GILFRANCISCO [*]

Poucos homens conseguem coordenar teoria e prática de maneira tão harmoniosa quanto Renato Mazze Lucas. Teoria e prática se fundem, vida e obra se fundem. Autor de dois únicos livros, Anum Branco (1961), publicado pela Editorial Vitória, órgão do comitê central do Partido Comunista do qual era filiado desde 1946 e Anum Preto (1967), publicado pela Editora Leitura, dirigida por José Barboza Mello, um dos membros da direção do Partido. Renato Mazze Lucas faleceu em 1985, há exatamente 36 anos.

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Nascido em Pojuca, cidade baiana pertencente à mesorregião metropolitana de Salvador, em 16 de abril de 1919, filho único do telegrafista Raimundo Lucas Leão e D. Petrina Mazze Lucas. Seus avós eram italianos, Caetano Lucas Leão, saiu direto da Itália para vir morar no Mangue Seco. Era um pequeno comerciante, que num certo dia, de uma hora para outra, viu seu patrimônio, inclusive um resto de dinheiro que trouxe da Itália, ser coberto pelas areias brancas das imensas dunas ali existentes. O seu avô materno, também italiano, morava nas redondezas, no povoado Terra Caída, às margens do rio Indiaroba, importante afluente do Piauitinga.

Por causa do pai Sr. Leão, chamavam Renato de Leãozinho. Aos dois anos de idade veio com os pais residir em Aracaju. Um seu tio Rafael Lucas, faroleiro da Atalaia, fora depois transferido para Mangue Seco. Daí as viagens de Renato à Estância e a bela praia de Mangue Seco. Vem talvez dessa praia o seu grande amor pelo mar e pela gente do mar: pescadores e marinheiros.

Renato Lucas fez sua iniciação escolar no Colégio Tobias Barreto, do famoso professor Zezinho Cardoso, tendo concluído o ginásio em 1934, mas não teve condições financeiras para continuar os estudos, e somente em 1937 prestou vestibular à Faculdade de Medicina da Bahia, matriculando-se no mesmo ano.

Faculdade de Medicina

Residindo em Salvador (BA) a partir de 1936, onde cursava o Pré-Médico, Renato Mazze Lucas morou na pensão de estudantes da velha Mariá, que ficava na Praça da Piedade, tendo como colega de pensionato o também jovem, Manoel Cabral Machado, estudante do curso Pré-Jurídico. Mais tarde, Renato passou a residir na pensão dos pais do amigo Walter Barbosa da Silva, num sobrado da Rua Carlos Gomes.

O clima da pensão era de puro divertimento. Viviam os acadêmicos a promover “perfídias e trotes” uns com os outros e Renato Mazze foi uma dessas vítimas. Segundo relato de Manoel Cabral o fato se desenrolou da seguinte maneira: “Após uma baderna, envolvendo um esqueleto humano, objeto de estudo de um acadêmico de medicina, Lauro Fontes seu conterrâneo concebeu um trote contra Renato Lucas. Conseguiu um cartão timbrado da Delegacia Auxiliar e datilografou uma intimação afim de que Renato fosse prestar esclarecimentos, acusado do crime de desrespeito aos mortos. Com a intimação, o estudante apavorou-se. Não conhecendo ninguém em Salvador, poderia ser preso e processado. A turma, colaborando no trote, alarmou-o ainda mais. Renato não dormiu e pouco comera no jantar. No dia imediato, à hora marcada, despediu-se de nós: (“vou a la policia”). Na Delegacia Auxiliar, descobriu inexistir qualquer intimação. Compreendeu, então o trote. Todos, porém, passaram a gozá-lo: vou a la policia”. 1

Sergipe Del Rey

Em Aracaju, a maior parte de sua vida estava junta às águas do rio Sergipe. Pescava, fazia canoas, comendo e acompanhado em roda de conversa com amigos. Alma aberta e compreensiva de boemia (era abstêmio) desprezava riqueza e honrarias. Preferia o convívio da gente simples.

Com o falecimento do pai, em julho de 1939, foi obrigado novamente a interromper os estudos, retomados, com dificuldades, em 1940, vai ser representante de laboratório, para ajudar financeiramente e consegue concluir o curso em 1943, na especialidade de Psiquiatria, quando interno do Hospital Juliano Moreira, de Salvador.

Formado, retornou para Sergipe, onde inicialmente foi exercer a profissão em Japaratuba e Aquidabã, não se adequando vai clinicar na próspera cidade de Itabaiana, onde permaneceu por uma década, residindo na Rua das Flores, s/n, e na Rua Barão do Rio Branco, 87. Além do consultório particular passou a atender também pela Previdência Social. Em Itabaiana foi logo estabelecendo relações com a intelectualidade local.

O Partido Comunista

Fundado a 25 de março de 1922 por Astrojildo Pereira, os comunistas desde 1930 sempre se preocuparam em manter relações com a intelectualidade progressista. O papel central desempenhado pelos comunistas na luta contra o nazifascismo no Brasil e no mundo atraiu a simpatia de parcelas significativas da intelectualidade brasileira. O prestigio da URSS e de Luiz Carlos Prestes, o “cavaleiro da esperança”, estava no seu auge. Artistas e intelectuais acorrem em massa ao Partido Comunista que representava as aspirações mais avançadas da humanidade.

Mesmo durante o Estado Novo (1937-1945) os comunistas mantiveram sob sua direção algumas publicações importantes que dedicavam grande espaço ao problema da cultura nacional. A revista “Seiva” da Bahia foi uma das primeiras publicações de esquerda criadas após a repressão de 1937. “Seiva”, revista mensal de cultura (Mensagem aos Povos da América), fundada em dezembro de 1938, indo até 1943 em sua primeira fase, retornando em 1950, permanecendo até 1952. Esta publicação vai representar uma corajosa presença no cenário intelectual do país, pregando a liberdade e a democracia. Foi dirigida por João Falcão, Rui Faço, Jacob Gorender e outros. Vários intelectuais sergipanos membros do Partido, como José Sampaio, Enoch Santiago Filho, Aluysio Mendonça Sampaio, Abelardo Romero, Joel Silveira, Jenner Augusto e Walter Sampaio colaboraram na revista.

Na década de 1940, o Partido Comunista constituiu uma ampla rede de informação que abarcava oito diários nos principais estados brasileiros: Tribuna Popular do Distrito Federal; Hoje de São Paulo; O Momento da Bahia; Folha do Povo de Pernambuco; O Democrata do Ceará; Tribuna Gaúcha do Rio Grande do Sul; O Estado de Goiás e Folha Capixaba do Espírito Santo.

A direção nacional do Partido colocou ainda em circulação várias revistas: Problemas (1947) principal órgão teórico do Partido, era dirigida por Diógenes Arruda; Fundamentos (SP) revista de cultura moderna dirigida por Vilanova Artigas, tendo como redator o poeta Afonso Schmidt; Momento Feminino; Terra Livre; Emancipação; Divulgação Marxista; Revista do Povo; Horizonte; Paratodos; Literatura (1947) dirigida por Astrojildo Pereira. Entre 1944 e 1947 os comunistas retornaram uma atividade editorial intensa e sistemática. Leôncio Basbaum foi encarregado de organizar uma editora partidária em moldes empresarias. Assim nasceu o Editorial Vitória, que seria a editora mais importante dos comunistas brasileiros nos anos de 1940 a 1950.

A Literatura Realista

Foto: Capa do livro O Contista Renato Mazze Lucas, de autoria de GILFRANCISCO

Com ideias socialistas desde a época de estudante, em 1946, com a redemocratização do Brasil e a legalidade do Partido Comunista, Renato filiou-se ao partidão e concorreu a uma cadeira no Legislativo, obtendo noventa votos. 2. Daí ter sido preso em setembro e outubro de 1952 no 28º BC, por atividades subversivas quando da reação anticomunista do Governo do Presidente Getúlio Vargas. Na chefatura de Polícia, com Osório Ramos, José Rosa, Otávio Dantas, Roberto Garcia e outros permaneceram presos por vários meses, inclusive na Penitenciária do Estado. Foi justamente neste período em que Renato leu muito e escrevia os primeiros contos, vindo a publicá-los depois na imprensa local.

Retornando ao ano de 1946, em decorrência de sua atuação profissional na cidade de Carira (SE), onde às segundas-feiras (a cada 15 dias), mantinha aberto um consultório para atendimento à população, que ele teve a oportunidade de conhecer a jovem Helena Rabelo, sua futura esposa e mãe dos seus filhos. 3. Helena pertencia a uma família de políticos partidários da UDN (União Democrática Nacional), e o conheceu quando tinha apenas 19 e ele 27 anos de idade. Natural de Paripiranga (BA), aos três anos de idade mudou-se com a família para Carira. Apesar de estudar em Aracaju, foi em uma de suas férias escolares a este município, quando ajudava seu irmão no cartório, que conheceu Renato.

Casaram-se tempos depois e foram residir na cidade de Itabaiana. Inicialmente residem na Praça da Feira, na casa que tinha residido Oviêdo Teixeira, 4 vizinho do conhecido armarinho de Antônio de Rosinha. Depois se mudaram para a Rua das Flores, onde permaneceram até sua transferência para Aracaju. Foi nesta rua que nasceram os seus primeiros filhos, Vladimir e Anísio Dário. Os dois mais novos, Raimundo e Tânia já nasceram em Aracaju. Infelizmente o primogênito Vladimir, faleceu aos sete anos de idade, vítima de leucemia. Este nome foi dado em homenagem ao líder comunista russo Vladimir Ilich Ulianov, Lênin (1870-1924).

O gosto pela literatura aproximou o jovem médico com Antonio Oliveira, José Crispim, Tenisson Oliveira, José Silveira, entre outros, que na década de 1940, cultivavam uma espécie de confraria cultural em Itabaiana. Fundado o Grêmio Literário e Esportivo de Itabaiana, passou a ter a cidade serrana um ambiente propicio a uma fermentação e atividades dignas de registros. Além da literatura, o grupo mantinha atividades de cineclubistas, onde o intercâmbio com Aracaju permitia a exibição de bons filmes no antigo cinema de Zeca Mesquita. O Grêmio promove frequentemente palestras políticas e culturais; leitura e crítica de clássicos da literatura nacional e estrangeira; comícios e trabalhos em favor de campanhas como “O Petróleo é nosso”, “Nossos filhos não irão para a Coréia”; “Apelo da paz de Estocolmo”, etc. além das atividades esportivas e sociais.

Itabaiana foi de fundamental importância para a formação cultural do escritor e militante Renato Mazze Lucas, que desde muito cedo, manifestara gosto pela leitura e se nutria de conhecimentos, na biblioteca do pai, homem dado às leituras de Jack London, Stevenson, Julio Verne, entre outros.

Envolvido nas atividades com a vida itabaianense, Renato Lucas abriu uma firma comercial, a “Oliveira e Lucas Ltda”, em sociedade com o seu grande amigo Antônio Oliveira. Foram dez anos de convivência com o espírito irônico e irrequieto da alma itabaianense. Renato já chegou a Itabaiana professando a ideologia do Partido Comunista Brasileiro, e logo tratou de manter contato com o sapateiro José Martins, o maestro João de Matos e o alfaiate Nilo Carvalho. Foi por sua influência que o amigo Antonio Oliveira ingressou nos quadros do Partido Comunista. Nas eleições de 1947, o PC apresenta chapa própria para a disputa de Deputado Estadual Constituinte, e Renato concorre ao pleito para ajudar o Partido, ao lado de personalidades da vida sergipana como o médico Percílio Alves de Oliveira, Ofenísia Freire, Franco Freire, Carlos Garcia, Thomas Mutti, Hernani Prata e Armando Domingues, eleito, por ter sido o mais votado do Partido.

Repressão  

Em maio de 1947, o Poder Judiciário cancelou o seu registro, passando o Partido Comunista à ilegalidade, e no início de 1948 o Legislativo considerou extintos os mandatos dos representantes eleitos. Várias manifestações de protestos ocorrem em todo o país. Em Sergipe, foi marcado um grande ato de protesto em 30 de novembro, tendo sido proibido pelo Governador do Estado, José Rollemberg Leite (1947-1951). Mesmo assim, os comunistas resolveram realizar o protesto, em frente ao antigo Cinema Rio Branco.

A polícia, comandada pelo capitão de Exército Djenal Tavares de Queiroz, investe contra os manifestantes assassinando a tiros o militante Anísio Dário. 5. Em 1952, em plena efervescência da guerra fria entre URSS x EUA, o núcleo comunista de Itabaiana é reprimido, sendo todos os seus integrantes presos e processados. Renato Mazze Lucas, que já havia sido preso várias vezes, desta vez chegou a permanecer na penitenciária por mais de onze meses. Após está prisão, por decisão de foro íntimo, deixou a militância do Partido Comunista.

Em 1955 a convite do amigo Dr. José Machado de Souza, Renato juntamente com a família veio morar em Aracaju, sendo nomeado alienista-assistente e indo trabalhar no Serviço de Assistência a Psicopatas, chegando mais tarde ao posto de diretor. No governo de Leandro Maynard Maciel (1955-1959) assume a direção do hospital psiquiátrico Adauto Botelho. Um ano depois fez o curso de Psiquiatria e Higiene Mental no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, concluindo assim, sua especialização.

Mesmo sendo um médico de reconhecida competência, testemunhas afirmam que se percebia nele certo desestimulo pelo exercício da profissão. Não concordava com a utilização dos métodos adotados pela psiquiatria.

Separação

Foto: Reprodução Revista Época da qual Renato Mazze Lucas foi colaborador

Homem de coração expansivo não conseguindo vencer uma mulher próxima, por um romance extraconjugal, recebeu da esposa compreensiva. Mas ressentida propôs uma separação amigável. Renato aceitou e assumiu as responsabilidades domésticas. Passou, agora a residir com dona Petrina, sua progenitora na Praia 13 de Julho. E separados viveram. Visitavam-se e saíam juntos para almoços ou jantares, sempre como amigos. E assim foi até o fim, mesmo após o término do referido romance. Com o desaparecimento de dona Petrina, ficou sob os cuidados dos filhos ele e a esposa e de uma delicada empregada, dona Adélia Ferreira.

Aposentado das atividades médicas deixara os seus doentes pobres. Por longo convívio com os loucos, aguçara a sensibilidade para compreender as pessoas e justificar as fraquezas humanas. Suas ideias revolucionárias, seus sonhos de transformação do mundo, juntamente com o material da experiência, aproveitado na capitação mnemônica, sempre se destinam às elaborações afetivas da ternura. Assim é Renato Mazze Lucas e são assim seus contos. Isso é que importa, como verão os leitores dos seus livros é precisamente a substância humana dessa mensagem.

Em 1967, Renato Mazze Lucas, ocupou a vaga da cadeira nº 12 da Academia Sergipana de Letras, deixada por Mons. Carlos Costa, cujo patrono é Severiano Cardoso.

Com a velhice, engordou demasiado, o que lhe obrigava a um regime alimentar duro e a operações melindrosas. O escritor sergipano faleceu inesperadamente aos 66 anos de idade, em 13 de dezembro de 1985, embora nesses últimos anos, vivesse doente e solitário, pouco se tratando ou cuidando. Há exatamente vinte nove anos, seu corpo fora encontrado ao amanhecer da sexta-feira, treze, por dona Adélia. O atestado de óbito registrou acidente vascular cerebral, como causa do óbito.

Renato colaborou em vários jornais e revistas: Época (SE); O Momento (SE); Folha Popular; Alvorada (SE); Revista Aracaju (SE); Revista da Academia Sergipana de Letras e deixou um livro de contos inédito, “O Tempo e o Homem”.

Contista cronista

Renato Mazze Lucas é um grande contador de histórias. Seus textos passados com ele e sua gente, onde procura exaltar sempre as qualidades positivas dos personagens, enaltece o espírito forte que distingue o homem brasileiro, o trabalhador brasileiro. O dirigente comunista, Astrojildo Pereira, no prefácio bem elaborado de Anum Branco e outros contos. Rio de Janeiro, Editorial Vitória, 1961, 234 p. – 22 contos, escritos nos anos de 1956, 57, 58 e 59, alguns anteriormente publicados na imprensa local –, abas assinadas por L.F. 6, com capa e ilustrações do artista plástico sergipano, Leonardo Alencar – aborda, com felicidade, a questão do conto: “Se me sobrasse tempo, tomaria esta coletânea de contos como pretexto para uma digressão mais ou menos brilhante – e certamente bem mais pretensiosa – sobre o “conto”, sua problemática, sua história, suas modalidades, suas tonalidades, etc. Poderia fingir uma grande pesquisa e uma ainda maior erudição – bastando para isso folhear os excelentes ensaios de Hermann Lima.”

Astrojildo tece ainda alguns comentários sobre a psicologia dos seus personagens, Anum Branco, livro de estreia de Renato Mazze Lucas: “Algumas das histórias contadas neste livro se passam num hospital de alienados, onde se acotovelam médicos, enfermeiros, soldados – e loucos de vários graus de loucura. A imaginação poderia jogar-se aqui em acrobacias psicológicas, explorando o desequilíbrio e o desregramento próprios do ambiente para construir perturbadores, com alucinações reais e irreais, suscetíveis de abalar o próprio juízo do leitor. O nosso contista soube resistir à fácil tentação, e seus loucos são loucos (“normais”), que se movem como tais dentro de suas páginas. No caso presente, o contista é também médico, alienista, e seu oficio consiste em curar os doidos existentes e não em contribuir para aumentar o número deles, a pretexto de fazer literatura”.

O princípio fundamental do Realismo socialista é a captação da realidade com a visão partidarista, objetivando uma tomada de posição explícita a favor da construção do socialismo. Da fusão entre o partidarismo e o chamado romantismo revolucionário derivou a concepção esquemática e maniqueísta dos temas e personagens.

Renato Mazze Lucas é um contista de transição, e por isso mesmo o que melhor sintoniza com a fase atual da “redemocratização” do país, com este momento em que nos esforçamos para acertar o passo com o mundo. Esses contos transitam nas camadas incultas e miseráveis da população, pois Renato não se limitou a sofrer a dura condição do meio. Identificou-se com ele, não apenas por força das circunstâncias, mas pela força da ternura que se expandia em lirismo no seu espírito. Eles nos oferecem uma espécie de mergulho na atmosfera mazzeana, permitindo-nos uma visão autêntica, sem mistificações, servilismos de forma ou de conteúdo.

Ao publicar seu primeiro livro, Renato Mazze Lucas, conquistou na terra sergipana, a fortuna crítica e ainda a louvação de intelectuais do Rio de Janeiro como Astrojildo Pereira, Nelson Werneck Sodré e Renato Jobim. Renato recebeu vários prêmios: Câmara Municipal de Aracaju (1961); Revista Pulso (1965): Prefeitura Municipal de Aracaju (1966).

Foto: Reprodução Capa do livro Anum Preto

Anum Preto. Rio de Janeiro, Editora Leitura, 1967, 167 p. (21 contos), abas assinadas por Abdon Lima e capa de Lobianco. Renato Mazze Lucas viveu toda a sua vida junto aos pobres loucos, amenizando-lhes os sofrimentos e as necessidades. Em seus contos a bondade humana transborda para seus irmãos do mundo, põe nesses personagens um poço de si mesmos, dos seus sentimentos. Esses personagens transitam pelas ruas, nas cidades de Sergipe e Bahia, estão presentes no mar da mãe Iemanjá, cada um narrando sua própria história de vida a seu modo, triste ou alegres carentes de ternura e piedade.

Pois bem, como afirmei anteriormente, seus contos têm a mesma seiva humana em que se alimentaram aqueles personagens de Máximo Gorki. Tudo o que lhe saía da pena estava marcado pela veemência, pelo arrebatamento, pela intensidade da sua arte narrativa, pelo colorido que sabia imprimir a cada um dos seus escritos. São contos nascidos sob o signo da rebeldia dos vagabundos, da gente simples, dos loucos das ruas e dos asilos. Em ambos os livros, Anum Branco e Anum Preto, esses contos, seguem, porém, a tradição realista, libertando-se, contudo do relato oral. Utilizava às vezes, o corte vertical dos personagens, para revelar-lhes a vida interior.7.

Já a aceitação crítica de Anum Preto no Sul do país deixou a desejar e consequentemente refletiu negativamente em Sergipe, onde a imprensa local limitou-se a pequenas notas durante o lançamento. Vejamos um trecho de Fausto Cunha, crítico renomado e autor de livros importantes para a historiografia literária brasileira como O Romantismo no Brasil – de Castro Alves a Sousândrade, publicado no Correio da Manhã, ao analisar publicações de vários contistas brasileiros: “Outra estreia, está inteiramente fracassada: Anum Preto e outros contos, de Renato Mazze Lucas. Marinheiro e médico, com uma experiência humana que parece ter sido rica, escasseia-lhe o conhecimento da língua literária e não dispõe do instrumental mínimo a qualquer criador. Alguns de seus contos se aguentam pelo próprio assunto. Refiro-me especialmente aqueles da vida marinheira. Quando o médico aparece, com seu didatismo provinciano, a leitura se torna insuportável. É curioso que, num homem “telúrico”, o descritivo seja quase sempre livresco”.

Outra crítica sobre Anum Preto que ficou insustentável para o contista, foi a do jornalista Carlos Alberto, o popular Chatô, publicada no Diário de Aracaju, onde desapontado com a qualidade dos novos contos de Mazze Lucas afirma que “Anum Preto não acrescenta nada ao panorama do conto nacional. Aliás, a primeira indagação que se faz ao ler-se, O Conto dos Camarões, Iá e a narrativa dos dois irmãos e o pano de bilhar, é se os escritos de Renato Mazze Lucas são contos ou crônicas”. E mais adiante põe em dúvida o gênero literário ao qual pertence o livro e acrescenta: “Assim, o leitor mais exigente fica diante de uma dúvida imediata: para contos, falta quase tudo nas realizações de Anum Preto, para crônica fala o lirismo, a observação rápida, a integração”. E finaliza: “trabalho mais bem realizado de Anum Preto é o único conto do livro: Enterro”. Que o leitor fique com a palavra, se contos ou crônicas, pouco importa, pois, os contos de Renato Mazze Lucas possuem uma homogeneidade de concepção dando mostras de profundo conhecimento da matéria.

Conto  

De gênese desconhecida, o conto remonta dos primórdios da própria arte literária. O emprego do vocábulo “conto” sofreu as vicissitudes históricas experimentais pela forma, designava a simples enumeração ou relato de acontecimentos, sem vincular-se particularmente a determinado tipo de expressão literária. No século XVI, surge o primeiro contista em Língua Portuguesa, dentro da acepção moderna: Gonçalo Fernandes Trancoso, autor dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, publicados em 1575.

Araripe Junior (1848-1911), crítico com produções em prosa de ficção e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, caracterizou o conto da seguinte forma: “O conto é sintético e monocrônico; o romance, analítico e sincrônico. O conto desenvolve-se no espírito com um fato pretérito, consumado; o romance, como a atualidade dramática e representativa. No primeiro, os fatos filiam-se e percorrem uma direção linear; no segundo, apresentam-se no tempo e no espaço, reagem uns sobre os outros, constituindo trama mais ou menos complicada. A forma do conto é a narrativa; a do romance, a figurativa”.

Geralmente o conto é definido como sendo uma forma narrativa em prosa, de pequena extensão e se diferencia do romance e da novela não só pelo tamanho, mas por características estruturais próprias. E trata de uma determinada situação e na de várias, e acompanha o seu desenrolar sem pausas, nem digressões, pois o seu objetivo é levar o leitor ao desfecho, que coincide com o clímax da história, com o máximo de tensão e o mínimo de descrições. Portanto, quanto mais concentrado, mais se caracteriza como arte de sugestão, resultante de rigoroso trabalho de seleção e de harmonização dos elementos selecionados e de ênfase no essencial. O conto elimina as análises minuciosas, complicações no enredo e delimita fortemente o tempo e o espaço.

O filósofo marxista húngaro Georg Lukács (1885-1971), disse no seu livro A Teoria do Romance, publicado em 1920, que o romance é a história de um herói insatisfeito, que busca valores autênticos num mundo degradado (quer dizer, roto, descosido, malfeito). Ou seja, o romance procura representar o mundo como um todo: persegue a espinha dorsal e o conjunto da sociedade. O conto é a representação de uma pequena parte desse conjunto. Mas não de qualquer parte, e sim daquela especial de que se pode tirar algum sentido (alguma lição, se preferir), seja ele positivo ou negativo, não importa.8.

No Brasil, a grande prosa modernista viria, sobretudo, do Nordeste: Raquel de Queiros (1910-2003), Graciliano Ramos (1892-1953), Dias da Costa (1907-1975), José Lins do Rego (1901-1957), José Américo de Almeida (1887-1980), e o conto serviu para a descoberta do espaço brasileiro, trazem à tona em seu estilo claro e preciso a política as desigualdades sociais, os momentos de rebeldias de nossa história recente, os flagrantes de vidinha do roceiro, suas pequenas aspirações, os limites de suas ações nas terras do patrão, sua linguagem pitoresca, enfim a estrutura do conto se adequava exatamente à expressão da cor local. Há contos de conteúdos denso e psicológico, fantásticos, simbolistas, de mistérios e policiais, de fadas, de aventuras, etc. Para um entendimento, mas abrangente da trajetória do Conto no Brasil, ver: Variações sobre o Conto, Hermann Lima. Rio de Janeiro – Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde, 1952; Evolução do conto brasileiro, Edgard Cavalheiro. Rio, Mistério da Educação e Cultura (Serviço de Documentação nº74), 1954; A Arte do conto, R. Magalhães Júnior. Rio de Janeiro, Bloch Editores, 1971; 22 Diálogos sobre o conto brasileiro atual, Temístocles Linhares. Rio de Janeiro, José Olympio Editora/conselho Estadual de Cultura, 1973; Os Três Reais da Ficção – O conto brasileiro hoje, Wendel Santos. Petrópolis, Editora Vozes, 1978; Conto brasileiro contemporâneo, Antônio Hohfeldt. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1981; Teoria do Conto Nádia Battella Gotlib. São Paulo, 10ª edição, 2000 e Itinerário do Conto (interfaces críticas e teóricas do moderno short story), Hélio Pólvora. Ilhéus, Editora Editus, 2002.

NOTAS

1. Réquiem para um contador de histórias, Manoel Cabral Machado. Aracaju, Jornal da Cidade, 22 e 23 de dezembro, 1985.

2. Concorreram pelo Partido Comunista Brasileiro trinta e dois candidatos a uma vaga no Legislativo do Estado de Sergipe, sendo eleito um único candidato Armando Domingues da Silva, com 657 votos.

3. Dona Helena Rabelo Lucas, viúva de Renato Mazze Lucas, continua vivendo em Aracaju, juntamente com seus três filhos: Anísio Dário, Raimundo e Tânia.

4. Oviêdo Teixeira (1910-2001), empresário e político, começos aos 9 anos o trabalho, ajudando na casa Mesquita durante a semana, em Itabaiana, indo às feiras do antigo Saco do Ribeiro (hoje Ribeirópolis), nas segundas-feiras, vendeu tecidos, primeiro em banca, depois na pequena loja Casa Teixeira (1929).

5. Em homenagem ao líder morto Anísio Dário, Renato Mazze Lucas colocou o nome do seu segundo filho, hoje dentista do IPES – Instituto de Previdência do Estado de Sergipe. Ver artigo Assassinado em plena via pública – Anísio Dario, Gilfrancisco. Aracaju, Jornal do Dia, 29 e 30 de novembro, 2012.

6. Provavelmente um militante do Partido que não podia ser identificado.

7. www.informesergipe.com.br

8. www.informesergipe.com.br

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[*] É  jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com