GILFRANCISCO [*]

Em novembro de 2001 estive no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, na abertura da exposição “Gráfica Utópica – Artes Gráfica Russa, 1904-1942”. Esta exposição reunia cartazes e panfletos russos dos primeiros 50 anos do século 20, que funcionaram como instrumentos de propaganda da Revolução Soviética. Trata-se de um acontecimento artístico da maior importância, pois foi uma das primeiras vezes que, no Ocidente, pôde-se ver e julgar essas coleções.

A maioria destas obras de arte nunca tinha saído da Rússia. Na verdade, a “Gráfica Utópica” era uma pequena parte (150 obras) da exposição Paris-Moscou, do Museu Georges Pompidou, que mostrou, em 1979, 2.500 obras e o grande momento de liberdade criativa da arte soviética dos anos vinte. Esta semana fui surpreendido com a chegada de um exemplar enviado pela Cosac Naify Edições, do livro “A geração que esbanjou seus poetas”, de Roman Jakobson (1896-1982), sobre a poesia de Vladimir Maiakóvski (1893-1930), texto escrito em 1930 logo após a morte do poeta amigo.

A cuidadosa edição, traduzida e apresentada por Sonia Regina Martins Gonçalves e abas de Sérgio Alcides, traz 6 ilustrações e capa de Aleksander Rodchenko, o mais importante e versátil integrante do Construtivismo, um dos máximos expoentes da vanguarda soviética dos anos 20 e 30, criando trabalhos excelentes e inovadores em quase todos os campos das artes. Utilizou pinturas, esculturas, desenhos, colagem, fotomontagem, fotografia, capas de livros e revistas, pôsteres, anúncios, projetos arquitetônicos e até mesmo mobília, tudo a serviço das idéias revolucionárias.

“Em cada uma das minhas obras faço uma nova experimentação, com um valor diferente em relação à anterior”.

Rodchenko

Primeiros passos

Fotos: Divulgação / Agência Russa

Aleksander M. Rodchenko nasceu em 23 de setembro de 1891 na cidade de São Petersburgo. Seu pai, filho de um servo, trabalhava na coxia de um teatro; sua mãe era lavadeira. No começo de 1900, sua família se muda para uma cidade da província Kazan, no Oeste da Rússia, onde Rodchenko se matriculou no Departamento de Arte Figurativo da Escola de Belas Artes, onde se concentrava a pintura russa do final do século passado. Antes de sua graduação, em 1914, conhece na Escola Varvara Fedorovna Stepanova (1894-1958), que se converteria mais tarde em sua mulher, e toma contato com o grupo de artistas e escritores futuristas russos como David Burliuk, Vasilli Kamenski, e Vladimir Maiakóvski. Logo que chegou a Moscou, em fins de 1915, Rodchenko se inscreve na seção gráfica da Escola Stroganov de Artes Aplicadas.

Em 1916 marca sua presença entre a avant-gard do movimento, incluindo-se entre os expositores na inauguração da mística “Magazin”, organizada por Vladimir Tatlin. Ali ele apresentou uma série de obras gráficas realizadas com régua e compasso, junto a obras de Tatlin, Kasimir Malevich, Ivan Bruni, Ivan Kliun, Lyubov Popova, Aleksandra Exter, Nadezhda Udaltsova e Maria Vasileva. Não muito depois é envolvido com o serviço militar e se afasta da produção artística até o final de 1917.

A Revolução de Outubro forçou a artistas e intelectuais a tomar difíceis decisões políticas, dando como resultado a emigração de muitos. Rodchenko e outros membros da avant-gard de imediato se ligaram aos bolcheviques e, apesar de ser um grupo pequeno, conseguiram um grande alcance dentre as tendências da época, determinando seus ideais da cultura comunista.

Entre 1918 e 1921 a criatividade de Rodchenko parece haver intensificado, estabelecendo uma prática que persistiria além de sua carreira artista. Começou a realizar série de trabalhos, nos quais explorava individualmente suas premissas formais através de discretas trocas e permutações. Nesta altura, Rodchenko é influenciado por Malevich, (que começou a pintar, com uma tendência abstrata), depois partidário do Construtivismo de Tatlin. Como outros muitos artistas dessa época de fervor artístico, experimentou com diferentes técnicas de expressão artística, estudando a pintura, a fotografia em profundidade, a fotomontagem, com o fim de obter imagens sempre inovadoras.

Rodchenko foi um dos artistas russos que se identificaram com o governo revolucionário após outubro de 1917. Um ano depois trabalhou no bureau da Sessão de Artes Visuais (IZO) de Moscou, passando depois a chefiar o Museu da Pintura. Depois de vários anos de investigações e ter efetuado pesquisas sobre a cor pura, sobre o movimento, escolheu o caminho de uma arte “produtivista” em oposição à arte “pura”, consagrando-se, principalmente, ao desenho industrial, às artes gráficas e a fotografia.

A partir de 1921, Rodchenko deu uma guinada e se identificou, quase exclusivamente, com a arte aplicada, voltada à transformação social. Em 1925, Rodchenko compra em Paris uma nova câmara e realiza sua primeira grande série de fotografias em ambientes externos e se dedica cada vez mais a fotografia. Em abril de 1928, foi acusado de “formalismo burguês”, por usar “ângulos oblíquos” de fotógrafos imperialistas do Ocidente. Esse estilo pouco comum ao fotografar, bem como os seus esforços em desfamiliarizar os objetos, torná-los “estranhos”, por isso foi bastante atacado pela burocracia stalinista. Rodchenko contestou veemente aos ataques, mas procurou gradualmente adaptar-se ao novo clima político. Passou a trabalhar em vários periódicos. Em 1929, ele se une ao grupo Outubro, que anunciava unir a arte avançada e a classe operária. Mas em 1932 denunciam sua fotografia, sendo excluído do grupo.

Stalin, completamente afiançado no poder, juntamente com o Partido Comunista, suprime todos os grupos artistas e cria uma única união de artista sob seu controle: o Realismo Socialista, como único estilo e forma aceitável oficialmente. A partir de 1933 Rodchenko é proibido de fotografar sem prévia autorização. Em meados dos anos 30 retoma a pintura vanguardista e inovadora que ele havia abandonado em 1921;

Às últimas décadas de sua vida, Rodchenko passou isolado, amargurado, desmoralizado e pobre. Em seu Diário, publicado logo depois do fim da II Guerra Mundial, escreveu: “Já não precisam de mim, sou totalmente desnecessário, quer eu trabalhe ou não, quer eu viva ou morra. Poderia mesmo estar morto, sou o único que se preocupa com minha própria existência. Sou um homem invisível”. O utópico sonho que havia nutrido sua criatividade na juventude, se converteu finalmente no seu mais terrível pesadelo. Rodchenko morre em Moscou a 3 de dezembro de 1956.

“Sou tão interessado no futuro que gostaria de ser capaz de ver vários anos adiante”

Rodchenko

Construtivismo

Essa palavra se refere a uma série de correntes de pensamento em diferentes áreas do conhecimento (cada uma delas não tem necessariamente relação com as outras): Na educação, o construtivismo é uma teoria a respeito do aprendizado. Na filosofia, o construtivismo se refere a uma crítica contra o realismo medieval e ao racionalismo clássico. O construtivismo também é uma corrente de pensamento nas ciências políticas e na teoria das relações internacionais.

Na história da arte, design gráfico, desenho industrial e da arquitetura, o construtivismo foi um movimento estético ocorrido na Rússia de 1914, que pregava uma arte pura, influenciada pela indústria. E teve vários prolongamentos na arte europeia, caracterizado por um rigor formal herdado do cubismo e do suprematismo, por um desejo de integração dos fatores espaço e tempo e pela ambição de uma síntese das artes plásticas, o construtivismo desenvolveu-se em torno de dois eixos.

De um lado, Gabo e Pevsner (Manifesto realista, 1920) afirmavam uma arte espacial e rítmica, de natureza espiritual. De outro, Tatlin e os “produtivistas”, como Rodtchenko, defenderam a unificação da arte e da técnica atribuindo ao criador uma função social. Foi muito importante a aplicação das propostas construtivistas nas artes gráficas, na arquitetura e no desenho industrial.

Para o construtivismo a pintura e a escultura são pensadas como construções e não como representações -, guardando proximidade com a arquitetura em termos de materiais, procedimentos e objetivos. O termo liga-se diretamente ao movimento de vanguarda russo e a um artigo do crítico N. Punin, de 1913, sobre os relevos tridimensionais de Vladimir E, Tatlin (1885-1953). A consolidação das especificidades do construtivismo russo não deve apagar os seus elos com outros movimentos de caráter construtivo na arte que têm lugar no primeiro decênio do século XX, por exemplo, o grupo de artistas expressionistas reunidos em torno de Waslli Kandinsky (1866-1914) na Alemanha (De Blane Reiter), 1911, o De Stije (o estilo), criado em 1917 que agrupou Piet Mondrian (1872-1944), Theo van Doesburg (1883-1931) e outros artistas holandeses ao redor das pesquisas abstratas e o suprematismo fundado em 1915 por Kazimir Malevitch (1878-1935), também na Rússia. Isso sem esquecer os pressupostos construtivos que se fazem presentes, de diferentes modos, no cubismo, no dadaísmo e no futurismo italiano.

Às relações entre a jovem república soviética e o mundo da arte nem sempre foram fáceis. No início, Lênin favoreceu as correntes de vanguarda, mas, aos poucos, temendo que por trás das formas abstratas se escondesse o micróbio da contestação, o aparelho político soviético impôs aos artistas um comportamento mais conformista e conservador.

Aos poucos, todos os grandes artistas renunciaram à pesquisa, à inovação. Rodtchenko, Maiakóvski e Tatlin, suicidaram-se, fugiram do país ou morreram na prisão. Em abril de 1932, o Comitê Central do Partido Comunista Soviético decidiu que a arte, no futuro, seria obediente aos princípios do “realismo socialista”. Pressentindo o desastre, dois anos antes, o grande poeta Maiakóvski suicidou-se. Os anos 30 caracterizam-se pelo retorno à arte acadêmica e pelo aparecimento de artistas medíocres, tipo Dekeia e Brodski.

“O trabalho de Maiakóvski no domínio da publicidade suscitou, à época, não pouca estupefação e risos entre os críticos”.

Rodchenko

Rodchenko-Maiakóvski

Maiakóvski – Foto de Rodchenko

Suas ilustrações para o livro Sobre Isto (1923), de Maiakóvski, são irresistíveis. Ele combinou fotos do poeta e de sua amada Lilia Brik com vários itens recortados de revistas; encontrou assim, o equivalente visual dos versos angustiados e tragicômicos de Maiakóvski. Rodchenko justapõe retratos de ambos à imagética mecânica dos anos 20, com seus aeroplanos, industrias, arranha-céus, torres, telefone, Torre Eiffel (triunfo do pioneirismo industrial e precursor da nova tecnologia urbana). Não faltam referências aos costumes da sociedade, sempre presentes nas fotos.

Rodchenko procurou compor as ilustrações fotográficas de acordo com aspectos que lhe foram oferecidos pelo próprio texto de Maiakóvski: As montagens são como metáforas visuais, como na fotomontagem da capa do livro de Roman Jakobson “As gerações que esbanjou seus poetas”: “os braços em cruz,/em cruz/ no topo,/em busca do equilíbrio,/terrivelmente agito.” Segundo Rodchenko, “cada imagem existe como parte de uma totalidade maior, uma totalidade que é destruída assim que um fragmento é retirado e isolado”.

A arte fotográfica de Rodchenko surge como treino e invenção, refletindo uma necessidade de ver algo novo nas coisas usuais. Substitui a perspectiva frontal, tão usual na retratação dos objetos, pela diagonal, causando uma estranha imagem do real. Seu objetivo era “mostrar o mundo de todos os pontos de vista, ensinando ao espectador a habilidade de vê-lo de todos os lados”. Em síntese, a ruptura com o ponto de vista frontal, é a conseqüente valorização da diagonal.

Os dois artistas juntaram forças durante a NEP (Nova Economia Política), para propagar várias empresas do governo, os produtos e os serviços que estas ofereciam. Rodchenko produziu cerca de 150 anúncios e embalagens. Muitos textos desses trabalhos foram escritos pelo poeta Maiakóvski, que, além de criar jungles em conjunto com Rodchenko, também era seu modelo preferido. Sobre a utilização da propaganda para a divulgação de uma ideologia, Maiakóvski definiu acertadamente: “é necessário usar todas as armas usadas pelos inimigos, inclusive à propaganda, para popularizar o Estado, as organizações do proletariado, escritor e produtor”. Nesses anúncios estavam informações como o preço e o valor nutricional de cada produto, pois viviam numa época difícil, era preciso reerguer a economia do país que acabara de sair de uma guerra civil.

Por exemplo, a caixa de biscoito “Aviador Vermelho” trazia uma mensagem alarmando as armas inimigas sobre a invencibilidade da Força Aérea Vermelha, dizia: “nossa aviação toma os céus/e nós propagamos a ideia em todos os lugares/mesmo nos doces/se é nosso o céu/o inimigo rasteja feito um caranguejo”. Outro anúncio para a cerveja “Três Picos”, dizia: “A cerveja Três Picos expulsa a hipocrisia e a luz do luar”.

A dupla Rodchenko-Maiakóvski rompeu a imagem do artista gênio, alienada, que a todo o momento buscava inspiração. Os trabalhos criados pela dupla tinham duas funções: em primeiro lugar vender produtos feitos pelo Estado, que ajudariam a fortalecer o regime financeiramente. Em segundo lugar, vender o próprio regime, ajudando a introduzir uma nova ideologia nas pessoas. Alguns trabalhos de design de Rodchenko, por exemplo, tinham como finalidade deixar evidente o contraste entre as embalagens antigas (antigo regime) e as modernas.

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[*] É jornalista, pesquisador e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com