GILFRANCISCO [*]
Autor de um importante romance “O Alambique”, publicado pela Editora José Olympio, em 1934, o baiano Clóvis Gonçalves Amorim era uma das mais destacadas e brilhantes figuras dos círculos intelectuais da Bahia. Pertencia à famosa “Academia dos Rebeldes” (1928-1932), grupo literário, liderado pelo poeta e jornalista Pinheiro Viegas (1865-1937), do qual faziam parte Jorge Amado, Édison Carneiro, João Cordeiro, Alves Ribeiro, Aydano do Couto Ferraz, Dias da Costa, Guilherme Dias Gomes, Da Costa Andrade, Sosígenes Costa, José Bastos, Otávio Moura, Walter da Silveira e outros.
Nascido em 27 de setembro de 1912 na cidade de Amélia Rodrigues (antigamente distrito de Lapa, município de Santo Amaro da Purificação), recôncavo baiano, estudou as primeiras letras em sua terra natal, após o que se mudou para Salvador, a fim de fazer o curso de ginásio, mas não realizou o planejado porque na capital da Bahia só se interessou pelo jogo do bicho, brigas de galos, sambas de canto de rua e outros vícios a que estava acostumado. Com quase dois metros de altura, se desmanchando nos sambas, cocos e chulas da Bahia.
Figura alegre, brincalhão, bom conversador, onde quer que esteja, e como estivesse, atraia muitos ouvintes em seu redor. Clovis viveu intensamente, era um apaixonado pelas andanças interioranas, gostava de uma boa cervejada numa roda de amigos. Por isso não teve tempo de contrair angústias ou cultivar frustrações, pois personagem de si mesmo importou para a vida real muitas das situações encontradas nos seus próprios livros. Vejamos o resumo que ele traçou de sua vida:
“Nasci em Santo Amaro, venho do massapé, cresci num engenho, correndo na bagaceira, comendo melaço quente, tomando banho de rio, bebendo caldo de cana. Menino, de valiosa nascença, tive mão-preta no zelo e os Livros de Leitura, de Felisberto de Carvalho, na lição. Regalado e vadio, vestia costurado por alfaiate e comprava espingarda de chumbo na mão de mascate. Nas noites ermas do massapé, na asa do meu cavalo, endireitava no caminho do catimbó e ia fechar o corpo com reza braba, a magia da fé sem mácula colorindo a alma. O meu mundo rodava comigo no meio e eu um eterno enamorado da minha adolescência. Escutava, nos terreiros de samba, entre violas e cavaquinhos, a voz sentida dos negros, ecoando nos descampados, perdendo-se na respiração das madrugadas. Convivi com famosos cachaceiros e escutei muita conversa bonita em muito pé de balcão. Tinha para a minha fascinação e o meu enlevo, os maiores da minha vida, as minhas mucamas, de sorriso doce e de encantamento disponível, a Zefa e a Maria, a Cota e a Cordulina, uma em cada encruzilhada, numa casa de barro, num balanço de rede, numa cama de vara, com luar, amor e singeleza”.
Foi alambiqueiro, mas não teve muito sucesso com a pequena fábrica de cachaça, e fez-se fazendeiro endividado. Faleceu na cidade do Salvador a 18 de agosto de 1970 na clínica particular “Atemde”, onde fora internado em caráter de urgência. Seu sepultamento deu-se no dia seguinte, às 10 horas, no cemitério do Campo Santo, em cuja capela o corpo ficou em câmara ardente, velado por parentes e amigos.
O poeta e amigo, Godofredo Filho (1904-1992) escreveu a oração “Adeus a Clóvis Amorim”, proferida no cemitério do Campo Santo, em honra da memória de uma das mais expressivas figuras das letras baiana: “Estou certo de que, quando se escrever, amanhã, a verdadeira história literária da Bahia, a figura de Clóvis Amorim como poeta satírico avultará, tal seu físico se agigantava em vida, sobre a planície cinzenta em que pululam tantos pigmeus de nossas letras.
Clóvis Amorim era irmão do criminalista Alfredo Amorim e funcionário da Secretaria da Fazenda. Por muito tempo colaborou na imprensa local, publicando versos, epigramas e ensaios: A Luva; O Momento; Diário da Tarde de Ilhéus; Etc; O Jornal; Boletim de Ariel; dentre outros. O escritor santamarense, deixou um belíssimo ensaio “O Moleque no Canavial”, publicado no livro “O Negro no Brasil”, organizado por Édison Carneiro e publicado pela civilização Brasileira em 1940, resultado do Congresso Afro-Brasileiro da Bahia, realizado de 11 a 20 de janeiro de 1937.
Regionalismo
Corrente literária que se manifesta na literatura brasileira desde o Romantismo, tendo como característica principal (regionalismo tradicional) o apego nostálgico a um passado rural cuja perda se lamenta e cujos aspectos são descritos minuciosamente, para recompor o antigo mundo do campo que se quer contrapor à perda das tradições da vida na cidade. Seu momento de maior expressão encontra-se entre os anos de 1930 e 1940, principalmente com a produção do chamado Ciclo do romance nordestino, cujos principais expoentes são José Américo de Almeida (A Bagaceira, 1928); Raquel de Queirós (O Quinze, 1930); Jorge
Amado (Cacau, 1933); José Lins do Rego (Menino de Engenho, 1932) e Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1938).
Portanto, a prosa neo-realista regionalista nordestina reúne a produção literária mais significativa do período, procurando descrever particularidades geográficas e sócio-culturais, além de estudar as contradições da organização social em suas raízes históricas, para proceder a uma analise mais ampla das contradições de vida dos trabalhadores rurais e urbanos. Os romancistas desse período empenharam-se igualmente em verticalizar o conhecimento das projeções emocionais e psicológicas desses problemas nos trabalhadores, ampliando-lhes o sentido de humanização. Assumindo a postura de acusadores públicos, denunciando, o que havia de falso e desumano na sociedade brasileira. E as melhores realizações artísticas dessa proposta encontram-se nas obras de escritores acima mencionadas.
O Alambique, romance regional que traz para o estudo do folclore nacional: xingamentos, delicadezas, novos modos de agradar e de insultar, palavras novas para coisas antigas, provérbios e ditados populares, matéria prima para qualquer filólogo, realizar uma boa pesquisa de campo. Amerco, Pequenita, João de Sabina, Bertoso, seus personagens todos falam a linguagem matuta ou quase ribeirinha do Desterro, do Calolé, da Ladeira do Padre Inácio, da Cabonha ou da Engenhoca. O romance, que pode ser igualado ao “João Miguel” (1932) de Raquel de Queirós, “Menino de Engenho” (1932) de José Lins do rego e “Cacau” (1933) de Jorge Amado.
Marcado pelo mesmo radicalismo dos seus contemporâneos, Clóvis Amorim foi saudado pela crítica, que apontou como grande revelação, pois rompendo os cânones da literatura vigente, sobretudo no que dizia respeito à linguagem, a estrutura da fala dos personagens, o romancista Clóvis Amorim, foi buscar na fala do povo o material e a mão-de-obra, para organizar sua estrutura. Numa fase complexa, turbulenta da afirmação dos valores culturais do nosso povo acolhido com as publicações de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Amando Fontes, Jorge Amado e outros, o romance é ambientado na região do recôncavo baiano, principio e o fim de tudo.
Como bem disse João Cordeiro, autor do romance “Corja”, publicado em 1934, “O Alambique tem todos os defeitos e as virtudes todas do autor. Escrevendo-o Clóvis Amorim refletiu nele (certo, sem nenhum propósito) a barbárie e a selvageria da sua natureza de tabaréu verdadeiramente incivilizável. Deixou escorregar, extravasar mesmo, pelo físico da pena com que o traçou, a sua alma inteirinha. A alma e o seu físico. Daí, subir O Alambique com as pernas e os braços enormíssimos, espetaculares de Clóvis Amorim, com os seus gestos bruços e impulsivos, voluntarioso como ele, instante desmazelado por vezes chocante (horrível desnecessária, aquela coisa de bijélo contada por Damásio no capítulo “Bêbedo”) e, também, belo e grandioso como o seu talento, que eu considero – sem receio de cometer uma heresia, de primeira água.
“Na época da publicação, Jorge Amado, em artigo publicado em 1934 no mensário-crítico – bibliográfico – letras – artes – ciência, Boletim de Ariel, órgão da segunda fase do movimento modernista, fundado em 1931 e dirigido pelo escritor Gastão Cruls (1888-1959), disse ser “Entre os grandes romances modernos do Brasil, O Alambique se situa num lugar aparte, diferente que é de todos eles, sem ter parecença sequer com Menino de Engenho e A Bagaceira, aos quais está ligado pelo parentesco da cana de açúcar. Aliás, nesses romances, o clima não é dado pelo verde alegre dos canaviais se balançando ao vento. O que atravessa o livro todo, dominando os trabalhadores, os patrões, os empregados, os costumes e a própria natureza, é a cachaça que escorre alva e pura, dos destiladores”.
Edison Carneiro, seu amigo preferido, que estrearia com “Religiões Negras. Notas de Etnografia Religiosa”, em 1936, publicaria o artigo “O Alambique, romance do Recôncavo Baiano” em dezembro de 1934, no jornal A Bahia, que começa assim: “Desde romance de Clovis Amorim se pode dizer que é um acontecimento estranho, surpreendente, na literatura nacional. Não há nele, a luta do homem por modelar a natureza a sua vontade. Pelo contrario, há uma verdadeira apatia nos personagens desse drama – o da cachaça, – até hoje desconhecido do Brasil. O verde dos canaviais, as máquinas de fabricação da boa-pra tudo, a moleza da vida humana nessas regiões que o Progresso esqueceu, formam como que a única realidade viva que se agita no livro”.
Alguns críticos conservadores e preconceituosos como Mário Menezes, numa pequena crítica na revista Fon-Fon (nº8, 1935) diz que “o Sr. Clóvis Amorim empregou mal o seu talento escrevendo este livro. É quase inacreditável que um escritor, dispondo de ótimo material para produzir um excelente romance, tenha se desmandado em linguagem, alinhando expressões chulas e baixas, com o intuito de oferecer aos leitores uma cópia da vida do sertão baiano. A parte boa da obra foi inteiramente sacrificada pelas cenas que repugnam, tal a crueza do baixo calão empregado pelo autor, sem necessidade, amenos que não tenha nenhuma noção do belo, na arte de escrever”.
Massapé ou Massapê – é um solo argiloso, geralmente de cor escura, que ocorre particularmente na zona da Mata nordestina, e que é aproveitado desde a época colonial para o cultivo da cana-de-açúcar. Chão de Massapé, seu segundo romance, laudeado com o prêmio Xavier Marques, instituído pela Academia de Letras da Bahia, em comemoração ao cinquentenário da publicação de “Jana e Joel” (novela praieira), publicado 46 anos depois de sua estreia, juntamente com O Alambique, 2ª edição, pela GRD – Gumercindo da Rocha Dórea/MEC, apresentação de Wilson Lins, 1980.
Esta obra está a merecer uma nova edição por parte da Fundação Cultural do Estado, Academia de Letras da Bahia ou Conselho Estadual de Cultura. Seria de grande importância para oferecer às novas gerações, a oportunidade de conhecer um escritor conterrâneo que, ao lado de João Cordeiro (1905-1938), Jorge Amado (1912-2001) e Guilherme Freitas Dias Gomes (1912-1938), autor do romance inédito, Mercado Modelo, divulgado entre os “rebeldes” na época, marcou a presença da Bahia na reformulação do romance brasileiro. Reeditado ou não, Clovis Amorim – como afirma Wilson Lins, é um dos promotores da revisão estética de que todos somos beneficiários e herdeiros. Passaram-se várias décadas e sua obra atravessou o tempo sem desprestígio, sem nada perder ao seu fascínio. Guardo intacto o interesse por sua leitura.
Chão de Massapé é um inventário do naufrágio de um latifúndio do Recôncavo baiano, que nas terras do massapé pegajoso, cenário de aventuras, onde o heroísmo se mescla com o sofrimento e alegria, com amor e ódio, de negros e brancos, serviria de matéria prima utilizada anteriormente, por Xavier Marques (1861-1942), quando publicou em 1930 o romance “As Voltas da Estrada”, cuja história foi ambientada nesta região, sobre o fim da escravidão e os primeiros anos da República.
Portando, em ambos os livros, “O Alambique” e “Chão de Massapé”, do escritor baiano Clóvis Amorim, seguem os mesmos caminhos humanos e geográficos percorridos por Xavier Marques.
Publicações
O Alambique. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1934.
Santo Amaro, Nação da Cana (Conferência pronunciada na Universidade de Brasília, durante o 5º Festival de Folclore, setembro, 1967). Salvador, 1967. 2ª Edição, 1973. (texto: Nestor Oliveira)
O Alambique e Chão de Massapê. São Paulo, GRD/MEC, 1980 (textos: Gumercindo Rocha Dórea e Wilson Lins), 1980.
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[*] É jornalista e professor universitário. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
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