GILFRANCISCO [*]
No fim da década de 60, com o endurecimento do regime militar e a declaração dos atos institucionais, estavam de volta à censura prévia, as perseguições e o arbítrio. Os censores instalados nas redações e o controle rígido da informação transformavam os grandes jornais em veículos de notícias oficiais. Através de uma tática que visava vencer pelo cansaço, essa censura fazia com que os jornais alternativos tivessem um trabalho dobrado, o de montar e remontar cada edição, muitas vezes inviabilizando economicamente essas publicações. A imprensa alternativa acabou se tornando o principal espaço de reorganização política e ideológica das esquerdas nas condições específicas do autoritarismo. Um dos jornais de maior influência de toda a imprensa alternativa dos anos 70 foi o Opinião, dirigido por Fernando Gasparian, embora fosse o Pasquim o mais vendido (ambos os jornais não disputavam um mesmo público as propostas eram bastante diferentes).
O Governo militar (1964-1985) pode ser dividido em três fases. A primeira (governos Castello Branco e Costa e Silva) compreende o período de implantação das chamadas “reformas de base” do ciclo militar. A segunda fase (general Garrastazu Médici), iniciada com o AI-5 em dezembro de 1968 e encerrada com a posse do general Ernesto Geisel, caracterizou-se pelo estrangulamento do espaço político, pela ação de censura e pelo desmantelamento da guerrilha. A terceira e última fase (de Geisel a João Batista de Figueiredo) foi de crise econômica, ascensão inflacionária, escândalos administrativos e crescimento da oposição.
Suprimida a voz popular e escondidas às contradições do País, através de constante repressão por forma mais variada, as oposições entraram num beco sem saída. As suas organizações se renderam, se ocultaram ou caíram na luta armada, clandestina. Os grupos armados tornaram-se mais ativos em 1969.
A década de 70 tem início numa conjuntura de franco fechamento político. As tentativas de resistência à consolidação do regime de 64, que arregimentam setores radicalizados da classe média, especialmente a massa estudantil, são desarticuladas pelo Estado que, com a edição do AI-5, não deixa dúvidas sobre sua disposição de assegurar a “paz social”. A intervenção nos movimentos contestatórios, a extinção das representações estudantis, os decretos 477 e 228, as demissões e aposentadorias na universidade, a censura prévia na imprensa, livros e espetáculos, enfeixam a implantação do autoritarismo político preparando o país para ingressar numa nova era, sob o signo do binômio segurança/desenvolvimento.
De 1969 (quando a censura se acentua) até 1975 (quando ela é formalmente suspensa), os jornalistas, em sua maioria, adotou uma atitude de resistência passiva, na grande imprensa, ou de militância ativa, na chamada imprensa nanica (expressão cunhada pelo escritor João Antônio em artigo para o Pasquim), que floresceu nesses anos (Opinião, Pasquim, Movimento, Em Tempo, Coojornal, Boca do Inferno, Voz da Unidade, Tribuna da Luta Operária, Brasil Mulher, Nós Mulheres, Ex, Lampião, Mais um, Versus, Repórter, Hora do Povo, Classe Operária, dentre outros). Como não havia modo algum de furar o bloqueio da censura, sob pena de fechamento da publicação, o que seria ainda mais desastroso, adotaram-se artifícios variados.
Na imprensa alternativa (expressão lançada pelo jornalista Alberto Dínes (1932-2018) em sua coluna “Jornal dos Jornais”, na Folha de São Paulo) em geral brutalmente censurada, não havia espaço sequer para sutilezas. Mas seus jornalistas, muito competentemente cuidaram, de escapar do noticiário factual e da crítica direta, partindo para a descrição de um quadro de fome, desemprego e miséria – as mazelas, enfim, de um modelo econômico e social injusto – sem adjetiva-lo, o que bastava para tornar evidente a falência de um país considerado por seu presidente, o general Médici, uma “ilha de prosperidade em um mundo conturbado”.
Silenciada a grande imprensa brasileira, abria-se espaço para o surgimento da imprensa alternativa, quase toda de caráter político ou porta-voz de movimentos como o feminismo. A imprensa alternativa fazia oposição sistemática ao regime militar, denunciava a tortura e a violação dos direitos humanos e criticava o modelo econômico. Vivíamos a época do chamado “milagre brasileiro”, que se mostrou, afinal, só um malogro.
Os jornais de oposição surgiram de todas as formas, nasciam de discussões em pequenos grupos e ganhavam mercado seja pela venda de mão em mão, seja por intermédio das bancas de jornal, com todas as dificuldades implícitas da época e mais as inerentes à distribuição no intrincado mercado de jornais e revistas.
Circularam publicações que defendiam temas que iam da ecologia ao direito de fazer poesia marginal. Os jornalistas se encarregavam de tudo nesses jornais, desde pauta e elaboração das reportagens até distribuição em bancas e em esquemas improvisados, através de movimentos organizados nas periferias das cidades. Os alternativos foram jornais que influenciaram gerações afora, expressando a indignação que toma conta do ser humano ao ver cerceado algo fundamental em sua vida: a liberdade.
O fim do ciclo alternativo, marcado pelo final da década de 70, é comumente concebido através da lógica da ditadura, que conforme perdia vigor, também acabava por mentalizar a crítica que lhe era endereçada. A suspensão do AI-5, em 31 de dezembro de 1978, marcava o lento processo de abertura política, que pouco a pouco faria com que a grande imprensa acabasse por veicular críticas ao governo, enfraquecendo o monopólio alternativo.
Em 1978, foi suspensa a censura. Superada a fase da censura prévia nas redações, setores intransigentes da extrema direita, CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e MCC (Movimento de Caça aos Comunistas) – o primeiro ligado à Aeronáutica e aos civis anti-esquerdistas, o outro, mais ligada ao Exército -, passaram a lançar mão de uma nova forma de “censura”, primeiro colocavam cartazes que continham ameaças ao dono da banca: cuidado, o teu pavio já está aceso, com algumas ilustrações de bananas de dinamites prestes a explodir. Em seguida passaram aos atentados às bancas de jornal que vendiam publicações alternativas. Para se defenderem, os jornaleiros afixaram cartazes anunciando que não vendiam determinados jornais.
Nos anos 80, com o gradual restabelecimento das instituições democráticas, a imprensa reconquistou suas garantias. Começava então uma nova era no jornalismo brasileiro. A chegada do método de impressão a frio, offset, os jornais alternativos eram rodados nas mesmas gráficas dos grandes jornais, barateando os custos operacionais. Com o desenvolvimento da informática, os grandes jornais e editoras começam a substituir as máquinas de escrever pelas telas dos terminais de computadores.
Entre 1964 e 1985 nasceram e morreram entre nós, mais de 300 periódicos (jornais e revistas) geralmente de tamanho tabloide, que tinham como traço comum a todos eles, a coragem de oposição aos militares que comandavam o país a ferro e fogo. Vivíamos, é verdade, um período difícil que durou exato 21 anos.
Foi através do jornalismo de oposição e inovação que tive como companheiros os jornalistas Tibério Canuto, Oldack Miranda, Adelmo Oliveira, Emiliano José da Silva, Almeida, Lindalva Maria, João Henrique Coutinho, quando iniciei como muitos estudantes universitários da época, na profissão de jornalista, trabalhando em Salvador nas sucursais de jornais, que ficaram conhecidos nacionalmente como imprensa alternativa, nanica, independente, underground: Movimento (junho, 1975 – novembro, 1981), que unia várias correntes de oposição à ditadura militar; Em Tempo (1977-1980), foi um racha em Opinião (1971-1977) que gerou Movimento e Em Tempo; e finalmente Voz da Unidade (mar, 1980 – 1986), começou quando vários anistiados retornaram ao país. Sua meta era formar a opinião, não informar fatos, apontando as diretrizes adotadas pelo Partido Comunista Brasileiro – PCB.
Em Salvador, a sucursal do Movimento era chefiada pelo poeta e advogado Adelmo Oliveira, cujo escritório funcionava numa pequena sala do 5º andar do Edifício Adolfo Basbaum, nas proximidades da ladeira de São Bento, no Centro comercial de Salvador. A sala encontrava-se sempre cheia: jornalistas, sindicalistas, estudantes, assinantes, líderes comunitários, religiosos (Adelmo era advogado do Mosteiro de São Bento e tinha fortes ligações com Dom Timóteo Amoroso Anastácio), alguns proprietários de bancas de revistas recebiam periodicamente a visita de um funcionário da polícia federal procurando por um de nós.
Às vezes era difícil trabalhar durante o dia, motivo pelo qual saíamos sempre tarde do escritório. Morávamos no mesmo bairro, – Pituba. Eu na rua Goiás e Adelmo, na Paraíba. Por isso, íamos sempre juntos para casa à noite. Após o encerramento das atividades no jornal, caíamos na boemia da rua Carlos Gomes ou Faísca para degustar uma boa carne de sol com pirão de leite no Tabuleiro da Baiana. Adelmo preferia às vezes um ensopadinho de língua no Porto do Moreira, no Largo do Mocambinho ou uma feijoada baiana no restaurante do Biu, situado no 1º andar de um velho sobrado da rua Carlos Gomes e, por fim, no bar do saudoso amigo Sandoval (o velho Sandoval do Varandá onde o mano Caetano cantava todas as noites), já próximo das nossas residências, encerrávamos mais uma jornada.
Aos domingos, religiosamente (obedecendo à escala) íamos ao Aeroporto 2 de Julho, rebatizado de Luís Eduardo Magalhães, apanhar os pacotes dos jornais: Movimento, Nós Mulheres, Brasil Mulher e depois Em Tempo, para colocarmos nas bancas de revistas pela manhã do dia seguinte. Era uma luta, como dizia Adelmo Oliveira.
Para a nova geração que não a conheceu a imprensa alternativa foi um agrupamento de diversos periódicos de ideias e criações, que serviu à difusão do pensamento e estimulou os diversos segmentos da sociedade, oferecendo espaço para sua participação criativa e /ou crítica. Desta forma, iniciando uma batalha geralmente sutil e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra, entretanto, no universo jornalístico, para ver essa batalha por dentro, desvendando o mito da objetividade, saber quais são as fontes e discutir a liberdade de imprensa do Brasil. Foram anos de uma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações de seus alvos.
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[*] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
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