Jeová Santana [*]
Os olhos de dona Iolanda não nos davam sossego. Da janela de sua casa, onde hoje fica o Bompreço, no Siqueira Campos, radiografavam os possíveis desvios, na hora do recreio, dos pupilos que gravitam no pátio do Instituto Cristo Rei. No prédio também funcionava o Instituto Dom Avelar Brandão Vilela. A diferença ficava por conta das cores da farda, timbrada por uma indefectível gravatinha, que adorávamos puxar um dos outros para magoar a titela. O pátio, espaço de aprimoramento das habilidades futebolísticas, tinha na lateral a parede da Igreja Nossa de Lourdes, regida pelo monsenhor Lima, parente de dona Iolanda. Ele dividia as funções sacerdotais com as de agente cultural pois era mantenedor do Cine Vitória, no Centro de Aracaju. Não me lembro se nessa benesse também se incluíam os lendários Vera Cruz e Bomfim, no Siqueira, que enchiam nossas tardes de domingo com céleres episódios de karatê, kung fu e caubói.
Aos olhos de hoje, fica difícil acreditar que um dia a arte de ensinar foi pautada em medos e punições. Levar ou receber “bolos” e reguadas, nas famigeradas sabatinas, era um momento terrível, acrescido do fato de termos, como algoz ou vítima, o companheiro com quem dividíramos um gol de placa depois de uma tabelinha Pelé-Coutinho. Em tempos em que ainda se vê a falta de equilíbrio entre ordenação e liberdade no tocante à escola, a figura de dona Iolanda, como diretora, vira e mexe fulgura na minha memória. Nos colégios, que ela regia com rigor, trabalhava a irmã de uma tia, que conseguiu que minha irmã e eu fôssemos dispensados de pagar os dois cruzeiros da mensalidade. Éramos uns pobres de Jó.
A infância naqueles tempos era muito comprida. Fui para a escola aos sete. Minha mãe deu seu contributo me instigando a soltar os beiços na hora da soletração. Não demorei muito para desasnar. Por causa da desenvoltura na hora de ler, vivi, na segunda série, um momento de glória quando, ninguém menos que dona Iolanda encarregou-se de saber como andávamos naquele quesito. Recebi uns afagos por ter dado às vírgulas o tratamento adequado. Porém, dois anos depois fui parar no limbo. Meti-me nuns catiripapos coletivos. Na hora de dividir as responsas, lá estava ela a bramir aquele “Até você!?”, tão duro quanto os castigos no couro.
Todo adulto, sob o olhar infantil, é sempre um gigante. Ainda mais se tiver a voz poderosa de dona Iolanda. Reencontrei-a num evento muitos anos depois com a estatura devidamente ajustada. O fato de ela ter me reconhecido foi um presente. O menino de então havia apagado quaisquer resquícios de mágoa. Conseguiu sobreviver e deslocou para o plano do imaginário todo sentimento de vingança. Esta ficou no espaço da literatura com aquele Sérgio do Ateneu, de Raul Pompéia, a segurar “o vigoroso bigode” de Aristarco, o diretor tirano e capitalista. Nesses tempos em que os castigos físicos, lembrando Theodor Adorno, foram substituídos por “interdições psíquicas”, as quais transformam a escola em alvo de matanças reais e simbólicas, e expõem o professor a todo tipo de agressão, as palavras do “homem sanduíche da educação nacional”, não encontram eco: “ – Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos.” Não precisávamos chegar a tanto. A barbárie, infelizmente, continua a bater em nossa porta.
[*] É Mestre em Teoria Literária pela Unicamp, Doutor em Educação e Ciências Sociais pela PUC-SP, professor da Universidade de Alagoas, escritor e autor de diversos livros – Dentro da Casca (1993), A Ossatura (2002), Inventário de Ranhuras (2006), Poemas Passageiros (2011), entre outros títulos.
Foto: Denilma Diniz Botelho
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