GILFRANCISCO [*]

Exaurido o ciclo das vanguardas e instaurado o ciclo repressivo político e ideológico, só nos resta à poesia brasileira o espaço marginal da produção alternativa. Estávamos no início dos anos 70, quando um enorme e heterogêneo contingente de poetas investiu – usando como armas os seus versos – contra o sufoco da censura e repressão implantadas no Brasil a partir de 1964. Por que marginal? Didaticamente explicando era porque nessa época os autores que não eram muitos conhecidos, não tinham seus textos publicados pelas grandes editoras. Eram eles mesmos que produziam seus textos e arrumavam uma forma de divulga-los. Por isso são conhecidos como poetas marginais e sua poesia a poesia marginal. Muitos foram os poetas marginais dos anos setenta, que se tornaram grandes letristas da Música Popular Brasileira – MPB: Jorge Mautner (1941); Torquato Neto (1944-1972); Waly Salomão (1944-2003); Antônio Carlos Brito – Cacaso (1944-1988); Charles 1948); Chacal (1951); Geraldo Carneiro (1952); Antônio Risério (1953); Tite de Lemos; Ronaldo Santos; Ronaldo Bastos, Bernardo Vilhena (1949) dentre outros. O termo marginal vulgarizou-se no universo linguístico brasileiro a partir da década de 50, quando os planos desenvolvimentistas geraram uma consciência eufórica do progresso. Acreditava-se na transformação rápida de um país subdesenvolvido numa nação de alto nível capitalista. Nos anos setenta a palavra marginal associou-se à produção artística, principalmente literária, ultrapassando tanto o seu significado pejorativo quanto econômico. A poesia marginal abriu um novo e vasto campo para a investigação literária, uma poética com textura gramatical complexa e eficiente.

Por outro lado, não é possível conceituar a “poesia marginal” sem efetuar um estudo dos temas, cuja rede a construiu. Ela trouxe, sem dúvida, a abertura, sensualizou o amor, erotizou o poema e falou claro sobre o que antes era velado e submerso na cena do sonho, ou seja, escandalizou. Durante os anos setenta especificamente na Bahia e no Rio de Janeiro, o artigo do dia era poesia: nos bares da moda, nas portas de teatros, nos corredores das universidades, nos lançamentos, livrinhos circulam e se esgotam com rapidez. Alguns mimeografados, outros em xerox ou impressos em antigas tipografias suburbanas, raríssimos em offset, romperam o bloqueio das editoras aos novos escritores, em especial aos poetas; imprimindo em matrizes a sua poesia e depois as vendendo em praças públicas, elaborando um produto graficamente pobre, simples, cujo raio de ação, raras vezes, ultrapassava o ambiente onde foi confeccionado.

Foto Reprodução Capa do livro 26 Poetas Hoje

Ela é “marginal” na medida em que essas condições bem como sua distribuição foi feita à margem da política editoria vigente, visto que a própria precariedade de sua produção a liberta do quadro alienante e dominador da cultura oficial. Desta forma, devemos destacar que este grau de artesiana é de suma importância, pois valoriza a relação autor-leitor através da obra, que se transforma não apenas em veículo, mas em objeto lúdico da obra de arte.

Os anos de 1975-1976, no Rio, foram especialmente marcados por uma série de acontecimentos; de uma maneira ou de outra, relacionados com a produção literária, por exemplo: o número de livros de poesias alternativas lançados era bastante elevado bem como era curto o espaço de tempo entre um lançamento e outro. De certa maneira esse boom poderia ser explicado pelo autoritarismo vigente que, limitando a participação dos jovens na vida política, deixando-lhe aberta apenas à porta da literatura para onde foram canalizados os anseios, os traumas e as verdades de toda uma geração reprimida pelo poderio militar.

Do ponto de vista estético, as inovações dos “marginais”, produtores intelectuais de editoração, limita-se ao anticonvencionalismo gráfico. Nela estariam circunscritos os inúmeros textos da vanguarda, como recusa de uma linguagem do poder. Mas, tudo isso, Waly Salomão e Torquato Neto já anunciavam a virada do formalismo experimental, quando publicaram: Me Segura qu’eu, vou dar um troço, 1972 e Os últimos dias de Paupéria, 1973, para a nova produção poética de caráter informal.

Foto Reprodução Capa do livro Me segura queu vou dar um Troço, do poeta Waly Salomão

Durante quase toda a década houve inúmeras publicações em grupo ou separadamente: Navilouca, Qorpo Estranho, Polém, Pipa, Código, Muda, José, Anima, Gandaia, Escrita, Ficção, Desafio, Paralelo, Polo Cultural, O Saco, Inéditos, Flor do Mal, GAM, Presença, Malasarte, Alguma Poesia, Intercâmbio, Graúna, Garatuja, Almanaque Biotônico Vitalidade, etc. Portanto, a editoração marginal ou independente continua a existir num país como o nosso, enfrentando todas as possíveis dificuldades, o escritor queira ou não, é sempre um marginal. Temos aqui a marginalidade editorial, a que se refere Heloisa Buarque de Holanda.

Grupo como Frenesi, da PUC, reunia professores e alunos, gente de duas gerações, uma, cuja trajetória, se encontrava em melhor situação que o pessoal da “geração mimeógrafo” em termos de prestígio intelectual. O lançamento da coleção ocorreu em outubro de 1974, reunindo cinco trabalhos de autores diferentes: Corações Veteranos, Roberto Schwarz; Passatempo, Francisco Alvim; Grupo Escolar, Antônio Carlos de Brito (Cacaso): Na busca do sete-estalo, Geraldo Eduardo Carneiro e Motor, João Carlos Pádua (textos e fotos).

Nuvem Cigana, grupo originário da Escola de Comunicação, foi talvez o que conseguiu mais notoriedade em virtude de se encontrar mais bem equipado e de ter tido também a maior permanência no tempo. Além de reunir uma grande diversidade de atividades (poetas, músicos, arquitetos, desenhistas) e até mesmo um bloco de Carnaval: o Charme da Simpatia.

Faziam parte do grupo: Charles, Creme de lua, Perpétuo Socorro, Coração de Cavalo; Chacal, Quampérios, Olhos vermelhos, Nariz Aniz, Boca Roxa; Ronaldo Bastos, Canção de Búzios; Guilherme Mandaro, Hotel de Deus; Bernardo Vilhena, Atualidades Atlânticas, era editor das revistas Ponte e Malasartes; Ronaldo Santos, Vau Talvegue, 14 Bis.

Ao contrário dos outros grupos que se caracterizam por reunir conjuntos bastante específicos de produtores, a coleção “Vida de Artistas” (1974-1975), agrupa pessoas diferentes e que se encontraram em meio a toda a movimentação e a consequente discussão do fenômeno da “poesia marginal”, desta forma estão presentes poetas como: Cacaso, Beijo na Boca, Segunda Classe (com Luís Olavo); Eudoro Augusto, A vida alheia; Luís Olavo Fontes, Prato Feito; Chacal, América; Carlos Saldanha, Aqueles papéis.

É neste clima de repressão e de “desbunde”, de questionamento do próprio pensamento de “esquerda”, de desarticulação da vida universitária e do movimento estudantil  que surge Folha de Rosto na Faculdade de Letras da UFRJ. Basicamente o núcleo do grupo era formado pelo baiano Claudius Portugal (criador da marca), Adauto de Souza Santos, César Cardoso e Maria Parulla, que em setembro de 1975, editam a revista Assim, onde reunia textos teóricos sobre literatura, poemas, contos e entrevistas. Traz colaboradores como: Luís Soares Dulci, José Castelo, Sandra Castelo Branco, Severino Méier, Durval de Barros, além de seus organizadores. Boa parte desses colaboradores vai aparecer na antologia Folha de Rosto.

Foto Reprodução Capa do livro Cores VIvas, de Antonio Risério

Ainda neste ano, o poeta Claudius Portugal lança seu primeiro livro Konfa & Marafona (Carta a Família) – contos, com prefácio de Heloisa Buarque de Holanda. Neste livro deveria participar Adauto, no entanto, problemas surgiram durante sua impressão, impossibilitando a ideia inicial do projeto, em reunir contos e poemas. O livro de Adauto foi editado posteriormente, alguns meses depois, precisamente em novembro e se intitulava Konfa & Marafona II, com subtítulo de (Urbanoide).

A publicação seguinte a aparecer foi à antologia Folha de Rosto, em 1976, que vinha novamente reunir o mesmo grupo da Faculdade de Letras, além de outras pessoas a elas ligadas. O último trabalho do grupo, ainda pelo selo Folha de Rosto foi o livro que Claudius publicaria nesse mesmo ano, Em Mãos, esse agora de poemas, acompanhado de desenhos e algumas fotos.

João Cerqueira de Santana Filho (1953), Tucano – sertão baiano, o Patinhas, o poeta catingueira, um dos editores do jornal alternativo Boca do Inferno publicado na Bahia em 1973. Dirigiu a Sucursal da Revista Veja na Bahia e levando pela sua competência foi dirigir a sucursal de Brasília. Patinhas era uma pessoa muito simples, fumante, usava óculos tipo John Lennon, bornal de couro e alpercatas de catingueiro. Um nordestino cortês, inteligente tinha um bom papo e gostava da minha pessoa, porque sabia que eu estava sempre acompanhado com a sua irmã caçula, Fátima (Balila) Santana protegendo a recém-chegada a capital baiana, além de frequentar o apartamento de sua mãe localizado no Edifício Mari Glória, no Bairro Canela.

Foto Reprodução Capa do livro Imprensa Alternativa e Poesia Marginal, anos 70, de GILFRANCISCO

Parceiros de Morais Moreira, Gereba e Capenga em várias canções, inclui em meu livro Imprensa Alternativa e Poesia Marginal, anos 70 (Aracaju, Faculdade Atlântico, 2006), a canção Sinal de Amor e de perigo, letra de Patinhas, música de Capenga, interpretada por Diana Pequeno (LP RCA, 1981). Vejamos:

À noite a cidade parece que some

Perdida no sono nos sonhos dos homens

Que vão construindo com fibras de vidro

Com canções de infância, com tempo perdido

Um grande cartaz, um painel de aviso

Um sinal de amor e de perigo

Há tempo em que a terra parece que some

Em meio à alegria e à tristeza dos homens

Que olhos pros campos, pros mares, cidades

Pras noites vazias, pra felicidade

Com o mesmo olhar de quem grita no escuro

O melhor foi feito no futuro

Enquanto o amor foi pecado e o trabalho um fardo

Pesado passado presente maldado

As flores feridas se curam no orvalho

Mas os homens sedentos não encontram regato

Que banhe seu corpo e lave sua alma

O desejo é forte, mas não salva

Enquanto a tristeza esmagar o peito da terra

E a saudade afastar as pessoas partindo pra guerra

Nós vamos perdendo um tempo profundo

A força da vida, o destino do mundo

O segredo que o rio entrega pra serras

Haverá um homem no céu e deuses na terra

Foto Reprodução Centauro sem Cabeça

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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com