.1).

Confrontando dados dos jornais com a Mensagem à Assembeia Legislativa de Sergipe proferida pelo então Presidente do Estado, o dr. José Joaquim Pereira Lobo, os mesmos se confirmam. Segue mensagem do referido administrador:

Uma localidade, que se viu fortemente assediada pela varíola, foi a villa de Santo Amaro […]. Foram dias de angústia que passara a histórica villa, que, na sua diminuta população, teve 448 atacados da doença, e vinte oito victimados. Além da visita do dr. Diretor de Hygiene, também concorreram para a extinção do mal o senhor Alvaro da Silva Teixeira e o sr. Odilon Simões, comissionados pelo governo, e que prestaram todos muito bons serviços (LOBO, 1920, p.70).

Dando vazão à imaginação, percebe-se o motivo deste fato permanecer na memória traumática dos santoamarenses até os dias atuais. No dia 16 de fevereiro de 1919 o pároco e Intendente de Santo Amaro das Brotas, Leonardo da Silveira Dantas, falecia de diabetes, segundo noticiou o Diário da Manhã do dia 18 do mesmo mês. Uma figura popular da sociedade sergipana, por suas querelas que iam da paróquia à política, pranteava a pequena vila. Realmente, “foram dias angustiantes” que passou a comunidade da colina dos “camundongos”.

Para salvaguardarmos as nossas memórias, inclusive as memórias traumáticas, segue na íntegra a publicação do Correio de Aracaju, de 25 de março de 1920, sobre a varíola entre os santoamarenses:

Varíola em Santo amaro

Para a vila de Santo Amaro transportou-se hontem o Sr. Dr. Diretor de Hygiene, que ali fora em visita de inspecção, afim de informar, de visu, ao exmo. Sr. Coronel Presidente do Estado das condições sanitárias actuais da referida localidade.

O Sr Director de Hygiene permaneceu ali durante todo o dia, visitou o Lazareto dos variolosos, bem como quase todos os domicílios onde se achavam em tratamento, e as espessas do governo, atacados por terrível mal, procedendo também à vacinação em todas as pessoas que necessitaram desse meio excellente de prophilaxia, em número de 80.

Eleva-se a cerca de 300 o número das pessoas que já foram acommettidas de varíola, observando na mor parte dos casos a forma confluente e grave.

A cifra da mortalidade feita pelo referido morbos não está proporcional ao número elevado de doentes, nem a forma grave que em sua maioria tem o mesmo apresentado.

Assim é que em 300 pessoas alcançadas pelo mal foram apenas registrados 19 óbitos, pouco mais de 6% coeficiente diminutíssimo como se vê relativamente à média de mortandade que geralmente faz a varíola, que é de 20%, sobretudo nas crises epidêmicas como actualmente se encontra o município de Santo Amaro.

No Lazareto da localidade e em domicílios existem actualmente cerca de 60 doentes, estando uma terça parte desses já em período dessecação.

Em meio à epidemia da varíola, os santoamarenses passavam por um processo de reafirmação da sua fé, com as procissões promovidas pelo Cel. Jacinto Dias Ribeiro em favor da grande reforma da Igreja Matriz de Santo Amaro (1728). Estes atos serviram aos santoamarenses como “bens de salvação” em um momento de angústias.

Os registros deste período apontam para uma efetiva atuação do Governo estadual: a vacinação intensa, a domicílio, seguida da propaganda de incentivo à população; o isolamento social, a desinfecção dos lugares por onde os variolosos passaram, a instalação de lazaretos, entre outras, foram as principais medidas. Aventou-se a vacinação compulsória, todavia, não foi necessário. A sociedade entendeu que as medidas tomadas pela administração pública, com a abertura de subvenções pelo tesouro do Estado e o apoio de particulares, foram as mais eficazes para acabar com o mal em Sergipe.

A capital da República, o Rio de Janeiro, vivia a influência da “Belle Époque” francesa. A capital sergipana, Aracaju, passava por um processo de “saneamento e embelezamento”, com “serviços de drenagem, aterros, exticção de focos de diferentes morbus, eliminação de alguns núcleos de fácil localização de moléstias epidêmicas”. E a Santo Amaro das Brotas dos bexiguentos do Capote veriam as primeiras luzes do progresso em agosto de 1920, com a inauguração da “Escola Comendador Travassos”, pela Liga Sergipense Contra o Analfabetismo.

Quatro anos mais tarde a vila alçaria voos mais altos com a inauguração das “Escolas Reunidas Dr. Esperidião Monteiro”. Finalmente, foi com a certeza de que “o capital mais precioso é a vida” que a sociedade venceu a varíola em terras sergipanas.

Referências:

Correio de Aracaju, 4 out. 1919.

_____, 28 out. 1919.

_____, 6 nov. 1919.

_____, 25 mar. 1920.

_____, 24 abr. 1920.

Diário da Manhã, 18 fev. 1919.

LOBO, José Joaquim Pereira. Mensagem à Assembeia Legislativa de Sergipe, 1920.

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[*] É historiador e professor das redes estadual e municipal de Santo Amaro das Brotas.