GILFRANCISCO [*]

As homenagens prestadas pelo centenário de nascimento do poeta modernista baiano, Eurico Alves Boaventura (1909-1974), transcorreram na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, através de um colóquio internacional, realizado entre os dias 29 e 31 de julho de 2009. O resultado do colóquio foi o livro História Poesia Sertão – Diálogos com Eurico Alves Boaventura, organizado pelo professor da UEFS, Aldo José Morais Silva, presidente da comissão organizadora do evento e publicado pela própria UEFS, com apoio da Fundação de amparo a Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB, 2010, 200 p. O livro reúne quinze colaboradores, todos, palestrantes do evento, que enfocaram vários aspectos da obra do poeta feirense.

Dividido em quatro partes: Incursões Poético-Literárias, em que colaboram os professores Rita Olivieri-Godet, Juracy Dórea e Claudio Cledson Novaes, reúnem estudos que abordam o caráter poético do homenageado. Reflexões sobre fixação da memória, onde os colaboradores Valter Guimarães, Claudia Pereira Vasconcelos, Clovis Frederico, Grazyelle Reis e Larissa Penelu B. Pacheco abordam a dimensão histórica da obra de Eurico Alves. Na terceira parte da coletânea Reflexões sobre ausências e silêncios, uma nova dosagem sobre abordagem histórica, cujo foco está voltado para o lugar social, a terra natal do poeta, textos apresentados pelos professores Elizete da Silva, Igor Gomes Santos e Frederico Nascimento do Santo Sé. Finalizando a coletâneas com Vivências e Lembranças, apresentando textos da consagrada escritora Maria Eugênia Boaventura, Maria Lenilda Carneiro Santos David, do escrito Antonio Torres e Selma Soares de Oliveira, cujos registros giram em torno das experiências vividas pelo poeta feirense, confirma que Eurico Alves encontrou através da poesia sua linguagem mais singela, seu processo ideal de transmissão, uma poesia em permanente estado de consciência.

O Poeta

Eurico Alves Boaventura nasceu em 27 de junho de 1909, em Feira de Santana, a Princesa do Sertão. Iniciou os estudos em sua terra natal, vindo a complementá-los em Salvador, no colégio Maristas – Nossa Senhora da Vitória e depois no Colégio da Bahia. No final dos anos vinte, fez parte do modernismo baiano, através de um grupo de jovens desejosos de acompanhar as transformações da vida literária no Brasil, denominado Arco & Flexa (1928), onde reuniam escritores como Hélio Simões, Carvalho Filho, Queirós Junior, Pinto de Aguiar, Godofredo Filho, Carlos Chiacchio e outros. Neste órgão divulgador do grupo, Eurico Alves publicou os poemas: A Bahia de todos os santos, A Escola e Noturno Bahiano (Revista nº1); Minha Terra (nº2/3) e Zabiapunga (nº4/5), época em que colabora com diversos periódicos baianos, de Recife e de Maceió e mantém contatos com os escritores, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Waldemar Cavalcanti. Em 1930 ingressou na Faculdade de Direito da Bahia, vindo a bacharelar-se em 1933, para em seguida atuar como magistrado, função que o levou a residir em várias cidades do interior baiano, algumas como Porções, Alagoinhas, Macajuba e Tucano.

Apesar de pouco citado e omitido em antologias e estudos sobre o modernismo, ele é hoje um poeta que tem uma obra definida, pessoal, livre de alguns dos chavões do próprio grupo modernista. Eurico é autor dos poemas mais livres, mais inventivos no plano simbólico. Por isso sua produção é bastante diversificada, versos deslumbrados diante do progresso urbano, poemas sentimentais e ingênuos fruto das excursões pela vida interiorana, momentos intimistas de desabafos líricos do poeta solitário ou como disse Manuel Bandeira, poeta salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito. Em sua arte poética, Eurico Alves encontrou a transcendência – o lugar de todos os tempos, sem precisar virar o mundo de cabeça para baixo. A leitura de sua obra indispensável não apenas aos estudantes de literatura, crítico e especialistas, como também ao leitor moderno, interessado em atualizar e desenvolver o seu lastro cultural. O poeta morreu em Salvador, aos sessenta e cinco anos, no dia 4 de julho de 1974, sendo sepultado em sua terra natal.

Um Encontro Ignorado

Conheci o poeta Eurico Alves a partir de 1966 ou 1967 quando cursava a primeira ou segunda série do curso ginasial – Instituto de Educação Isaias Alves – IEIA, em 1968 mudaria para Instituto Central de Educação Isaias Alves – ICEIA. A instituição educacional estava localizada no coração do Barbalho, um bairro chique, de gente bonita, boas e amplas casas e próximo ao recém-inaugurado Loteamento Lanart, algumas quadras do Santo Antonio onde morava Gilberto Gil que registrou em sua canção Tradição “conheci essa garota que era do Barbalho na lotação de Liberdade, que passava pelo ponto dos Quinze Mistérios, indo do bairro para a cidade”. Gil morava num sobrado em frente à Cruz do Pascoal, e a turma do colégio ia vê-lo cantar.

O colégio ficava numa localização privilegiada, em frente ao Pronto Socorro, SAMU – Serviço de Atendimento Médico de Urgência, ao ponto do bonde e do lotação, próximo ao Bar e Restaurante China, melhor sorvete e picolé (esquimó) de Salvador, ao lado o Forte do Barbalho, onde abrigava uma unidade da Polícia do Exército – PE, órgão temido dos estudantes, convivíamos diariamente com os soldados armados, patrulhando todo o quarteirão do ICEIA, nos proibiam até de andarmos pela rua que dava acesso ao colégio, somente era permitido andar pelo passeio; do outro lado a ladeira do Funil que desaguava na Sete Portas.

Havia uma atividade cultural intensa no Instituto: teatro, shows musicais, natação, futebol de salão e de campo, basquete, natação, voleibol, ping-pong, peteca, cinema, coral e banda de música. Na época era tido como o melhor colégio público do Estado. Foi num desses intervalos, para o tradicional jogo em dupla, de tampinha de refrigerante ou meia de pano, no pequeno espaço entre as arquibancadas defronte das quadras, que encontrei José Gonçalo (já falecido), duas séries mais adiantado que eu. Ele era colega de sala de Ney Galvão, famoso costureiro e apresentador de TV que morreu muito jovem. Constituímos uma dupla de muitas vitórias. Lembro-me bem do meu parceiro magro, branquelo, um rosto gasto pelas espinhas, usava óculos tipo fundo de garrafa e gaguejava, principalmente quando irritado. Mas tinha ares de intelectual, era CDF, tirava boas notas, conhecia literatura e discutia sobre vários assuntos ao mesmo tempo, notava-se que tinha sólida formação. Mais tarde apresentou-me sua irmã Maria Tereza, muito tímida, também estudante do ICEIA.

Diariamente entre 12:15 e 12:30, a caminho do colégio, costuma passar na casa do poeta, que ficava em frente a lateral do Forte do Barbalho, um muro alto, construído por grandes pedras pintadas de preto. A porta da casa estava sempre aberta, havia um desnível da rua e tinha-se acesso através de uma escada. Por várias vezes encontrei o pai de Zé sentado numa espreguiçadeira de vime às vezes vestido num pijama listrado, de cores claras da moda, semelhante ao que meu pai usava, lendo alguma coisa, livro ou jornal. Ele tinha o mesmo jeito de Zé, lembrava as feições por causa dos óculos que usava.

Saíamos os dois a passos longos porque o portão encerrava-se antes das 13 horas. Seu Raimundo, porteiro exigente, cumpridor do Regulamento Interno do colégio, não facilitava. Seu Raimundo morava no colégio, tinha família e entrada independente pela lateral que dava acesso a ladeira do Funil. Se por ventura chegássemos atrasados, entravamos pela residência de seu Raimundo, pois seu filho, Raimundinho, era nosso colega, e baixista do conjunto musical Os Jormas, que realizava os ensaios aos sábados e domingos no próprio colégio. José Gonçalo era mais ligado à literatura, as coisas interioranas, enquanto eu à música, por isso gazeava as últimas aulas para discutir as novidades musicais com Raulzito (Magrelo), líder do conjunto Os Panteras, Perinho Santana, Maurício (Fininho), Raimundinho, Renatinho, integrantes dos Jormas além dos meninos dos Cremes: Luciano, Jaime Sodré e Perinho Santana que deixou de ser baterista, passando para guitarra solo.

Estávamos sempre juntos, eu e Gonçalo. Nos anos 70 e 80, encontrava-o com muita frequência na Livraria Civilização Brasileira das Mercês ou da Ajuda, conversando com o gerente Expedito ou Toninho e soube do falecimento do seu pai. Estava do mesmo jeito, agitado, gaguejando, discutindo suas novas leituras e com aqueles óculos antiquados.

Congresso

Entre os dias 14 e 20 de setembro de 1986, quando participava em Campina Grande (PB), na condição de jornalista enviado pela Tribuna da Bahia, do VIII Congresso Brasileiro de Teoria e Crítica Literária e do V Seminário Internacional de Literatura, ao Cinquentenário de nascimento do Poeta Figueiredo Agra (1936-1982), organizado pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e Literários – NELL – Universidade Federal da Paraíba, durante o evento fui surpreendido quando meu nome foi anunciado pelo presidente da mesa, Tovar, filho do poeta paraibano Figueiredo Agra, seguidos dos nomes dos poetas Thiago de Mello, Bráulio Tavares, Hildeberto Barbosa Filho e da professora Rita Olivieri-Godet, a qual apresentou uma comunicação sobre a Poesia de Eurico Alves, publicada no ano seguinte na revista Sitientibus (UEFS), nº7, com o título, Para ler Eurico Alves, e anos depois organizaria o livro A Poesia de Eurico Alves – Imagens da Cidade e do Sertão. Após a palestra conversamos sobre Eurico, Godofredo e Kilkerry, poetas desconhecidos na época. Em momento algum passou por minha cabeça tratar-se da mesma pessoa, que eu havia conhecido quando adolescente ginasiano em Salvador. Seu filho Zé nunca havia falado sobre o poeta que era seu pai. Conversando por várias vezes com o amigo Godofredo Filho, ele me revelou que Eurico Alves foi sempre homem bom, educado e atencioso para com todos aqueles que dele tiveram a aventura de se aproximar. Hoje posso afirmar sem dúvida de que Eurico foi um dos expoentes do Modernismo local, que há muito merecia uma homenagem à altura da sua obra.

A partir daquele evento passei a me interessar por sua poesia, mas até aquele momento o poeta continuava praticamente inédito. Em 1986, durante as comemorações do Centenário de nascimento de Manuel Bandeira, as Edições Macunaíma (ilustrações de Calasans Neto), publicou uma Plaqueta contendo os poemas Elegia para Manuel Bandeira, de Eurico Alves e Escusa, de Manuel Bandeira dedicado ao poeta feirense. Somente em 1989 sairia o livro Fidalgos e Vaqueiros (prefaciado por Wilson Lins) – Centro Editorial e Didático da – UFBA, ensaio sociológico sobre a civilização do couro, fruto de suas pesquisas pelo sertão da Bahia e em 1990, sua filha, a professora da Unicamp, Maria Eugênia Boaventura organiza e publica pela Fundação das Arte/Empresa Gráfica da Bahia, o livro Poesia – Eurico Alves.

Capa Livro Poesia de Eurico Alves Foto: Reprodução

Poesia, de Eurico Alves, apresentou um resgate literário significativo, era apresentada pela primeira vez, parte significativa de sua produção poética, uma amostragem para os estudiosos do Modernismo na Bahia que até então desconhecíamos a poesia e o percurso inquieto de Eurico Alves Boaventura, da figura de proa nos primórdios modernista da Bahia. Mas, a contribuição para o estudo do modernismo baiano coube primeiramente às pesquisas realizadas pela professora Ívia Iracema Alves Duarte, com a monografia de Mestrado apresentada à disciplina de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo-USP, publicada em 1978 pela Fundação Cultural do Estado da Bahia.

Poemas Dispersos

Os dois poemas aqui reunidos foram localizados em 1998 na Biblioteca Epifânio Dória (Aracaju-SE), coleção incompleta da revista baiana ETC (Revista de Cultura e Atualidade), dirigida por Júlio de Carvalho, enquanto pesquisava o jornalista Pinheiro Viegas e a formação da Academia dos Rebeldes, tema desenvolvido durante a elaboração da tese de mestrado na Universidade Federal da Bahia- UFBA.

A Balada do Bacharelando desiludido

Eurico Alves





A culpa foi inteiramente de Papai.

Ele queria que eu fosse doutor e falasse bonito,

como as decorativas frases de Vieira de Castro

Mandou-me menino para a cidade encantada,

Afim de que os austeros professores do Direito

pusessem nas minhas mãos a felicidade.

Tão bom Papai! Desejava para mim uma grande conquista!

É sempre tão bom o Papai de um bacharel!

//

Mas, hoje Margô, sinto uma vontade de não saber nada, nada

de ser puro feito moleque que vende queimado,

de ser feliz feito o gato tão alvo e tão gordo,

que dorme despreocupado na janela da modista.

//

Uma vontade assim, martirizante de não saber…

//

Queria voltar àquele tempo nosso, queria,

ouvir o perfume da sinceridade.

Esperar-te na Praça dos Remédios,

colher cajus nas chácaras do ABC,

dar mergulhos no Tanque da Nação

e gritar, feliz, feliz, quando eles passassem:

Antoninho maluco! Romão, cadê a cabra?

//

A culpa foi inteiramente de Papai

//

Eu desejava que nunca ficássemos sisudos,

que continuasses com os teus vestidinhos curtos,

brigando comigo, Margô, si eu não queria

fazer de conta que era teu marido.

Ah! quando, ontem, me chamaste de doutor,

que vontade eu tive de acabar com isso tudo,

de fazer de conta que ainda éramos crianças…

Como senti no meu rosto as tuas dentadas de zanga

//

Ah! Margô, a culpa foi inteiramente de Papai.

Salvador. Etc. nº226, de 15 de dezembro de 1933

(Localizado em 1988, no Setor “Gabinete de Leitura” da Biblioteca Epifânio Dória, Aracaju-Sergipe)

A Balada Feliz

Eurico Alves

Depois que a noite desceu…

um perfume de véus de santas no ar…

As minhas mãos sufocam-se por entre

um turbilhão de papéis, de folhas soltas…

Cumplicidade feliz dos livros nas estantes.

O luar, empurrando o estore alvo que bordaste,

veio precipitado, gargalhando, contente

espiar aqui dentro a vida pura de nós dois

e dos guris que te pedem ansiosos outra história bonita.

//
Era uma vez, uma fada encantada

e um príncipe poeta…

//

Os retratos dos nossos velhos sobre as estantes, sorrindo também!…

Vieram ler comigo

todas as vozes azuis das virgens que morreram puras

e as sombras atiram uma canção de vaga-lumes pelas janelas,

um perfume acariciante de madre-silvas e glicínias…

//

Ah! a algazarra colorida das trepadeiras que plantaste

e a ternura verde das samambaias arreando

no claro azul das janelas abertas, nessa noite lírica!…

//

…depois, o príncipe e a fada se casaram

e foram muito felizes, muito felizes…

//

Mas, si o sono põe nas pálpebras infantis o seu beijo leve,

a tua voz, meu amor, a tua voz,

toda vestida de lua e de silêncio,

cantará, baixinho, para não me perturbar,

ao ninares as crianças amadas que eu te dei:

//

Sururu, minininho que é que tem…

Salvador. Etc. nº245, 30 de setembro de 1934

(Localizado em 1988, no Setor “Gabinete de Leitura” da Biblioteca Epifânio Dória, Aracaju-Sergipe)

Bibliografia

ALVES, Eurico. Poesia. Salvador, Fundação das Artes/Empresa Gráfica da Bahia, 1990.

DIVERSOS. Légua & Meia – Revista de Literatura e Diversidade Cultural (Dossiê: O Sertão de Eurico Alves). Feira de Santana, UEFS, Ano 7, nº5, 2009.

ETC (Revista de Cultura e Atualidade). Salvador, nºs 226 (1933), 244 (1934) e 245 (1934).

SILVA, Aldo José Morais (org.). História Poesia Sertão – Diálogos com Eurico Alves Boaventura. Feira de Santana. UEFS Editora, 2010.

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[*] É jornalista e escritor.E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com