GILFRANCISCO [*]

Fui amigo de Luciano Passos e de sua companheira a poeta Lita Passos, desde os anos oitenta, quando passei a colaborar no jornal Reflexos e Universos, editado pela Nova Primavera. Luciano da Silva Passos, nasceu em 4 de maio de 1944, na Fazenda Campo Limpo, na mesma fazendo onde nascera sua tia, a poeta Jacinta Passos (1910-1973), município de Cruz das Almas (BA), filho de Ramiro Eloy Passos e Maria Ubaldina Silva Passos. Formado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador – UCSAL –, foi eleito para a Câmara de vereadores de Cruz das Almas, nos anos, 1976, 1983 e 1989.

Luciano Passos Foto Reprodução

Em Cruz das Almas onde sempre morou, juntamente com Lita Passos desenvolveram inúmeras atividades culturais na cidade: teatro, cinema, artes plásticas, editoração, música e literatura. Luciano foi uma personalidade marcante, um empreendedor cultural, audaz por suas ações, viveu sonhando com um mundo melhor, lutando para tornar esse sonho realidade. Trabalhou com intensidade pela intelectualidade local, em prol da poesia baiana, quase sempre sem a ajuda do poder público.

Capa do Livro Cruz das Almas, Estrela Guia e Lençol Perpétuo

Perdi a conta de quantas vezes mandou o carro me apanhar em Salvador para passar alguns dias com ele. Tinha um grande coração, uma ternura imensa, uma companhia agradável. Recebia todos em sua residência, para resolver os mais variados problemas da comunidade. Quando não resolvia, encaminhava para que o mesmo fosse solucionado. Na residência do casal, tinha uma suíte anexa a casa, que se encontrava sempre disponível para os amigos, que não eram poucos. Por lá passaram assistidos por mim, Paulinho da Viola, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, Ton, Ton Flores, Sergio Sampaio, Capinan, Xangai e outros.

Capa do Livro Santa Cruz dos Laranjais Foto Reprodução

Quando Luciano da Silva Passos faleceu em 14 de julho de 1997, aos cinquenta e três anos, deixando dois filhos, Lucas e Bárbara e um livro inédito de poesia, eu já estava residindo em Aracaju, mas recebi dele, dois meses antes, seu último livro publicado, Santa Cruz dos Laranjais (prosa). Lembrar do amigo neste momento em que completa quinze anos de sua morte, é recordar dos bons momentos em que passamos na Fazenda Campo Limpo, acompanhada da professora Dalila Machado (1947-2021) e do músico Ton Ton Flores. Lá observamos os animais da fazenda, ouvimos o poeta contar uns causos interioranos, de maneira muito agradável e despretensiosa. Só me resta reproduzir o artigo Língua Bailarina: canto do povo de um lugar, publicado em 1994 na Tribuna da Bahia, por ocasião do lançamento do livro, Língua Bailarina:

Capa do livro Língua Bailarina Foto Reprodução

Em Língua Bailarina, Luciano Passos – Editora Nova Primavera, prefácio de Dalila Machado e ilustrado por Cristina Thomas, 1994, – a poesia é mais que necessária, é o poeta que ouve o silêncio para falar, buscando a inteireza do ser. Seu pensamento de globalidade, de lógica, de história, de emoção, de sentimento e de esperança, inegavelmente retrata uma postura não apenas literária, porque é antes de tudo, existencial, por isso mesmo, impossível separar o poeta de sua obra.

Não é evidente por acaso que deve ser entendida como um dos aspectos do crescimento das alternativas para determinar sua produção (Casulo de Vidro – 1985; Cavalo Estrelado – 1987; Corpo Aceso – 1989) nestas condições particulares de tempo e de lugar, no campo da criação literária e do pensamento em geral. Os poemas de Língua Bailarina, testemunha este propósito e esta busca, principalmente se nos detivermos em sua concepção da linguagem e da relação entre a linguagem e a realidade.

Na verdade, o poeta só deseja algo mais amplo, abrangente e ambicioso (contra um cotidiano perecível e insone), uma expressão da busca intentada por todos os ângulos da compreensão do homem original e da sociedade. A fim de encontrar para si mesmo e consequentemente para o outro, porque a linguagem está ficando menos precisa e seu pensamento menos rigoroso.

Capa do livro Corpo Aceso Foto Reprodução

Sua poesia manifesta-se com tanto poder de comunicação, que ofusca a própria realidade da poesia. Surpreendendo-nos antes de tudo pelo contraste entre a palpitação da palavra e a imagem, onde a consciência reconhece seu ser no ser do mundo. Língua Bailarina é um olhar que a barca simultaneamente a vastidão dos seres e o abismo interior da linguagem. Longe de se esgotar em si mesma, esse livro tem sua atualidade reafirmada a cada leitura que se faça de sua obra, provocando admiração e respeito, tanto nos adversários como nos seguidores, suscitando perguntas que todas as respostas conhecidas não satisfazem. Em tudo isso, a voz poética de Luciano Passos revela um timbre acústico que desperta esse tão importante, tão singular e tão expressivo poeta cruz-almense.

Língua Bailarina é um ser vivo uma poesia que não precisa de elogios subjetivos e sim de uma interpretação objetiva, pois, passo a passo o poeta chega àquela convicção de sua poesia e, com ele, o da poesia brasileira. Aqui, o poeta reassume sua constante dialética, conseguindo afinal impor um contexto coerente e envolvente, na exigência de um maior apuro técnico de composição.

Este livro é sem dúvida um despertar, natural evolução do poeta, de livro a livro, prevalecendo novos aspectos não encontrados nos livros anteriores. Nesta poética, o que se nota é a variedade que prossegue por páginas e páginas, sempre com a mesma velocidade. Cuja qualidade gramatical das palavras assume um caráter básico da construção de partes inteiras (internas) de cada poema. Viajando na conjugação com os processos de criação da arte moderna, o autor quer permanecer ao mesmo tempo fiel às exigências da sua arte de ser humano que deseja identificar-se com os violentos conflitos do mundo.

Portanto, a poesia de Luciano Passos se sublima a possibilidade de um renascer cultural, através da intertextualidade do conhecimento dos ciclos da Natureza com os poderes do espírito, pronto a desmascarar as fragilidades do ser humano, ao ser menosprezo pela estupidez dos homens. Dando-nos conta do caminho percorrido por todos os seus recantos, uma lição de palavras e imagens onde o verso aspira à forma essencial, sensível a problemática do homem. Desenvolvendo incessantemente sobre a vida real, o mundo real e irreal, marcando sua presença definitivamente pela unidade de toda sua obra.

O livro traz poemas elaborados com um requinte artesanal de sóbria elegância, uma poesia da melhor qualidade, que mantém um ritmo envolvente capaz de iluminar e fazer brilhar o mais banal dos eventos da vida cotidiana é na realidade, a soma de todos os medos. Apesar de ser exigente em estabelecer os critérios da criação, é um livro de breve leitura e longa meditação. Uma leitura educativa para esses tempos em que a biotecnologia e a informática prometem um Novo Éden: quanto mais o leitor trouxer, mais vai tirar de um livro como esse. É uma daquelas leituras de refinada maturidade que gratifica quanto mais você degustá-las. O poeta Luciano Passos escreve tal como é, tem uma língua e pode cantar.

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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com