Silvaney Silva Santos [*]
O presente me fez buscar no passado uma forma de homenagear as enfermeiras e todos os profissionais da área da saúde de Sergipe, do Brasil e do mundo pelo combate à Covid-19, uma guerra que já chega a matar mais de 2 milhões de pessoas no mundo. 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Momento oportuno para homenagear as mulheres heroínas que não saíram e não saem do front de batalha. Para isso, reunimos alguns textos de jornais que representaram a mulher sergipana, verdadeira heroína, que atuou no contexto da Segunda Guerra Mundial, no inverno italiano. São memórias da luta contra o fazi-fascismo e em prol da democracia mundial.
Eram exigidos alguns critérios para ingressar na Força Expedicionária Brasileira, dentre eles: ser brasileira nata, solteira ou viúva sem filhos, ter entre 20 e 40 anos de idade, possuir diploma de enfermagem ou certificado de curso de samaritana ou socorrista. Três mulheres sergipanas cumpriram tais critérios e foram à Segunda Guerra Mundial pela Força Expedicionária Brasileira (F.E.B.): as febianas, como foram chamadas, a capelense Lenalda Campos, a propriaense Isabel Novais Feitosa e a riachãoense Joana Simões de Araújo.
As representações feitas nos jornais com a chegada de Lenalda Campos a Sergipe, em meados de agosto de 1945, permite-nos perceber o capital social acumulado por essas heroínas, inclusive para empreenderem novas lutas por reconhecimento pós-segunda guerra, quando foram esquecidas e desvalorizadas no seu campo de atuação, a enfermagem.
O Correio de Aracaju de 17 de agosto de 1945 noticiava: “LENALDA CAMPOS chegará amanhã em Aracaju” e continuava, “estamos seguramente informados que chegará amanhã pelo noturno da Leste, às 9 horas, a Tenente Lenalda Campos que integrou o corpo de enfermeiras da nossa Força Expedicionária”. Naquele momento histórico o respeito e a valorização da mulher se ampliaram a todas as sergipanas. As enfermeiras febianas eram o “orgulho da mulher sergipana” que “acompanharam os nossos pracinhas até os gelos da Itália […] com a sua técnica de enfermagem”.
Em Aracaju foi formada a Comissão de Recepção e Homenagem à F.E.B. para homenagear e agradecer a Lenalda Campos pela grande parcela de contribuição que ela deu no extermínio dos vândalos fascistas e na transformação política que o Brasil teria rumo ao regime democrático após o grande conflito. Pois, vivia-se na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e as enfermeiras febianas sergipanas representaram a mulher anti-fascista.
Em entrevista ao Correio de Aracaju de 20 de agosto de 1945, Lenalda Campos falou sobre as suas colegas enfermeiras sergipanas e das dificuldades de comunicação com as enfermeiras americanas:
– Éramos como irmãs, já no trato ininterrupto dos feridos, já nas horas de folga, recordando o Brasil distante; e o que dificultava uma maior camaradagem com as enfermeiras americanas era a linguagem, mesmo assim mantinham boas relações com todas elas. Como sabe, Jane Simões e Izabel Morais eram as colegas sergipanas. Isabel está no Rio e deverá chegar aqui no próximo mês e quanto a Jane, foi licenciada em Maio deste ano, por motivo de saúde, passando bem atualmente.
Perguntada sobre a atuação dos pracinhas, Lenalda Campos disse:
– Os nossos pracinhas elevaram o mais alto possível, o nome do Brasil, pois, em todos os pontos onde estive, os comentários sobre a atuação deles eram os melhores possíveis, igualando, em tudo, à coragem, disciplina, e amor pela causa, aos mais elogiados soldados do mundo.
A febiana falou também do tratamento aos feridos no front de batalha:
– Não tínhamos hospital exclusivamente para brasileiros, porém, em cada Hospital Americano havia enfermarias e salas para os soldados do Brasil, e lá, nada faltava, perecendo até um Hospital de Paz, tal o conforto, o aparelhamento e a alimentação que apresentava. A medicina executada era a mais moderna, com os grande medicamentos surgidos ultimamente e a aparelhagem cirúrgica completa.
No período em que passou em Aracaju e em Capela, sua cidade natal, Lenalda Campos foi muito festejada. Segue na íntegra um dos seus discursos sobre a importância das mulheres na sociedade, da defesa da vida e do combate “aos desalmados nazi-fascistas desta ou daquela cor”.
Discurso da tenente-enfermeira Lenalda Campos
MEUS AMIGOS:
Coitada de mim por estar recebendo tanto, sem ter trazido nada para dar.
O prêmio que me estais conferindo é excessivo.
Nada fiz para merecer a honra —- desta glorificação.
Eu, Jane Simões e Izabel Novais tendo ido ao inferno da Guerra, apenas demonstramos que a mulher brasileira sabe ser digna do seu sexo, da Pátria abençoada onde nasceu.
E, como a mulher sempre foi o símbolo do amor, da bondade e da — não marchamos para os campos de batalha empunhando fuzis.
Toda a nossa arma de companhia era uma bolsa contendo medicamentos.
Nossa missão não era matar.
Era, ainda com sacrifício da própria vida, como a tantas aconteceu evitar a morte, até mesmo a dos nossos inimigos.
Deus permita, minhas patrícias p’ honra nossa, que a história do Brasil continue sem sua figura de mulher na galeria dos tiranos.
Brasileiros e brasileiras: quem viu com os próprios olhos crianças, mulheres e velhos reduzidos a pele e ossos; famintos e quase desnudos, andando ao léu dormindo ao relento e o que é pior, se alimentando do que encontravam, como cães – quem os viu assim- cometerá um crime de lesa-humanidade se ao primeiro contato com a sua gente não fizer o apelo que eu vos faço, neste momento inesquecível da minha vida: odiai para todo sempre, com aquele ódio que enaltece e dignifica, os selvagens e desalmados NAZI-FASCISTAS desta ou daquela cor. Por onde andei era este o estado de alma dos amigos da civilização.
Q—-guerra não pode acreditar que exista lugar na terra para fascistas e nazistas.
É que qualquer tolerância ou conivência com os lacaios daquelas tiranas derrotadas, seria fazer sangrar as feridas, ainda abertas, dos gloriosos pracinhas vivos e um desrespeito monstruoso aos imortais pracinhas que para sempre ficaram no cemitério de Pistoia.
Seria macular o luto respeitoso das viúvas das mães e dos filhos desses heróis pela luta das liberdades humanas.
Seria, finalmente, cultivar o micróbio da pior de todas as pestes: a peste nazi-nipo-fascio-integralista.
Brasileiros: O que esta tremenda Guerra representou para a gloriosa FEB poderá ser dito neste verso de Olavo Bilac: “Foi uma porta de ouro para a glória”.
Eu vos agradeço esta homenagem com um abraço fraternal e comov…
Viva o Brasil!(CAMPOS, 1945, p. 2).
No contexto da Segunda Guerra Mundial a enfermeira voluntária Lenalda Campos era encarregada “no transporte de feridos da África para o Brasil”, depois a mesma foi transferida para a Itália. Em palestra e recepção no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Lenalda Campos mostrou que as guerreiras e guerreiros do front ficaram incomunicáveis com o Brasil, o movimento político pela democracia e as campanhas beneficentes empreendidas pela Legião Brasileira de Assistência não chegaram ao conhecimento das febianas nem dos pracinhas; assim como os programas radiofônicos a exemplo da chamada “Hora dos expedicionários”.
Seguindo uma série de efemérides de fortalecimento do patriotismo, da “pátria mãe” representada pelas mulheres que foram ao front, foram publicados alguns textos, poemas, acróstico de exaltação às mulheres sergipanas, em especial a Lenalda Campos. Estes textos são fontes importantes para se perceber a atuação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, participação de mulheres e de homens neste trágico acontecimento histórico. Memórias que deveriam fazer parte do Currículo Escolar de Sergipe de modo mais específico. Abaixo segue as referidas publicações:
Salve a heroína!
É a primeira heroína, desta guerra nefanda, a pisar o solo sergipano.
Ei-la de retorno à terra berço, agora que emudece o maquinário bélico e brilham com fulgor as luzes da paz.
Que alvoroço de emoções não se esforça por controlar, neste momento de glória! Sei que mais poderosa que a concentração de suas grandes reservas morais, a lágrima rebentará dos seus olhos bonitos, em eloqüência silenciosa de triunfo e de alegria, ao abraçar os seus queridos.
As famílias dos heróicos pracinhas, autoridades, estudantes, a massa anônima da sua terra-primeira vítima da cobardia e hediondez nazi-fascista- a esperam numa consagração. Todos querem vê-la, a heroína, mulher de Sergipe que não recusou “sangue, suor e lágrimas”, tributo citado por Mr. Curchill para a vitória da liberdade.
O sacrifício dessas denodadas filhas de Sergipe, Lenalda Campos, Jane Simões, Isabel Marais- é uma página de ouro na história feminina da terra de Aperipê e um tribunal de condenação para vergonha e remorso dos traidores velados.
As vidas que tombaram em alto mar, caçadas pela rapina eixista, os corpos despedaçados pela metralha inimiga, os membros inutilizados dos que voltam as sangrentas e terríveis batalhas de Monte Castelo – imortalidade da invicta FEB, tudo, todo esse drama de dor, toda essa invocação de sofrimento ressalta a coragem inaudita, o amor patriótico de três jovens sergipanas, símbolo excelsas virtudes cristãs.
Seus corações de jovens intimoratas fremiam de revolta e compaixão pela incontáveis vítimas da barbárie nazi-nipo-fascista e num sublime espírito de renúncia (só encontrado nas almas altruísticas, ricas de fé) ao conforto do lar e carícias paternais – voluntárias da Pátria – marcharam ao lado dos gloriosos pracinhas brasileiros, para curar-lhes as feridas, amenizar com uma palavra de esperança, as saudades da família distante.
Que seja o dignificante exemplo de Mulher Brasileira – seu desprendimento, sua atitude decisiva em prol das grandes causas – o toque de alerta para os apáticos, o raio de sol para os cegos pelo fanatismo.
Que sirva de terapêutica, conversão e cura radical para os políticos egoístas e os portadores da monstruosa anomalia- tendência para o totalitarismo.
A heroína recém-chegada, a humilde saudação de uma sergipana que aspira a um Brasil feliz – democrata e culto como as pátrias de Roosevelt, e de Churchill trabalhador como o País de Stalin.
À família Campos, que, detentora do rico excrínio poético de Cleómenes, conquista mais uma jóia de alto preço – a epopéia de Lenalda, tenente-enfermeira da FEB – Parabéns! (FARIA, 1945, p.2).
Acróstico
– Á Lenalda Campos, segundo Tenente-Enfermeira do Ar que fez da FEB o seu Dever!
L-utaste no sangue da Guerra,
E-nfermeira do meu Brasil!
N-avegaste em céu sem terra,
A-lvorando com Glória neste céu de anil.
L-ivraste a dor, do cárcere do desprezo
Dando com carinhos o conforto do amor…
A- rrancaste das chagas dos pracinhas – a dor.
C-ruzaste com heroísmo os caminhos do front,
A-ndando sem cessar sobre o perigo.
M-archastes alterosa ao lado do ideal,
P-ondo o sacrifício no altar glorioso do Dever.
O-rgulhas-te do teu “verde-oliva” contra as forças do mal,
S-orrindo Vitórias… porque sempre sonhaste vencer (MELO, 1945, p.2).
Todos querem ouvir a tua voz
Á Lenalda Lima Campos
Todos querem apertar as tuas mãos, amiga,
Porque elas trazem a última saudação
dos que tombaram nos campos de batalha…
Todos querem fitar demoradamente os teus olhos,
porque eles refletem as lutas a que assistiram
e trazem mensagens doloridas…
Não vês, amiga, como é grande a confusão
quando passas nas ruas?
Pois bem, essa gente que te cerca
Quer ouvir em tua voz
A voz dos filhos, irmãos, noivos e esposos…
Quer te ouvir falar dos que foram e ficaram
derramando sangue para fertilizar ainda mais
a glória do seu POVO!
Todos querem apertar as tuas mãos…
Todos querem fitar os teus olhos…
Todos querem ouvir a tua voz
E agora, amiga, é teu dever
apertar a mão dessa gente.
Olhá-la com carinho
E falar-lhe com bravura.
Tens a obrigação sagrada
De afastar a saudade dos olhos do POVO
E avivar-lhe a chama
Pelo culto dos seus HERÓIS (MELO, 1945, p.2).
Arrefecido o apelo patriótico, diminuído o momento festivo e contidas as emoções, as febianas se deparavam com uma triste realidade, a falta de reconhecimento pelo Exército por tudo que as enfermeiras fizeram nos campos de batalha da Segunda Guerra. As heroínas enfermeiras, com a Força Expedicionária Brasileira dissolvida, foram jogadas à própria sorte, colocadas no esquecimento. Começava ali mais uma luta, agora no campo institucional. Como disse inicialmente, o capital social acumulado com a vitória no front, as entrevistas, as publicações e os vínculos construídos no campo militarista foram estratégias importantes de lutas para que as febianas fossem reconduzidas ao Serviço Ativo do Exército em 1957 através de lei federal de número 3160/1957. Por fim, foi com muita luta a conquista da recundução das febianas ao Exército. Coloquemos no devido lugar essas guerreiras; “heroínas da democracia”. E estendamos as homenagens e agradecimentos a todas as mulheres.
Referências:
Correio de Aracaju, 17 ago. 1945. p.4. nº 3981.
Correio de Aracaju, 20 ago. 1945. p.4. nº 3982.
Correio de Aracaju, 28 set. 1945. p.4. nº 4014.
CAMPOS, Lenalda Lima. Correio de Aracaju, 21 ago.1945. p.2-4. nº 3983.
FARIA, Hilda Sobral de. Correio de Aracaju, 22 ago. 1945. p.2. nº 3984.
MELO, Everaldo Lídio. Correio de Aracaju, 24 ago. 1945. p.2. nº 3986.
MELLO, João. Correio de Aracaju, 29 ago. 1945. p.2. nº 3989.
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[*] É historiador/pesquisador e professor dos sistemas públicos Estadual e Municipal de Educação de Santo Amaro das Brotas.
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