GILFRANCISCO [*]
No final dos anos 50 e início dos 60, via praticamente Cuíca de Santo Amaro todos os dias, na Praça Municipal: na escadaria da Prefeitura da Cidade do Salvador ou na entrada do Elevador Lacerda. Morávamos na Praça dos Veteranos (Rua J.J. Seabra) no antigo Casarão nº77, em frente ao Corpo de Bombeiros que ficava na subida da Ladeira da Praça. Íamos à tardinha saborear um sorvete de coco/chocolate ou um picolé esquimó na Sorveteria Cubana e ficávamos até as 7 ou 8 horas admirando a Baia de Todos os Santos, perdidos, desejando um breve encontro com a Ilha de Itaparica, até a light desligar as luzes, após o tiro de canhão. Vim reencontrá-lo quando nos mudamos para o Bairro da Caixa D’Água (1960) vi algumas vezes na Baixa de Quintas, próximo a Igreja de São Judas Tadeu, na época dirigida pelo vigário Gaspar Sadock, que quando monsenhor teve que intervir tanto para evitar agressões a ele como para pedir-lhe moderação em seus versos e assuntos.
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O jornalista baiano e ministro Carlos Coqueijo em umas de suas crônicas publicadas no jornal A Tarde (12. julho.1966), traça o perfil surrealista do poeta: “Quem não conhece por aqui a figura de Cuíca de Santo Amaro? De chapéu de coco, óculos escuros (tinha uma vista defeituosa), fraque, suando em bicas, declamava com todo o peito a sua terrível versalhada, nas escadarias da Prefeitura, nos trens, nas feiras, no mercado, no Elevador Lacerda, e acabou no cinema, cantando, ele próprio, a desgraça da Feira de Água de Meninos, no filme de Roberto Pires que levou esse nome, e encarnado por Zé Coió no Pagador de Promessas”.
O poeta José Gomes, mais conhecido pelo seu nome de guerra, Cuíca de Santo Amaro, é o trovador popular mais célebre da Bahia. Nascido em Salvador, a 19 de março de 1907 e falecido em 23 de janeiro de 1964, aos 56 anos, vítima de gangrena na perna. Era repórter, editor e o próprio vendedor de seus folhetos.
Repórter da Bahia – O norte-americano Mark J. Curran especialista em cultura popular brasileira publicou em 1990, pela Fundação Casa de Jorge Amado, 195 p. o livro “Cuíca de santo Amaro poeta – repórter da Bahia”, volume que faz parte da coleção “Casa da Palavra” dessa entidade. Mark Curran é Doutor em Estudos Hispano e Latino-americanos pela Saint Louis University (EUA) e professor do Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Arizona. Além dessa atividade docente, ele é pesquisador da Fulbright Hays e da American Philosophical Society, tendo se destacado pelo estudo que vem fazendo de nossa literatura popular.
Na apresentação do livro de Curran, escreve Jorge Amado: “Agrada-se sobre maneira, o fato de o ensaísta situar Cuíca como parente literário de Gregório de Mattos: ambos, o grande poeta clássico, o fundador da literatura brasileira, e o poeta popular, são “bocas do inferno”, clamando denúncias, criticando a sociedade injusta, usando a arma terrível da verina e da sátira. Igualmente válida é a aproximação estabelecida entre o cordel de Cuíca de Santo Amaro e a tradição do epigrama baiano. Leitor de Wilson Lins, analista lúcido da escola baiana de epigramistas e feroz epigramista ele próprio, soube Mark J. Curran encontrar e revelar as diversas facetas das letras baianas – as mais eruditas e as mais populares – colocadas a serviço da luta contra os preconceitos e a tolice: a grande poesia, a crônica, o cordel. Nada escapou à observação e à análise de Mark Curran, no que se refere à obra e à vida da extraordinária criatura que foi Cuíca de Santo Amaro. Por isso mesmo, conseguiu traçar um retrato de corpo inteiro de um dos personagens mais fascinantes da Bahia contemporânea”, portanto, a história e a crítica da poesia popular acabaram por ganhar uma valiosa contribuição de Curran.
Se eu fosse governador
Você sabe o que eu fazia?
Primeiro baixava os impostos
De uma noite para o dia
Para acabar de uma vez
Com toda patifaria.
Neste folheto “Se eu fosse governador”, o poeta popular Cuíca de Santo Amaro trova em cordel uma espécie de plataforma antigovernamental, onde o lúdico se sobrepõe ao burocrático, e os bastidores da atividade política deixam de ser teias de maracutaia para se preocupar com justiça, trabalho e pão. Em algumas estrofes, no entanto, o poeta praticamente se aproxima de um modo tirânico, centralizador, de governar, como se fosse o desespero diante de tanta artimanha, mordomia, corrupção dos nossos “disgovernantes”.
Cuíca nunca abafava um escândalo, uma boa notícia, enquanto que seus colegas jornalistas, em troca de favores e recompensa financeira, costumavam não as divulgar. É sabido de que Cuíca mantinha relações promiscuas com alguns políticos que pagavam uma “caixinha” para não serem personagens dos seus versos. O homem era terrível, destruiu reputações de vários baianos através dos seus folhetos, encomendados ou escritos por conta própria.
No livro de Dias Gomes, O Pagador de Promessas, o personagem Dedé Cospe-Rima, inspirado nele, o trovador faz uma espécie de autodescrição:
“Eu sou um homem temido! Quando eu anuncio que vou escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele deputado… ah, menino, não tarda o fulano me procurar para adoçar meus versos. Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o ABC do Zé-do-Burro, tenho certeza de que o padre abre logo a porta e vem ele mesmo carregar a cruz”.
Nessas quadras, Cuíca denuncia e reivindica também o seu quinhãozinho:
Jornais…emissoras
Não dão publicidade
De escândalos… adultérios
Ou outra imoralidade
Quando retrata
Da alta sociedade.
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Porque infratores
Que têm posição
Depois das misérias
Gastam um dinheirão
Para que os repórteres
Não dêem a divulgação.
//
Porém eles
Que praticam a infração
Não se lembram
Em dar-me o meu quinhão
Por isso é que vou dar
Essa divulgação.
Um dos principais valores da literatura de cordel é a sua informação aos seus leitores, e o cordel, espécie de documentário do povo, é o retrato do Nordeste brasileiro. É possível encontrar os relados sobre o bandoleiro Antonio Silvino, do romântico Jesuíno Brilhante, da guerra de Canudos e Antonio Conselheiro, a Revolução de 1924 e 1930, o assassinato de João Pessoa, os dois governos de Getúlio Vargas, as grandes secas do Nordeste, todos esses episódios estão no cordel.
Jurando defender o povo até o fim, o poeta Cuíca de Santo Amaro candidatou-se em 1958, pelo PRT (Partido Republicano Trabalhista), pequeno partido, sem nenhuma expressividade popular, em virtude de não ter sido aceito por nenhum outro partido. O resultado foram 68 votos obtidos no pleito e logo em seguida publicou a Bagunça no Pleito Eleitoral, onde relata o que viu durante as eleições:
Vi fome, sede que se troca pelo cobre eu pude observar
Entre o grande eleitorado vende a sua consciência depois a mim mesmo
Vi muito voto a muita gente nobre me pus a perguntar
Também sendo violado estes ambiciosos meu Deus!!! Por que eu
Também vi muito não votam para gente pobre fui me candidatar?
Eleitor degenerado todas estas cenas
//
que se troca pelo cobre
vende a sua consciência
a muita gente nobre
estes ambiciosos
não votam para gente pobre
todas estas cenas
//
eu pude observar
depois a mim mesmo
me pus a perguntar
meu Deus!!! Por que eu
fui me candidatar?
———
A Vingança do Homem de Brotas
Cuíca de Santo Amaro
//
Nunca mais mulher de Brotas
Quer decapitar ninguém
Quem tiver seu maridinho
Trate ele muito bem
Não se alvore a valente
Para não morrer também.
//
Foi por isto que a Virginia
A mulher da navalhada
Mais ao menos sete e meia
Comeu ferro na virada
Na ladeira do Cabral
Quando ia desencalmada.
//
Vou passar a repetir
Porque foi que aconteceu
Porque foi que o Mendonça
Desta forma procedeu
Em vingar-se da Virginia
Que finalmente morreu.
//
O povo naturalmente
Com certeza está lembrado
Que a Mulher de Brotas
Com um ciúme desgraçado
Deixara o eletricista Mendonça
A noite decapitado.
//
Mesmo ainda sem pescoço
Muito o Mendonça sofreu
Sem cabeça o desgraçado
Muito ele padeceu
Só mesmo por um milagre,
Que o Mendonça não morreu.
//
Não morreu o Eletricista
Porque mesmo Deus não quis
Para puder se vingar
D’aquela ente infeliz
Que cortara o seu pescoço
Bem rente pela raiz.
//
Não podia ele viver
Com tanta mulher bonita
Na rua sempre ao seu lado
E ele lambendo os beiços
N’um sofrimento danado.
//
Foi então que o Mendonça
Certo dia disse assim
Eu sei perfeitamente
Que já chegou o meu fim
Pois vivendo sem pescoço?
Já não há mulher pra mim.
//
O Mendonça Eletricista
Que não é uma criança
Com o sonho que tivera
Veio logo na lembrança
Ou mais cedo ou mais tarde
A tirar uma vingança.
//
Acontece que Mendonça
Sai um dia a passear
Na ladeira do Cabral
Veio a Virginia encontrar
A qual o avistara
Pois-se então a caçoar.
//
Começou a desfazer
A dizer o seu dixote
Disse ela que Mendonça
Espapou até da morte
Porque o desgraçado
N’este mundo era mais forte.
//
O Mendonça que descia
Vendo aquela desgraçada
A dizer-lhe tantas leras
A dizer-lhe… estou vingado
Como um louco desvairado
Deu-lhe cinco punhadas.
//
Foram uma no pescoço
Duas sobre o coração
Eu não sei se as outras foram
Bem direta no pulmão
Eu sei que a Virginia
Foi direta para o chão.
//
Este foi o triste fim
Que teve a Mulher de Brotas
Na Ladeira do Cabral
Bem perto das sete portas
Bem na boquinha da noite
Quando as horas eram, mortas.
//
A Virginia bem sabia
Que o seu fim era fatal
Mais ela não pensava
Que fosse lá no Cabral
Assim que terminasse
Os festejos de Natal.
//
Ela que não se lembrava
Mais se quer da navalhada
Pensava que o Mendonça
Fosse ainda camarada
No dia vinte e novembro
Comeu ferro na virada.
//
Enquanto isto a Virginia
Vivia até flauteando
Do pobre do Eletricista
vivia ela zombando
com cobras e Lagartixas
Vivia até namorando.
//
O Mendonça que sabia
De sua infidelidade
pediu até a polícia
por ela até piedade
para puder aguardar
A sua oportunidade.
//
Os amigos do Mendonça
Lhes davam baile a valer
o pobre do eletricista
nada podia dizer
as vezes envergonhado
Tratava de se esconder.
//
Um dia ele deitou-se
e começou a sonhar
com o seu próprio pescôço
No seu ouvido a cantar
Mendonça meu caro amigo
Como não vae se vingar?
//
você sem o pescoço?
como poderá viver?
Me diga ó Mendoncinha
Porque eu quero saber
com tanta mulher bonita
Como é que poderá ser?
//
Como poderá você
Resolver esta parada
Depois que a Virginia
Lhe deu esta, navalhada
deixando você no mundo
Completamente sem nada?
//
Você deve bem saber
que ela ficou frescando
e você meu caro amigo
Foi quem ficou sobrando
Sem pescoço, estas garotas?
Vivem de você zombando.
//
Quando foi de manhã cedo
que o Mendonça acordou
com o sonho, que tivera
Nem mesmo o rosto lavou
Sentou-se em uma cadeira
E desta forma pensou.
E assim D. Virginia
Que era um caso muito sério
Com navalha, ou sem navalha
Foi direta ao Necrotério
E depois pela tardinha
Foi direta ao Cemitério
//
Disse então o Eletricista
Vendo o ato consumado
Eu te disse ó Virginia
Quando fui decapitado
Que você não ficaria
Para outro desgraçado.
//
A mim não me encomodo
Jamais ir para a prisão
Só mesmo encarcerado
Em completa solidão
Que poderei viver
N’esta triste situação
//
Disse ainda o Mendonça
Olhando para a bandida
Que estava ensanguentada
Toda cheia de ferida
Cortas-tes o meu pescoço
Porém eu te tiro a vida.
//
E assim eis um exemplo
Para as garotas de Brotas
Quem tiver suas navalhas
Se lembrem das sete portas
Tratem bem os seus maridos
Ao chegar nas horas mortas
//
Se lembrem no Mendonça
E toma nota em seu caderno
Que mandou lá no Cabral
A Virginia pro inferno,
Se entender com Satanaz
Lá naquele fogo eterno.
//
Nunca mais Mulher de Brotas
Faz ciúmes do seu bem.
Nem tão pouco cortará
Mais pescoço de ninguém
Quem tiver seu maridinho
Não diga que tem mais de cem
//
Porque o Eletricista
Que fora decapitado
Com certeza resolvera
A ir comer descansado
Depois com a Virginia
O mesmo ter se vingado.
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Referências Bibliográficas
AZEVEDO, Thales de. Originalidade e Singularidade de Cuíca de Santo Amaro. Salvador, A Tarde Cultural, 17, novembro. 1990.
CURRAN, Mark J. cuíca de Santo Amaro poeta-repórter da Bahia. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado, 1990.
JACOB, Adriana. O Clamor do Povo. Salvador, Memórias da Bahia II (Correio da Bahia), 2003.
MARCONI, Paolo. Cuíca de Santo amaro em tempo de eleições. Salvador, A Tarde Cultura, 16. jun. 1990.
MATTOS, Edilene. Notícias Biográfica do poeta popular Cuíca de Santo Amaro. Salvador, UFBA/CEB nº118, 1985.
TARDE CULTURAL (A). Nosso trovador maior faz falta (Entrevista: Paolo Marconi). Salvador, 17. março. 2007.
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[ * ] É jornalista e escritor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com.
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